Há muito tempo atrás... Surgem dois seres opostos, sendo eles pouco definidos energeticamente. Começaram por comunicar numa linguagem que era só deles. No ínicio, daquilo que parecia ser um diálogo, surgiram muitas discórdias e conflitos. Certo dia, dá-se um fenómeno, como que o desencadear de uma enorme tempestade, com raios e relâmpagos. A energia da escuridão, que teimosamente vibrava negativamente, sentiu-se perder no seu ser e toda essa tempestade despoletou em si reactividade ao medo, ódio e raiva. A Luz que vibravana sua energia mais pura e divina, sentiu toda a dor e angústia que o seu irmão dual emanava. Chorou e despertou uma nova emoção no planeta. Foi um desbloquear de emoções de dois opostos que se atrairam e que através das suas diferenças, ambos contribuiram para a sua Cura. Deu-se a fusão e um enorme despertar que se transformou numa infinita chuva de estrelas, através do Universo Cósmico. Assim, esta importante União, através da Compaixão, Amor Incondicional, aceitação e Perdão deu lugar ao portal de Luz. A enorme Ascensão através do tempo, até ao último degrau que nos transporta e eleva até ao mundo do Divino que habita em nós. Somos habitados pelo ilimitado e passa muitas vezes, por aceitármos coisas muito súbtis, como perceber pequenos sinais e acima de tudo, que somos limitados como humanos, mas grandiosos de Alma. Abraçaram-se e dançaram durante muito tempo, a Escuridão e a Luz.
Tenho tudo tão apertado cá dentro. Abro os olhos e com uma certa mágoa levanto-me. Eles ainda ardem, mas mesmo assim olho para o horizonte e penso que nunca vou chegar a ele. Começo a andar à beira-mar. De repente oiço o meu nome a ser chamado e volto-me para trás. O corpo continua onde estava e com um sorriso irónico diz-me “cobarde”. Só quando a espuma da onda chegou à ponta dos meus dedos é que reparei que… Lembro-me do toque suave das tuas mãos e apetece-me agarrar a onda como se por segundos pudesse entrelaçar os meus dedos nos teus. É que reparei que... continuo sempre no mesmo sítio. Por mais que ande, tenho sempre o corpo preso, à beira-mar, àquela areia e a suplicar por algo que quero, mas nem para isso tenho coragem. Nunca vou chegar a ele.
“Cobarde”
Cala-te!
“Que linda falua, que lá vem, lá vem. é uma falua que vem de Belém…”
Não há faluas em alto mar. Cala-te, cala-te!
“Eu peço ao Senhor Barqueiro que me deixe passar, tenho filhos pequeninos não os posso sustentar…”
Não os posso sustentar, não posso! Eu sei que não posso! Ele é tão pequenino, tão grão de areia que nem sei se tenho realmente sonho…
“Passará, não passará, algum deles ficará, se não for a mãe à frente, é o filho lá de trás.”
Cala-te monstro! É tão pequenino, não fiques com ele também. Maldito sejas, maldito corpo do inferno! Lembro-me do toque suave das tuas mãos e apetece-me agarrar a onda como se por segundos pudesse entrelaçar os meus dedos nos teus.
“Cobarde”
Voltei-me e continuei a andar, sem olhar para trás, enquanto ele continuava a cantar a mesma música com o mesmo sorriso de nojo. Cobarde, por não saber realizar os meus sonhos, cobarde, por não saber viver, cobarde, por não saber morrer, cobarde, por… por… Olhei de novo o horizonte. Não vou chegar a ele. Mas quero-o tanto, tanto, tanto… Talvez se correr, talvez se suster a respiração, talvez se nadar com muita força, talvez se… tivesse um barco. Desvio o olhar de novo para o corpo. Parou de repente de cantar e ficou com um ar muito sereno a olhar para mim. Tão sereno que até nem parecia o mesmo corpo. Naquele instante senti que tinha conseguido alguma coisa… um barco. Como pude ser tão ignorante… um barco! Quando me voltei de novo para o horizonte ouvi nas minhas costas um novo sorriso irónico.
“Cobarde, não sabes remar… Um barquinho ligeiro andava ligeirinho andava no mar. a nuvem passou, o mar se agitou…”
Lembro-me do toque suave das tuas mãos e apetece-me agarrar a onda como se por segundos pudesse entrelaçar os meus dedos nos teus.
