sexta-feira, 5 de março de 2010
Chegar a casa
Ela estará lá fora, ela estará na próxima esquina, à chuva, à minha espera. Ou em casa, a fazer chá. Qualquer coisa dela à minha espera, à espera que eu chegue a casa e ligue o interruptor da luz. Ela estará lá, nua, aninhada no sofá, as coxas generosamente entreabertas para me abafar a raiva, a cabeça caída para trás para receber a minha. E lá dentro a humidade quente de chegar a casa, um vórtice a puxar-me ainda mais para dentro dela, as minhas pernas, o meu corpo inteiro numa marcha para dentro dela, numa marcha para chegar a casa, ao cheiro a bolos da pele dela, e um remoinho cada vez a fechar-se mais, cada vez mais rápido, e eu a sair de mim, a deixar o meu corpo para trás num espasmo enquanto entro no dela, a forçar a entrada e ela sem oferecer resistência, a abandonar-se sem resistência e com um sorriso de domínio, enquanto me entorno nela e me acabo nela e me esgoto nela.
Sei que acelero o passo demasiado. Sei que vou quase num grito, quase num voo. Sinto lágrimas a correrem-me pela cara abaixo mas não sei do que são. Penso que vou abrir a porta de casa e ela estará lá, nua, à minha espera porque não lhe dou o direito sequer de pensar que não estará. E se não estiver, sei que que irei num berro ainda maior, num voo de rapina direito à porta dela, com raiva, raiva, raiva de a querer domar e reter, de me querer lançar nela como num poço negro, na boca dela como um poço negro, para dentro dela num voo rasante com as garras de fora.
Ouço uma voz a chamar-me lá atrás mas não sei quem será, e não quero voltar-me porque não interessa, porque se extinguiu num eco surdo, muito longe. Sinto que alguém me empurra na plataforma do metro mas não interessa, que vou contra a maré dos que saem já aqui, que vou arrastado no atrito da maré demasiado humana, mas não importa porque vou cego e tenho pressa. Sinto que o corpo me doi e que os olhos me ardem e que o peito se afunda mas não interessa porque já passou. Sinto que me encolho no banco da carruagem semi-deserta que me leva sem destino para lado nenhum mas o que interessa é que não posso ficar aqui, não posso ficar aqui, não posso fazer-lhe esperar as coxas generosamente abertas e quero chorar finalmente no meio delas, quando chegar a casa e a encontrar vazia.
quinta-feira, 4 de março de 2010
Eu me confesso...
Há, Eu me confesso… bem poucos escutam a canção do espírito em seu próprio coração.
E, por isso, estou perdida em mim mesmo.
Esqueci a minha essência espiritual, e deixei levar me por aí... Bati com a cabeça, sem noção de alguma coisa maior na vida.
No entanto, tudo tem um preço. E esse é o mais caro de todos.
Sim, custa muito caro viver anestesiado diante de si mesmo.
Porque o vazio de consciência dói muito mais do que se pensa.
E nada do mundo pode completar um coração sem luz.
Nem homem ou mulher. Nem dinheiro, bebidas ou posses.
Porque ninguém compra amor real ou consciência serena.
E não existe remédio algum que cure as feridas do coração.
E alguém que sequer conhece a si mesmo, facilmente perde o rumo.
Contudo, a canção do espírito permeia a tudo e a todos.
E, quem a escuta, sente algo mais, mesmo que nada possa provar.
Sim, algo mais... Uma Luz; um Amor; e alguns toques secretos.
Sei, quem sente o Sopro Vital do Eterno em seu coração, reconhece isso.
Porque a canção do espírito fala de coisas que estão além...
E de outras, que estão dentro do próprio Ser... Em sua essência.
E mais: fala de consciência. E de estrelas que brilham nos olhos.
Viver não é só comer, beber, dormir, copular, e um dia morrer.
Não é só isso, não. Também é pensar, sentir e fazer o melhor possível.
