terça-feira, 2 de março de 2010
Fotografia
Pavement - Spit on a Stranger
Estamos na fotografia, eu e tu e mais um emplastro parvo a fazer-te corninhos por trás. Temos 12 anos. Tu sorris confiante, já consciente de que a lente é um só um pretexto para te imortalizar o sorriso perfeito de dentes direitinhos. Eu fiquei a olhar para o lado, como sempre. Mal se percebe que sou eu. Mas era isso ou a expressão enfiada de uma futura parricida.
Ficámos à sombra da nespereira da escola, o nosso território, de onde corríamos facções rivais armados de fisgas e atitude, onde combinávamos campeonatos de linguados como de mergulho em apneia. Tu tens umas calças de ganga rasgadas no joelho, antecipando a tendência dois anos, e uns ténis maltratados por fintas e remates das futeboladas com que ocupavas as muitas baldas às aulas – sempre que o fazias, eu olhava para o teu lugar vago ao meu lado como se me faltasse a muleta, o gémeo siamês, como se de repente estivesse mais só e mais nua à frente de toda a turma, enquanto a professora de português dissecava frases em complementos directos, sujeitos e predicados.
Eu, o cabelo demasiado curto, a velha saia de fazenda aos quadrados, feita à máquina pela minha avó, e a camisola de malha grossa que picava, uma mutante arrapazada a quem tentavam em vão vestir de menina.
Tinhas um skate velho – está aos teus pés na fotografia – que funcionava como uma extensão de ti. Aparecias na escola montado nele, gostavas de mostrar o teu domínio completo do equilíbrio, de exibir as manobras ensaiadas mil vezes como se fossem obra do acaso. Tu: “A velha marcou-me falta?”, a deslizar sobre ele em círculos à minha volta enquanto caminhava pelo pátio. Tu numa exibição de trapezista sem rede e eu a fingir que não tinha os olhos postos em ti como no homem do arame.
Eu saía com a tua prima, ao fim da tarde. Íamos para o parque dos eucaliptos e fumávamos às escondidas as cigarrilhas que ela roubava à mãe hospedeira. Aparecias quase sempre meia hora mais tarde, a deslizar, só para lhe dizeres qualquer coisa rápida a meia voz e nem me olhavas para a cara.
Agora, na fotografia, pareces estranhamente acessível. Era o penúltimo dia de aulas mas nem parece, pela minha cara. Tu estás feliz porque passaste à rasca e vai começar um Verão de praia e incontáveis tardes a treinar no half pipe improvisado do parque, um Verão inteiro para explorar as entranhas das miúdas recém menstruadas lá do bairro em beijos toscos de endoscopia.
Apanharam-nos juntos na foto por mero acaso. Tinhas acabado de te sentar ao meu lado: “Parabéns, grande croma. Já me disseram… Vais ficar na escola para o ano?”. “Não sei. Não me parece…” E os ossos a doerem-me da pergunta, os olhos a doerem-me de represas de lágrimas por rebentar, que não podia chorar à tua frente.
E é por isso, provavelmente, que estou a olhar para o lado na fotografia.
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O que as fotografias podem trazer... é por isso que gosto delas, momentos guardados por mais tempo :) Very Nice!
ResponderEliminarcruel... um texto muito vivo e triste
ResponderEliminara tua escrita corta, sabias...?
we the high school geeks salute thee ;)
geeks will save the world, you know... :)
ResponderEliminarMuito obrigada, berlinde amigo. ;) só mesmo tu para me tirares do marasmo da preguiça.
Se tivesse a minha assinatura seria auto-biográfico. Sabes, guardo memórias destas numa caixa de cartão forrada a estrelas. Muito (como costumo dizer lá do outro lado). Obrigado Bichino :)
ResponderEliminarEna... obrigada, João. Que querido. :)
ResponderEliminarEsse é "quase" autobiográfico. As pessoas existem, o lugar também, as roupas, a aula de português e sobretudo a nespereira. :) Tem algumas liberdades poéticas: esta foto não existe e nós nunca tivemos aquela conversa final. Ah, e eu não fumava cigarrilhas aos 12 anos. :D
Mas, 20 anos depois, continuamos bons amigos. Melhores que na altura. :)