O que importa hoje, nesta segunda-feira perdida no começo de Agosto? O que vai cá dentro, lá fora, no mundo, nas gentes, noutros terrenos que nem conhecemos o nome? Sabemos alguma coisa do que realmente se passa? Sim. Há homens e mulheres de um e de outro lado.Figuras. Homens e mulheres que de repente não têm identidade, não têm vida. Que de repente são só um número. O número setecentos e quarenta e oito, por exemplo. Que não conta para nada. É apenas uma série de algarismos sem sentimento. Ou as suas sombras. O escuro que escorre do tempo quente. Se nos toca? Não.Entretém. Como os tigres, os furacões, ou os explosivos. Para que servem as notícias? Essa procura desenfreada de franjas do alheio? De vítimas, de epidemias, de coisas más. De medos. De testemunhas oculares. Tragédias e loucuras várias...Digam-me o que é importante? O que importa nos noticiários, ou na pessoa aí ao lado que não pára de respirar? Digam-me, gostava de saber. Lembro-me dos anos ingénuos em que trabalhei nos tribunais(aberratio legis). Era um entusiasmo que me elevava a uma insustentável leveza do ser.E nem tinha lido ainda o Milan Kundera. Queria ser justa e servir o interesse público (ab absurdo), e no fim das alegações apregoava às vezes aquela frase ridícula..Peço justiça! (Ab immemorabili...!!) E hoje, apenas sinto uma inquietação na vida, o não ter tido tempo de dizer a algumas pessoas que as amava muitooooooooooooooooo! Descobri tarde que amei muito aquela mãe, mulher simples e fantástica que me ensinou tanta coisa boa. E alguma etiqueta...como a de comer de boca fechada. De facto é muito mais elegante (aberratio rei) e serve para o curriculo (a fortiori). Depois fui mudando..até que encontrei um rapaz giro (a facto ad jus non datur consequentia), mas durou pouco tempo (a non domino, ad effectum videndi...). E fui andando (carpe diem)..andando..e sou esta pessoa aqui. Sei que não escrevi nada que valha a pena, a não ser provocar um sorriso. Talvez.
Sim, a consciência espiritual é imortal. Que arma do mundo poderia ferir o espírito? O fogo não pode queimá-lo, e nem a água pode molhá-lo. O corpo pode cair e desfazer se no seio da terra... Mas a entidade espiritual é pura Luz e é eterna. Por isso, não te lamentes...
Nenhuma tumba pode conter o Ser real, que é do Céu. Se o corpo desce de volta à terra, o espírito ascende às estrelas. O teu lugar não é de baixo de sete palmos de terra. Nada disso. O teu lugar é lá em cima, no reino celeste.
Não te lamentes... Porque a vida segue... Encontros e desencontros acontecem. Chegadas e partidas também. E tudo isso faz parte do jogo de viver. E segue em frente... Sempre a aprender Ah, chega de choro e de dor! Limpa o coração do luto e resgata a sua Luz. O que passou, passou. Todo dia é chance de recomeço, para aprender e crescer.
Ah, não te lamentes... Porque as estrelas brilham lá em cima... E elas nada têm a ver com luto e túmulos cinzentos. Como falar de visitar os mortos, se nada morre? Que sentimento estranho é esse, que faz o homem olhar para baixo? Que o faz olhar para a tumba, e não para o Céu? Que só fala de sete palmos abaixo, dentro da terra escura? E que não percebe que há outros planos de manifestação, algures?... Sim, planos que não são percebidos com os olhos físicos, mas só na Luz do coração.
Não te lamentes... Olha para o Céu, pois tem festa lá em cima também. E é festa cheia de vida, onde os espíritos dançam na Luz. Ah, eles não nascem nem morrem. Só entram e saem... E seguem sempre vivos. Então, não te lamentes... Não te lamentes...
Ninguém morre. O espírito é Borboleta de luz. Voa além da linha do horizonte... Sim, sempre vivo. Como deve ser. Na Luz.