Porque há algo mais, dentro e fora de cada Ser... Errei!
E não dá para pesar ou medir isso, mas dá para sentir.
Mas isso não se explica, só se sente...E depois? Uma Luz, um Amor
Sim, algo mais... Que transforma os olhos em estrelas e o coração em sol.
E que é capaz de ver o Divino nas coisas simples.
Há algo mais, dentro e fora, e além...
E, quem ama, sabe…. Eu sempre amei… E continuei ouvindo a canção do espírito...
E ela fala de consciência e de que vale a pena viver, aqui e além…
P.S.:
Eu nada sei dos mistérios do universo.
Só sei de mim mesmo…
Mas, às vezes, eu escuto uma canção espiritual.
E ela fala de algo mais...
E eu a escuto em meu coração.
E, junto com ela, vem uma Luz e um Amor.
E alguns toques secretos.
E eu fico tão pequeno.
E quando eu escuto, escrevo o que sinto…
Há algo mais... Sempre!
E eu não sei mais o que dizer…
Porque tem uma Luz aqui, e um Amor…que não é religião, igreja, ou julgamento.
É Fé!
(Não dá para provar, mas que tem algo mais, tem sim...)
Desafio 'Enredo'
Olá a todos.
De modo a agitar um pouco mais este blog, a “administração” decidiu que seria divertido (pelo menos nas nossas cabeças meio loucas assim pareceu) criar desafios aos participantes. Segue então o primeiro de uma série de desafios (a serem anunciados periodicamente) com o tema ‘Enredo’. É muito simples, nós fornecemos um enredo muito básico e cabe a cada um elaborar um conto à volta deste ponto de partida.
E eis o ‘enredo’
- Uma jovem confessa-se publicamente no discurso final a que tem direito antes de ser executada. O padre é o único que sabe que ela não está a contar a verdade toda (por mentira ou omissão). Depois de ela ser executada ele renuncia à sua fé e abandona a igreja.
E é tudo. Tem até às 23:59 de terça-feira 9 de Março para participar. Have fun!
Nuno Oliveira e Cristina Correia
(e sim, nós também iremos criar as nossas versões)
PS: não se esqueçam de associar uma música aos vossos textos!
De modo a agitar um pouco mais este blog, a “administração” decidiu que seria divertido (pelo menos nas nossas cabeças meio loucas assim pareceu) criar desafios aos participantes. Segue então o primeiro de uma série de desafios (a serem anunciados periodicamente) com o tema ‘Enredo’. É muito simples, nós fornecemos um enredo muito básico e cabe a cada um elaborar um conto à volta deste ponto de partida.
E eis o ‘enredo’
- Uma jovem confessa-se publicamente no discurso final a que tem direito antes de ser executada. O padre é o único que sabe que ela não está a contar a verdade toda (por mentira ou omissão). Depois de ela ser executada ele renuncia à sua fé e abandona a igreja.
E é tudo. Tem até às 23:59 de terça-feira 9 de Março para participar. Have fun!
Nuno Oliveira e Cristina Correia
(e sim, nós também iremos criar as nossas versões)
PS: não se esqueçam de associar uma música aos vossos textos!
A Janela
Gosto de estar à janela espelhada.
Da minha janela vejo os carros a passar na rua e tento adivinhar qual é a cor do próximo.
Vejo as pessoas e as suas vidas a passar e tento adivinhar qual é a próxima a atravessar a passadeira.
Vejo um gato a subir à árvore do meio e tento adivinhar quanto tempo vai ficar a ver o mundo lá de cima.
Vejo um pássaro a pousar na minha varanda e tento adivinhar para onde vai.
Vejo a lua a aparecer e tento adivinhar como será a sua outra face.
A noite…
A noite inverte tudo. O espelho agora está voltado para mim.
Olho para mim e desvio o olhar.
Vejo o relógio parado lá ao fundo e tento adivinhar que horas são.
