terça-feira, 2 de março de 2010
Cordeiro
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã era branca como neve. E para onde quer que ela fosse, o cordeirinho ia com ela.
Além do cordeirinho, ela tinha um pai e uma mãe. O pai era uma espécie de fantasma grisalho, que chegava a casa sempre a horas de a Mary estar a dormir na sua caminha de ferro forjado. A mãe, uma criatura assustadiça e despropositadamente agressiva, que fugia da Mary como se ela tivesse a peste negra, pois não fosse a maldita criança estragar-lhe o penteado, sujar-lhe o vestido haute-couture, ou pior, faze-la parecer uma domestica ou serviçal perante as suas amigas, ao tratar de uma fedelha maltrapilha e a cheirar a “campo”. O papá era mais complacente, deixava a Mary aproximar-se dele. Mas Mary não gostava de se aproximar muito, o cheiro a vinho misturado com tabaco e perfume de mulheres que ela não conhecia assustavam-na e deixavam-na inquieta. Mas mesmo quando se aproximava, reparava que os olhos do papá vogavam longe dali, p’ra outro lugar, onde a Mary era apenas uma intrusa numa terra estranha de alienação e deriva. “Papá?”, chamava Mary, entre lábios estreitados pelo medo e desconfiança. Invariavelmente recebia um rouco gemido seguido de um suspiro “minha querida filha,...” e um voltear de cabeça em tom fúnebre.
O papá também tinha ele um papá lá em casa, o avô de Mary. Como o avô gostava de Mary, adorava-a. Aliás, ele tratava a pequena infanta de cabelo escuro de fartos caracóis e olhos enormes e azuis como o mar invernoso com um afecto algo estranho e inusitado para uma criança daquela idade. Na verdade, ele tratava Mary como uma mulher, no sentido em que nenhuma criança devia jamais conhecer. As intermináveis horas passadas na cave ao colo do avô, a ser acariciada por aquelas mãos rugosas e ásperas, a sentir os lábios suados e a língua verminosa a percorrer-lhe o corpo alabastrino de anjo barroco abandonado numa vala imunda e atascada e lixo e cadáveres de crianças que nunca o chegaram a ser, o ruído do cinto a roçar no chão, tudo isso fazia parte do enorme e carinhoso amor do avozinho de Mary.
E o cordeirinho estava sempre por perto, abúlico e tão indiferente ao sofrimento da sua preceptora quanto um animal verdadeiramente torpe e estúpido como os cordeiros podem ser.
Mary cresceu, e o cordeirinho continuou perto dela. Para onde quer que fosse, o cordeirinho seguia.
E uma noite depois de encharcada mais uma almofada em lágrimas e gemidos silenciosos de horror e dor, Mary desceu à vergonhosa cave. Olhou-a uma última vez antes de decidir. E decidiu. Pegou na antiga foice do avozinho, cheia de ferrugem e restos mortais de ervas daninhas decepadas e avançou. E o cordeirinho avançou com ela. E nessa noite visitou o papá adormecido e dormente, a mamã frígida e ausente e o avozinho, que dormia profundamente com um sorriso de satisfação nos lábios finos e suados.
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã estava manchada de vermelho vivo...
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ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminar"Foice", "cordeirinho", "lã manchada de vermelho vivo"... dá para ouvir a lâmina.
ResponderEliminarComo sempre, demais! :)