Isto começou à meia noite numa cidade barulhenta e suja, com casas de pilares em decadência misturadas com campos de ervas sem nome de socalcos traiçoeiros, e hastes de bambu ultrapassando a altura de um homem. Nunca soube o nome da cidade ou a etnia do seu povo, nem recordo as suas feições, excepto três. Andava à deriva quando elas me apareceram. O que faz aqui? Não sei ,nem sei porque estou aqui. Estamos de férias, disse a mais velha, este é o lugar ideal para usar sabão de alcatrão e tirar o fedor dos sovacos. E riu-se. A mais nova disse eu quero goma de macaxera branca, por causa da sífilis, e riu-se perdidamente. A mãe estava vestida a rigor, com um comprido vestido vermelho com lantejoulas e uma coroa de diamantes na cabeça loira. A mais nova e que também era loira, vestia um comprido casaco. É de marta, sabes? Toquei nas costas, senti a suavidade do animal. Queres ir connosco à tasca? Aqui só há tascas, deves saber. Sorriu-me ironicamente. Anda, é lá que ele te espera , tens que vir senão somos culpadas. Arrastei-me no vestido rasgado das ravinas da cidade, segui-as, elas riam por entre a multidão e na tasca lá estava ele, duro, alto, sisudo. Quem é? É o realizador, o teu realizador. Mas não o conheço! Nem ele a ti, mas escolheu-te. Porquê? Para lhe pertenceres. E ele diz, anda, já, quero possuir-te, já, agora mesmo. A mãe diz foge! Corro pelos matagais, tropeço nas pedras, corro, corro até ao centro da cidade. Há um filme a passar, a multidão delirante assiste, não há telas no filme,ele projecta-se no ar, em todo o horizonte como a lua. Ouvem-se gritos bestseller! Bestseller! Fujo,entro numa casa sem janelas nem portas, apenas um corredor imenso, chego ao fim, enclausurada, e as mãos dele apertam-me, o seu corpo aprisiona-me,e diz é agora, eu tinha-te dito, é agora, é já. A respiração acelerada, o medo, e o desejo que me invade, irracional, como será, que me dará, que quer de mim, como será ?
Espere, eu vou, eu quero-o. Ele parou, tenso, sério, a imagem do erotismo puro, do desejo puro, da loucura que me transportou ao corpo dele e nele me desfiz. E depois, disse-me, agora vai, eu encontro-te por aí. Olhei-o, pareceu-me ver ternura nos olhos duros.
Encontrei a mãe e a filha a beber shots. Já nos curámos, sabes? Diz a mais nova. (Creio que tive pena.) Quando o verei? A mãe diz-me, já reparaste que estou vestida de cor de rosa com pompons, e vou ser majorette?
E riu-se, cuspindo para o chão.
A filha diz-me, já reparaste que já não uso o casaco de marta? Agora ando nua. Toquei-lhe nas costas, senti a pele do animal. E disse-lhe, tens agora que curar a pele do acne e das espinhas.
Nunca mais as vi, mas também nunca mais voltei à cidade. Já não sei onde fica. Mas ele sabe.
Avançamos hesitantes. Arrastamos connosco as feridas de guerra que, para sempre, nos marcarão quem verdadeiramente somos, soldados ou generais, todos fazemos parte do rol de testemunhas que um dia assistirá ao derradeiro sonho do Homem. E porque sonhamos, sabemos, sabemos que a obra ficará incompleta, que pelo caminho deixaremos estilhaços de esperanças inférteis que nada irão gerar a não ser um enorme manto branco vazio de significância ou actos de glória. Não há glória no inferno colectivo em que optámos viver, não há plenitude da alma quando se soçobra por entre mentiras e a pequena mesquinhez do quotidiano, não há êxtase maior quando a exultação é a do prazer menor do momento, da oportunidade, da violência exalada pelos poros de uma sociedade doente, decadente, diferente daquilo que foi o sonho das eras distantes, quando a Terra foi semeada por deuses e astronautas, qual Jardim do Éden, decorado de fantasia e benevolência, uma esfera azul e verde a pairar sobre o firmamento, para deleite do Criador, a sua Opus Magna. Mas o verde tornou-se negro e o azul vermelho, à medida que a mente criminal e egoísta da criação poluía de modo insensato, incauto e hedonista a obra dos mestres, ao avançar pelo Jardim, tornando-o vazio à sua passagem, branco aos olhos de quem derrama eternamente as suas lágrimas de pesar e desgosto. Contudo, avançamos, rumo a algo que, aqui dentro, sempre nos soou a familiar, embora o medo nos faça constantemente olhar para trás, o medo que a grande devoradora nos apanhe e nos faça reféns de sua espiral quebrada para todo o sempre…
A morte da inocência tornou-se indelével nas páginas da História, marcada a fogo no Livro dos Dias, tingindo de vermelho a Serpente da Árvore da Sabedoria, deu cor ao fogo que nos consome por dentro, o fogo da guerra incessante, o fogo da luz branca que nos cega, o fogo da paixão e da luxúria que insistimos em arrumar no mesmo coração onde guardamos o amor. Pois estas são imiscíveis, são energias contraditórias mas complementares, sem contudo nunca se misturarem, como sangue e fogo e ar e luz.