Vejo uma jarra em cima da mesa e tento adivinhar quantas flores já alojou.
Vejo uma foto e… sou eu, passo à frente.
Vejo uma porta e tento adivinhar qual a próxima pessoa a passar por ela. Espero.
Ninguém…
Ninguém…
Ninguém…
Fecho os olhos para conseguir ver o carro azul, o senhor de casaco castanho, os 5minutos, o rio, os continentes lunares, as 22 horas e 19 minutos, as 37 flores e eu.
NOTA: Este texto é da autoria da Natália de Jesus Silva
O Amor que Somos
Diante de um mar tão azul, com nuances de verde,cheio de manchas brancas que vão e vêm,suspirando uma brisa suave que nos acaricia...não há como não sentirmos o Amor que nos criou!
Sendo tocados por alguém que nos ama com ardor e gentileza,por quem sentimos o mesmo doce sentimento,não podemos deixar de acreditar neste Amor que nos alimenta todo o tempo e que ao mesmo tempo vida actual e despedida!
No sorriso de uma criança pura e entregue ao momento de alegria que vai passando num aperto de mãos sincero e carinhoso,num olhar que muito diz, vivenciamos momentos de verdadeiro Amor!
Quando esta escuro,por qualquer razão,o Amor é luz que surge em nossa consciência, traz junto a esperança de momentos melhores ,logo à frente!
O Amor é embriagador,envolvente,sereno,terno,é força, é paz que ganha guerras...a todo o instante o Amor procura podar folhas secas e ervas daninhas através do perdão... e então um sopro de vida entra em nós, que o compreende, que reconhece o que faz por aqui quem é e para onde se dirige...e era tão fácil este Amor no Todo que Um somos Nós!
O Amor que Somos
Diante de um mar tão azul, com nuances de verde,cheio de manchas brancas que vão e vêm,suspirando uma brisa suave que nos acaricia...não há como não sentirmos o Amor que nos criou!
Sendo tocados por alguém que nos ama com ardor e gentileza,por quem sentimos o mesmo doce sentimento,não podemos deixar de acreditar neste Amor que nos alimenta todo o tempo e que ao mesmo tempo vida actual e despedida!
No sorriso de uma criança pura e entregue ao momento de alegria que vai passando num aperto de mãos sincero e carinhoso,num olhar que muito diz, vivenciamos momentos de verdadeiro Amor!
Quando esta escuro,por qualquer razão,o Amor é luz que surge em nossa consciência, traz junto a esperança de momentos melhores ,logo à frente!
O Amor é embriagador,envolvente,sereno,terno,é força, é paz que ganha guerras...a todo o instante o Amor procura podar folhas secas e ervas daninhas através do perdão... e então um sopro de vida entra em nós, que o compreende, que reconhece o que faz por aqui quem é e para onde se dirige...e era tão fácil este Amor no Todo que Um somos Nós!
quarta-feira, 3 de março de 2010
Encarnes
Está a ver essa cicatriz que tenho nas costas? Levante a blusa e veja. Foi uma facada que o meu sogro me deu. É aquele que está sentado ali ao canto do quarto, está a ver? É ele, o pai do meu marido.
Espere, afinal a faca ainda está espetada... Podia tirá-la e fazer-me um penso? Um igual a esse que faz no meu pé. Acho que o meu pé vai cair qualquer dia, não acha?
Você não se cansa de andar sempre vestida de branco? É que o branco atrai muitas nódoas. Acho que deixei roupa branca dentro da máquina de lavar. Telefone para o meu filho, ele é capaz de estar em casa. A roupa não deve ficar muito tempo dentro de água, apodrece… não acha que ela apodrece? Eu acho que sim.
Olhe, e já agora pergunte ao meu sogro se ele quer que lhe faça também um penso. Ele é boa pessoa.
