sábado, 27 de março de 2010

O Transeunte




O ar pesado infiltrava-se entre as preces devotas que zumbiam baixinho. Era chegada a hora…

É o momento final, dentro em breve, tudo estará envolto na bênção da paz, ele irá partir e resta-nos a nós, que atracados à costa como barcos sem vela, vê-lo-emos vogar pelo mar alto. Juntem-se agora irmãos e irmãs, acompanhemos este nosso irmão na hora da despedida.

À sua volta, um véu de angústia, de apreensão. Tinha sido uma longa jornada até chegarmos aqui, à beira do desconhecido, prestes a trespassar a arcada velada que guarda o portal sagrado. Para lá dela, o Outro Mundo….

Nós, que ficamos para trás. Nós, os néscios e pueris. Nós, que amamos sem saber, sabemos que haverá menos um de nós, entre nós. Mas para lá destes nós que nos enlaçam premente, entre estes atilhos que amarram nossas almas umas às outras, do entrelaçar de vozes que sobem ao ouvido do Criador, Te rogamos. Leva o nosso irmão pela mão, Senhor. Firme, paternal, jovial. Segredai-lhe que nada há a temer, para além da espiral de Luz que de Vós ilumina, eu nada temo. Não o deixeis correr atreito a perigos, fascínios e desejos. Rogai por esta alma que transita Senhor, ele é um dos nossos, parte de Vós.

Os mais novos oferecem-lhe penas. Os anciães, de mansinho, pousam um a um a mão sobre a sua testa, esboçam um frágil sorriso de confiança por entre os olhos marejados de saudade. Mas a tristeza não rasga a fé que os une, o lamento é pela separação, não pela partida. A dor é de tanto amar um dos seus, o amor é por tanto e tudo o que dói quando chegado o momento. O momento é de despedida, um ‘até breve’ sonhado reencontro desejado. Um aceno ao passageiro que atravessa o rio. Um rio que nos aparta mas nunca nos separa, em suas águas a proximidade do eterno, teias de suspiros cobrem a face do transeunte. Um véu assenta sobre sua existência.

Cessa. Apaga-se a minúscula chama. O portal foi transposto. Rumo ao Outro Mundo.

Em aquiescência, vergados sobre si mesmo, a família e companheiros prestam uma última homenagem antes do início do novo ciclo da Alma Eterna. Rumo ao seu destino, envolto na voz sublime de seus pares, o Ser desvela os segredos da Criação.

Em silêncio e no divino privilégio que só é permitido aos favoritos de Deus, observam e registam o paradeiro do seu irmão escolhido.

No fim dessa mesma madrugada, nascia feliz e saudável a criança. Com o primeiro choro sossegou seus pais e alegrou seus pares.

Os anjos cantavam aleluia. Estava cumprido o desígnio Maior. Um dos seus mais amados irmãos voltava à Terra. O Escolhido de Eloim tinha partido de sua casa e transposto o Portal.

No mundo dos Homens surgia uma luz por entre a escuridão dos dias tenebrosos que se viviam. Era o nascimento do novo Profeta.

2 comentários:

  1. Ninguém morre sozinho, ninguém quer morrer sozinho e os que ficam necessitam destes rituais para sentirem que, mesmo assim ainda há esperança numa salvação depois de a chama se apagar. E como em todos os ciclos surge sempre "uma luz por entre a escuridão dos dias tenebrosos". Gosto muito de todos os eufemismos que usas. Um texto muito bem nascido, luz :)

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  2. E os anjos cantam aleluia...quando nos brindas com textos como só tu escreves, e surgiu Luz!!:)

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