Algures em nós, dentro de um compartimento secreto, onde a guerra não chega, onde a luz é de todas as cores, onde o sangue flui livre e nutre com vigor a nossa prima essência… algures ai está a entrada de volta para o Jardim, de volta ao seio da Mãe, onde o nosso tecido se une a um desígnio maior, de compreensão, humildade, religação (tantas vezes mal interpretada e denominada de 'religião') com a rede de vida que nos suporta, cooperação entre mentes empenhadas e protecção dos mais frágeis. Redescobrimos que em cada um de nós existe um pouco de paz, redescobrir em cada um a arte da cor e a união do sangue entre a grande família do Jardim.
Quero esse sonho. Quero sentir-me assim, antes de adormecer, por fim. Sentir que um dia, para lá do sonho, cada um de nós poderá recuperar a sua inocência ao deparar-se com as portas do Paraíso Perdido.
Sentados numa laje de granito, a contemplar o rio selvagem a correr adestrado entre meandros, lá em baixo, por entre o vale encaixado entre vertentes íngremes, memórias verticais de uma Terra ancestral, de dias distantes, algures nas memórias varridas pelo tempo, eras antes de Adão ter perdido a sua divindade e de Eva ter aprendido a domar a serpente com o seu corpo de êxtase…
Sentados, encaixados entre braços e pernas, ele protege-a dos monstros deste mundo e dos outros que se escondem para lá das sombras, cobre-a com o seu corpo e envolve-a entre sonhos e murmúrios. Ela responde, inspira profundamente e deixa-se cair pura e inocente no enleio onírico de quem se apaixona e se deixa adormecer. O dia segue manso, entre brisas tépidas que agitam as cerejeiras bravas e os pinheiros, cheira a campo, aquele campo frutuoso, prenhe de vida, cor e zumbidos, aquele campo imenso e silvestre que se estende por entre fragas e pequenos prados floridos e veredas de riachos sibilantes. A Primavera beija-os e eles beijam-se entre si, enamorados pela Primavera das suas vidas, hipnotizados pelos corpos adolescentes que tocam com alguma insegurança, mas decididos a explorar cada pedaço de pele febril de antecipação, com o cuidado de quem toca em algo precioso, tocam na boca um do outro e trocam olhares meigos por entre suspiros descuidados, incautos, sem pensar no dia de amanhã ou no que os seus pais poderiam pensar. Ela olha à sua volta e sente-se profundamente descontraída e desinibida, sente-se a desabrochar, tal como as papoilas e as camomilas, ela irá abrir as suas pétalas e dará de oferta o seu âmago doce e intocado. Esta tarde seria sua. Tal como o seu corpo feminino, delicado, frágil e pulsante seria dele.
Era assim que ela o recordava. Terno, paciente, cavalheiro, um cavaleiro que a salvava da aldeia suja e atrasada onde se sentia presa e asfixiava, desejosa de ar, ar para respirar, ar para voar. Era preferível que assim fosse, era a sua fantasia, o seu desejo de cavalgar o vento, domar as fragas com um beijo e tolher as flores do campo só para as atirar aos ares limpos e perfumados e deixá-las cair sobre o seu colo de menina que o deixara de ser.
Desde que o sangue chegou que ela se procurava a si mesma, partia em busca do seu eu, em busca da meninice e dos dias de inocência pueril. Mas o sangue é um veneno e um licor de vida, uma benesse disfarçada, uma maldição encantadora. Desde que ela sangrara que a tratavam de maneira diferente, a mãe tirara-lhe as bonecas e o pai obrigava-a a ficar em casa, fechada e rosnava quando os mancebos imberbes passavam por sua porta a atirar miradas de soslaio à janela. As saias tornaram-se mais compridas e pesadas, o peito era apertado para disfarçar o intumescimento dos seus pequenos seios e os lábios eram controlados pelas velhas que a seguiam sempre com olhar reprovador, com olhos semicerrados quase cobertos por lenços negros e bocas engelhadas pelo vazio dos anos de pesar de lutos sucessivos pela avó, mãe, pai, marido, tio, pois esta era a sina das mulheres da aldeia, tornarem-se adultas, perderem a liberdade, casarem, servirem o amo, chorarem o primeiro luto e ficarem para sempre tingidas de negrume, como ex-votos feitos de carvão que se acumulam entre um canto sombrio da capela da aldeia. O negro das vestes, o negro das faces das mulheres no sábado de manhã depois do serão dos homens na taberna para festejar o final da semana de trabalho, o negro das unhas de seu pai, o negro dos cantos da cozinha onde sua mãe a prendia amiúde, o negro do fogão onde se queimava para se sentir viva, o negro das horas que passava a brincar na eira, com as outras meninas e meninos, livres, inocentes, entre os ventos tépidos da Primavera, agora fechadas dentro do veludo negro da sua mente.