Já são horas de jantar? Não? Então quando forem horas venha chamar-me, não quero sair do quarto agora. A televisão que está na sala de refeições faz-me mal. Podia ir desligá-la? Ela é muito perigosa, nunca olho para ela. Foi ela que me fez isto ao pé.
Quando o meu pé estiver melhor vou sair daqui. Vou fugir! Posso deixar a faca aqui quando me for embora? É só para o meu sogro não conseguir espetá-la outra vez em mim.
Obrigada.
…eu se fosse a ti, não fazia isso!
…eu se fosse a ti, não fazia isso!
Deixa, hoje é um mau dia. Foi um mau dia. Não é sempre assim, sabes? Por vezes as coisas correm melhor, há dias bons, concordas? Há dias em que o vento sopra a favor, o sol aquece a face e a comida sabe melhor. Nem todos os dias podem ser bons, eu sei, mas vá lá, não fiques assim, hoje foi de facto um mau dia. Mas vais ver, as coisas melhoram.
Deixa, não faças isso, a sério! Vais-te arrepende-eer….
Bolas, deixa-te de merdas. Há dias difíceis, dias lixados, dias em que apetece mesmo dar um fim a tudo, deitar gasolina, pegar fogo e ver arder!! Chamas, chamas violentas e coloridas… a catarse, o delírio do fogo a devorar o que antes eram pertences e objectos queridos. Ardam, pois é assim que eu vejo o Inferno, um mar de chamas a pastar sobre tudo o que me é querido. Hoje foi um dia daqueles em que nada foi como tu planeaste. A coisa escapou-te da mão, não foi? Aconteceu o que mais temias.
Hoje foi assim, mas e amanhã? Porque olhas para mim e duvidas? Nunca duvidaste de mim antes….?! Sempre te ajudei, te dei a mão, te dei coragem para agir e te calei estes pensamentos estúpidos e impróprios que te estão a estrangular a vontade. Não tens vontade??? Tens, eu sei que tens, vá…. Admite, perante mim, admite, porra!
O que estás tu a fazer??? Não…. NÃOOOO!!!!!
Porque estamos a sair daqui??? Vá… deixa-te de coisas… estás a brincar, só pode, só pode, só pode, só pode…
Isto não está a acontecer, isto não me está a acontecer… Acorda, acorda meu animal magnífico, minha besta bruta, minha alma negra e hedionda. Mas o que foi que te aconteceu…?
Nunca me deixaste ficar mal, até hoje…. Será este o nosso fim? Vais mesmo levar a tua em diante? Vais mesmo deitar tudo a perder? Porquê? Porque estás mudado? Acreditas mesmo que estás mudado, portanto. Ele mudou, é um homem novo! O cristão renascido, o iluminado, o messias!! És a porra do messias, portanto, és o profeta que tantos esperavam, vais trazer mel e paz, portanto..! Deixa-te disso, é apenas um sentimento vazio!!
Tu não a amas, não te iludas, ela é como as outras, todas as outras que ficaram para trás. Todas as outras que te mentiram, gozaram, manipularam e fizeram de ti um completo idiota. Um bobo da corte, para sua diversão. Ela não te ama, é como todas as que ficaram para trás, onde elas merecem estar. Lá, no fundo daquele poço, no meio da serra. É lá que esta também merece estar. Ela não te ama, és uma aberração, deformado e imundo, um aborto da natureza, como podes achar que ela te ama. Foi apenas um mau dia, um mau dia para duvidares de quem tu és… nunca te deveria ter dito para a seguires… estúpido que fui, a culpa é minha… ah, que dia para esquecer! Quem me dera queimar este dia da tua mente!!
Vá, ouve a tua consciência, mata-a, está na altura, aperta-lhe o pescoço até suprires o seu último fôlego. Sempre foi assim que tudo acabou, sempre foi assim que as castigámos, a todas quanto te desprezaram e se riram de ti. É assim que tem que ser…
Não a deixes aqui, viva, ela vai contar tudo. Ela não te ama, foi um dia mau para ti, apaixonaste-te por um sorriso, uma ilusão, um delírio de amor. Ninguém te vai amar, nunca. Nunca!
