quarta-feira, 10 de março de 2010

O Erro - Desafio enredo




O homem de preto olha o céu carregado. Em três, dois, um segundos, agora. Começará a chover.
Mas não.
Agarrada à gigante pilha de madeira cuidadosamente disposta, como uma figura de proa agarrada ao mastro, um barco insano desafiando a tempestade por chegar, os cabelos como algas negras, a pele e as vestes brancas de fantasma ainda por ser, impoluta, a rapariga aguarda serena. Nada tem a temer. Tem três anjos à espera dela, e riem, estão sentados ali ao fundo, em cima daquele ulmeiro, chamam-na com as mãos liquidas. E ela quase sorri. Porque não conseguem vê-los, pergunta-se. Estiveram sempre ali, ali... Ou ao seu lado, cavalgando em selas de fogo, com braços feitos de gume a decepar as cabeças ímpias dos usurpadores.
Como é que eles nunca os viram em cargas de cavalaria alada, a quebrar o lacre do seu sétimo selo de justiça divina, eles e os seus cabelos de luz a cegar infantarias inimigas, a desviar flechas do peito branco e quente de raiva dela? Como é que eles nunca os ouviram sussurrar, verter-lhe nos ouvidos brandas palavras feitas metal liquido? Como é que eles nunca se aperceberam que não lutava sozinha com aqueles homens de andrajos, de repente senhores de todas as fúrias e vitórias?

A rapariga à espera do fogo tinha olhos de corça moribunda a desafiar lobos, rês de sacrifício que explodirá numa vingança celeste, uma luz à volta dela, a inocência como um insulto aos carrascos.
Ei-los de tochas nas mãos.
Já vinham com elas quando, há três meses a julgaram à revelia. Vieram busca-la, ainda a aurora não raiara, para a levarem ao grande salão. Lá dentro, homens de vermelho e negro sentados em grandes cadeirões. À sua passagem, os criados e pajens sussurravam “... a Bruxa...”. À sua passagem, os cães de caça calavam latidos. A rapariga chegou ao meio da sala ainda na penumbra e olhou-os a todos em silêncio. O homem de veludo vermelho, no centro da mesa, encheu de repente a sala com o eco frio da voz de metal.
- A que senhor servis?
- Falais de vozes que vos vêm dos céus, mas como tendes a certeza que vos chegam de lá?
- Porque vos trajais de soldado e renunciais às vestes de fêmea?
Ela jurara que não falaria com os usurpadores, mas ali suportava cada pergunta como o trespassar das espadas, de olhos fixos no crucifixo acima das cabeças dos senhores de vermelho e negro. Como não conseguiam vê-los, aos três anjos empoleirados no vão da janela com o vitral da Paixão, ou a este, a seu lado, gigante de enormes asas que respondia por si, tomando como seus a voz e o ar no peito dela?
Os hereges ali eram eles. E no fim, depois de todas as acusações se enrolarem em novelos de tempestade sobre o ar pesado da sala, ela falou:
“Sou Jeanne, de Domrémy, a Lorena, e se aqui me vêem foi porque assim o bom Deus o quis, não por obra do vosso engenho. Arrependei-vos pois pecais contra Ele ao condenar uma inocente por Si enviada. Não é vossa terra que pisais e sim do meu bom Senhor Carlos, o Sétimo, legítimo herdeiro por Ele designado. E foi a Sua Mão que me guiou a espada e a Sua Voz que me guiou a fúria contra vós. Só a Ele responderei e à sua Justiça. Retirai-vos do solo que não vos pertence e escapai ao fogo eterno.”
Há dois dias, o homem de veludo vermelho entrou inesperadamente na sua cela guardada por cinco homens. “Encomendai a Deus a vossa alma pois ireis morrer em dois dias.”, disse simplesmente. Jeanne mandou vir dois padres para a Confissão nessa mesma manhã.

O homem de negro ouvira-a por duas horas.
A rapariga soltou a vida toda em memórias, como um peso que se tira de cima, como se os seus dezanove fossem centos de anos e almas mandadas direito para o Purgatório. E enquanto as palavras iam caindo à sua volta como lastro, quase que irradiava dela uma luz que aquecia por dentro. Não havia ali ponta de culpa.
A rapariga era louca. Uma louca de Deus e, por isso, talvez uma santa.
Hoje, o homem de negro olha para o céu carregado. Em três... dois... um segundo, agora vai começar a chover, pensa.
Mas não.
E lembra as últimas palavras da Lorena, na cela da prisão onde aguardou o fim como uma benção. “Se foi Deus que mo ditou ao ouvido, já não sei. Tive a certeza que era Sua a voz doce que ouvia quando os ruídos da batalha desapareciam, quando à noite pousava a cabeça no braço. Mas agora duvido que tenha sido Ele a ordenar-me que lutasse para coroar um cobarde que me vendeu ao inimigo, como um pedaço de terra num acordo de paz. Não deve ter sido Deus... Deus não se engana assim...”

“Realmente”, pensou enquanto se afastava devagar, deixando para trás a enorme pira e a donzela ainda por arder, a mão a arrancar do pescoço o fio com o crucifixo e arremessando-o. “Deus não se engana assim...”
Um circulo de penas brancas ficou para atrás, debaixo do Ulmeiro da velha praça do Mercado.

5 comentários:

  1. Excelente Cristina! no mínimo profético...senti me pequena tal é a intensidade com que escreveste como se qq coisa do céu me viesse arrebatar!

    obrigado parabéns!

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  2. Se tivesse a arte de escrever para conto, gostava que ficasse assim. Parabéns mana.

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  3. Gostei muito desta frase "Em três, dois, um segundos, agora. Começará a chover." Mas neste texto o sol é muito :)

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  4. arrebatador. Muito viciante, li 3 vezes seguidas...!

    estás cada vez melhor, é o que te digo, um bilhete vencedor

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