segunda-feira, 15 de março de 2010
O lado
A esquerda era um lado, igual ao outro lado, tal como a direita era um lado, igual ao outro lado. Frente a frente, eram quase o reflexo uma da outra.
Mas a esquerda, que vinha sempre do lado esquerdo, trazia com ela, porque assim tinha de ser, uma etiqueta. “Torcida, torta, desajeitada, desastrada, mal-jeitosa, desagradável.”
Já a direita, que vinha sempre do lado direito, trazia com ela, porque assim tinha de ser, uma etiqueta. “Sagaz, astuta, esperta, desenvolta, entendida, ágil.”
A esquerda, sempre possuída pelo diabo, porque assim manda a tradição, foi levada para a praça pública. Ia ser queimada viva. A direita, menina bonita, oferecia o fogo e era aplaudida por isso.
A esquerda possuída, ia ser decapitada. A direita bonita, oferecia o machado.
A esquerda possuída, ia ser enforcada. A direita bonita, oferecia a corda.
A esquerda possuída, ia ser afogada. A direita bonita, oferecia a água.
A esquerda possuída, ia ser apedrejada. A direita bonita, oferecia as pedras.
A esquerda possuída, ia ser electrocutada. A direita bonita, oferecia a descarga eléctrica.
A direita bonita, que tanto gostava de presentear, jazia morta ao lado da esquerda possuída. O corpo é um bom condutor de electricidade. Todos os outros aplaudiram em silêncio, com a única mão que lhes restava e foram para casa pelo lado esquerdo da estrada.
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Este texto poderia fazer parte dos compêndios de política... e ecologia. Tanto tiramos da Natureza e aplaudimos esta eficácia bucaneira para delapidar o tesouro esquerdino do planeta. Um dia a direita vai-se arrepender amargamente de ter vivido sempre à custa da esquerda... Pena a esquerda nunca ter sido capaz de apresentar argumentos convincentes para além do simples sonho de ser... morram as duas e nasça uma nova forma de simetria. Quem sabe radial, como as estrelas do mar...?
ResponderEliminarAcho que o Louçã e o Jerónimo iam gostar muito de ler este pequeno conto. E, ao Sócrates, talvez fizesse mesmo muito bem lê-lo. :D
ResponderEliminarTrocadilhos políticos à parte, é verdade que tudo o que vinha da esquerda, dos canhotos aos comunistas, sempre foram demonizados. E a forma como os classificamos e como essa qualificação passa para a vida quotidiana, isso fizeste muito bem.
Adorei o tom surrealista, o estilo contracorrente, a ironia, a simplicidade e profundidade misturadas tão bem (como sempre), a concisão a dizer tanto. Temos autora... e das boas. :)
Obrigada pelos comentários. Engraçado que nunca pensei em política quando escrevi :D A base foi mesmo a mão esquerda em relação à direita :)
ResponderEliminarÉ claro que não pensaste! Esquece, são só as nossas mentes retorcidas a fazer analogias óbvias. :D
ResponderEliminarNão pensei mas são analogias muito interessantes, agradeço. Talvez um dia nasça mesmo uma simetria radial, mais "politicamente correcta e justa" :))
ResponderEliminareste texto tem qq coisa de biblico de dualidades é quaze uma lei!! fantastico Inês tu sim tens uma escrita correta real e justa , envolves até ao fim:))
ResponderEliminarQue interessante análise bilateral! Esquerda e direita. Simetria, no entanto, assimétrica. Uma perspectiva deveras interessante, a tua. E a canção em perfeita combinação! Bravo!
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