Não te vás embora, …eu se fosse a ti, não fazia isso!
Vais ser apanhado, e eu ficarei preso dentro de ti para sempre.
Por favor…
Por favor…
Volta para trás…
Volta...
Volta..........
terça-feira, 2 de março de 2010
Fotografia
Pavement - Spit on a Stranger
Estamos na fotografia, eu e tu e mais um emplastro parvo a fazer-te corninhos por trás. Temos 12 anos. Tu sorris confiante, já consciente de que a lente é um só um pretexto para te imortalizar o sorriso perfeito de dentes direitinhos. Eu fiquei a olhar para o lado, como sempre. Mal se percebe que sou eu. Mas era isso ou a expressão enfiada de uma futura parricida.
Ficámos à sombra da nespereira da escola, o nosso território, de onde corríamos facções rivais armados de fisgas e atitude, onde combinávamos campeonatos de linguados como de mergulho em apneia. Tu tens umas calças de ganga rasgadas no joelho, antecipando a tendência dois anos, e uns ténis maltratados por fintas e remates das futeboladas com que ocupavas as muitas baldas às aulas – sempre que o fazias, eu olhava para o teu lugar vago ao meu lado como se me faltasse a muleta, o gémeo siamês, como se de repente estivesse mais só e mais nua à frente de toda a turma, enquanto a professora de português dissecava frases em complementos directos, sujeitos e predicados.
Eu, o cabelo demasiado curto, a velha saia de fazenda aos quadrados, feita à máquina pela minha avó, e a camisola de malha grossa que picava, uma mutante arrapazada a quem tentavam em vão vestir de menina.
Tinhas um skate velho – está aos teus pés na fotografia – que funcionava como uma extensão de ti. Aparecias na escola montado nele, gostavas de mostrar o teu domínio completo do equilíbrio, de exibir as manobras ensaiadas mil vezes como se fossem obra do acaso. Tu: “A velha marcou-me falta?”, a deslizar sobre ele em círculos à minha volta enquanto caminhava pelo pátio. Tu numa exibição de trapezista sem rede e eu a fingir que não tinha os olhos postos em ti como no homem do arame.
Eu saía com a tua prima, ao fim da tarde. Íamos para o parque dos eucaliptos e fumávamos às escondidas as cigarrilhas que ela roubava à mãe hospedeira. Aparecias quase sempre meia hora mais tarde, a deslizar, só para lhe dizeres qualquer coisa rápida a meia voz e nem me olhavas para a cara.
Agora, na fotografia, pareces estranhamente acessível. Era o penúltimo dia de aulas mas nem parece, pela minha cara. Tu estás feliz porque passaste à rasca e vai começar um Verão de praia e incontáveis tardes a treinar no half pipe improvisado do parque, um Verão inteiro para explorar as entranhas das miúdas recém menstruadas lá do bairro em beijos toscos de endoscopia.
Apanharam-nos juntos na foto por mero acaso. Tinhas acabado de te sentar ao meu lado: “Parabéns, grande croma. Já me disseram… Vais ficar na escola para o ano?”. “Não sei. Não me parece…” E os ossos a doerem-me da pergunta, os olhos a doerem-me de represas de lágrimas por rebentar, que não podia chorar à tua frente.
E é por isso, provavelmente, que estou a olhar para o lado na fotografia.
Cordeiro
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã era branca como neve. E para onde quer que ela fosse, o cordeirinho ia com ela.
Além do cordeirinho, ela tinha um pai e uma mãe. O pai era uma espécie de fantasma grisalho, que chegava a casa sempre a horas de a Mary estar a dormir na sua caminha de ferro forjado. A mãe, uma criatura assustadiça e despropositadamente agressiva, que fugia da Mary como se ela tivesse a peste negra, pois não fosse a maldita criança estragar-lhe o penteado, sujar-lhe o vestido haute-couture, ou pior, faze-la parecer uma domestica ou serviçal perante as suas amigas, ao tratar de uma fedelha maltrapilha e a cheirar a “campo”. O papá era mais complacente, deixava a Mary aproximar-se dele. Mas Mary não gostava de se aproximar muito, o cheiro a vinho misturado com tabaco e perfume de mulheres que ela não conhecia assustavam-na e deixavam-na inquieta. Mas mesmo quando se aproximava, reparava que os olhos do papá vogavam longe dali, p’ra outro lugar, onde a Mary era apenas uma intrusa numa terra estranha de alienação e deriva. “Papá?”, chamava Mary, entre lábios estreitados pelo medo e desconfiança. Invariavelmente recebia um rouco gemido seguido de um suspiro “minha querida filha,...” e um voltear de cabeça em tom fúnebre.
O papá também tinha ele um papá lá em casa, o avô de Mary. Como o avô gostava de Mary, adorava-a. Aliás, ele tratava a pequena infanta de cabelo escuro de fartos caracóis e olhos enormes e azuis como o mar invernoso com um afecto algo estranho e inusitado para uma criança daquela idade. Na verdade, ele tratava Mary como uma mulher, no sentido em que nenhuma criança devia jamais conhecer. As intermináveis horas passadas na cave ao colo do avô, a ser acariciada por aquelas mãos rugosas e ásperas, a sentir os lábios suados e a língua verminosa a percorrer-lhe o corpo alabastrino de anjo barroco abandonado numa vala imunda e atascada e lixo e cadáveres de crianças que nunca o chegaram a ser, o ruído do cinto a roçar no chão, tudo isso fazia parte do enorme e carinhoso amor do avozinho de Mary.
E o cordeirinho estava sempre por perto, abúlico e tão indiferente ao sofrimento da sua preceptora quanto um animal verdadeiramente torpe e estúpido como os cordeiros podem ser.
Mary cresceu, e o cordeirinho continuou perto dela. Para onde quer que fosse, o cordeirinho seguia.
E uma noite depois de encharcada mais uma almofada em lágrimas e gemidos silenciosos de horror e dor, Mary desceu à vergonhosa cave. Olhou-a uma última vez antes de decidir. E decidiu. Pegou na antiga foice do avozinho, cheia de ferrugem e restos mortais de ervas daninhas decepadas e avançou. E o cordeirinho avançou com ela. E nessa noite visitou o papá adormecido e dormente, a mamã frígida e ausente e o avozinho, que dormia profundamente com um sorriso de satisfação nos lábios finos e suados.
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã estava manchada de vermelho vivo...
segunda-feira, 1 de março de 2010
A modelo
Desde criança que idealizava este dia,
juntando pedaços de sonho e fantasia,
o acto sublime da criação,
transformação da ideia em carne, tecido e cabelo,
da minha boneca, a minha modelo
Pele macia como a de um querubim
quero-a toda, quero-a só para mim
prende-la dentro do meu coração
cheirar sua carne, sorver com sevícia
amar com violência cada beijo ou carícia
Vou perseguir a sua boca, roubar cada beijinho
Juntar o seu fôlego dentro de um frasquinho
E não contar a ninguém do meu tesouro
saber que ela vive porque o permito
movendo seu corpo de ardor e delito
Observo-a a sair da porta da escola
de ar confiante, transportando a sacola
cheia de lápis de cor e inocência
Agora morde o lábio, ata o sapato
eu aguardo cá fora pelo momento exacto
O tempo voa para ti, minha menina adorada
O tempo mata-me a mim, facada a facada
e deixa-me morto, alma imaculada
Eu lembro-me de ti, ainda nem tinhas nascido
recordo como era meu coração partido
e do cheiro das longas noites em branco
das visitas cruéis de amor paternal
das cicatrizes na minha alma imortal
Também eu boneca, fui divertimento
nas mãos de quem esperava alimento
somente descobri mais e mais sofrimento
E quando me sento em casa a ver a TV
é a tua carinha que em cada mulher se vê
repetida vezes sem conta, vezes sem conta...
e desperta o desejo numa espiral sem fim
de te fazer só minha, só para mim
E penso e repenso em como faze-lo
moldar-te a ti, a minha modelo
feita de carne, pele, osso e cabelo
A manhã nasce, sem deformidade ou defeito
E eu abro os olhos, encho o peito
do ar frio e seco sorvo o éter
e sei que nem me devo atrever a levantar
nem ir ao portão da escola por ti esperar
Hoje o dia é para na cama ficar
e deixar a demência lentamente arrastar
esfumar os sonhos da infância que não o foi
do papá que amava seu menino adorado
e do sexo carnal de amor decepado
Lembro-me de ti, do primeiro sorriso
deste-me tudo o que era preciso
agora quero mais, o que posso e não posso
moldar-te a face, quero tocar-te,
quero sentir o que é amar-te
vejo um corpo que agora floresce
teu peito, teus lábios, tudo em ti cresce
ao ritmo que a minha saninade senesce
E ver-te perfeita, corpo de bailarina
recordo outra vez a minha menina
de como ela era, de como ela é
aproximo-me agora, com novo alento
prepara-te boneca para o teu tormento
Adoro esse sorriso no colo do papá
ver-te abraça-lo quando ele te dá
um beijo terno nas faces rosadas
na minha mente recordo outros episódios
de dor, tortura, esgares e ódios
É por isso que agora te amarro e te conto
o que te vou fazer, ponto por ponto
explicar-te maninha o que é sofrer
talhar tua face, cortar teu cabelo,
fazer de ti a minha modelo
(The Gathering - Stange Machines)
Carregas nos braços a semente de todas as miragens. A impotência de todas as névoas. Ao fundo do horizonte, cavaleiros de um outro Apocalipse que surge num raio abrasador do ultimo sol terreno. Paras o baloiçar dos segundos enquanto brincas com as pedras e a poeira que pisamos no nosso caminho, cela húmida e extensa, curta e obscura, onde partem e chegam todas as alucinações da nossa mágoa sideral. À partida deixaste em todos nós a fome de toda a ansiedade reclusa em pequenos corpos disformes de quem nunca teve a manifestação corpórea de um olhar cúmplice. Talvez ainda tenhas o habito de beber de um trago todas as gotas de luxuria dos corpos que jazem a teus pés e que de degrau em degrau, empilham mais um cadáver até às portas de um tardio amanhã. Quando voltares ainda terás a fina poeira de uma explosão atómica penetrando teus pulmões como um parasita, e verás nos últimos ramos moribundos, o sorriso da nossa redenção. Cordialmente. Vulto de um amanhã hipotético
Carregas nos braços a semente de todas as miragens. A impotência de todas as névoas. Ao fundo do horizonte, cavaleiros de um outro Apocalipse que surge num raio abrasador do ultimo sol terreno. Paras o baloiçar dos segundos enquanto brincas com as pedras e a poeira que pisamos no nosso caminho, cela húmida e extensa, curta e obscura, onde partem e chegam todas as alucinações da nossa mágoa sideral. À partida deixaste em todos nós a fome de toda a ansiedade reclusa em pequenos corpos disformes de quem nunca teve a manifestação corpórea de um olhar cúmplice. Talvez ainda tenhas o habito de beber de um trago todas as gotas de luxuria dos corpos que jazem a teus pés e que de degrau em degrau, empilham mais um cadáver até às portas de um tardio amanhã. Quando voltares ainda terás a fina poeira de uma explosão atómica penetrando teus pulmões como um parasita, e verás nos últimos ramos moribundos, o sorriso da nossa redenção. Cordialmente. Vulto de um amanhã hipotético
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