As sombras são traiçoeiras, criam ilusões, falsas esperanças e excitação desmesurada por algo que ao parecer fascinante se revelará bruto, vazio e banal. Nas sombras crescem desejos, fazem-se pactos com o demónio e promessas impossíveis a santos e anjos. Nas sombras, os anjos parecem deuses e os deuses podem ser fatais, são coléricos e dados a enfados, são incapazes de ver para além da sua pseudo-divindade, tal como Adão, pseudo-filhos de deus revelam as suas cores na escuridão das sombras, onde a inocência é cega. Nas sombras aparecem pretendentes que sussurram versos aos ouvidos das meninas incautas e sonhadoras. Nas sombras fazem-se promessas que não se podem confessar à mãe, marcam-se encontros de amor prometido, casam-se os noivos que hão-de ser, entregam as donzelas seu coração aos cavaleiros destemidos que lhes prometam cânticos e panos de cetim branco. Por entre as sombras ela escolheu o seu cavaleiro, estava segura do seu amor, da sua resposta afável a seus caprichos, da sua paciente forma de estar e a ouvir, dos seus olhos encantadores, dos seus convites para explorar outros mundos e sair das sombras e respirar debaixo do Sol. Com a chegada da hora mágica viria o troféu, a eleição e todo um reinado de pureza e beatitude. Com o avançar da noite, ela mergulhava entre doces promessas e convites, iria com seu cavaleiro até ao fim do mundo, descobrir-se a si enquanto se descobriria em seus braços. Nos sonhos, todos podem ser felizes, felizes para sempre…
A noite dança sob a esfera que rodopia eterna em volta da grande luz. Cobre-se de negro o mundo dos Homens, mas ilumina-se o coração de uma donzela afogada em suspiros. Quando o negro dos dias dava lugar à luz dos seus sonhos, ele chegava, o seu cavaleiro, elegante, amável e sensível, viria salvá-la da boçalidade e pequenez das gentes rurais, levá-la para o palácio e cobri-la de rendas e perfumes exóticos...
Era muito melhor assim, uma princesa-noiva, sempre bela e livre. Era melhor assim, pois assim não se recordava do sangue. Do sangue que mudou duas vezes a sua vida. Do sangue que dissolveu a menina que havia em si. Do sangue que escorreu por entre as suas pernas quando naquela tarde de Primavera ele a levou para o monte, a seduziu, a enrolou em seus braços e, sem qualquer elegância, amabilidade ou sensibilidade lhe rasgou a última memória de inocência, deixando-a marcada a negro em seu coração, desolada, aprisionada para sempre à fantasia de como tudo deveria ter sido, algures entre as fragas a contemplar o rio, que para ela iria para sempre correr vermelho.
Deixo sempre as coisas chegarem até a mim de forma natural. Mas é no contacto espiritual íntimo que vêm as informações mais profundas como esta que compartilho agora.
Ele traz no pescoço uma cobra enrolada, segura na mão direita um tridente e está sentado sobre um tigre. Tudo muito forte e muito vivo.
Num diálogo mental, ele perguntou me :
"Tu tens medo?"
Sem pensar respondo que não. Completo dizendo que tenho amor.
Em seguida, ele mostra me que a sua pele é azul porque bebeu o veneno do mundo; então, aparecem as feras lutando num patamar abaixo da montanha. Homens caçando leões e tigres, seres sendo devorados, Ele explica me que essas energias representam o nosso ódio, raiva, luxúria, ganância. Energias que estão misturadas no homem.
Subitamente, tudo se transforma em luz e vejo um oito luminoso e dele surgir a nossa galáxia. Neste momento, assisto ao alinhamento planetário que está acontecendo agora. Ele mostra-me a Terra recebendo essas influências e, de repente, sou trazida novamente para o meu corpo físico através de um feixe de luz. Ele indica me que o alinhamento está dentro de nós, que tudo está dentro de nós, que somos o centro da vida, da consciência.
Enquanto ainda estava sem palavras, ele diz me que o que transforma e liberta é o amor e o perdão.
Todos os que estão errando, criando um clima terrível em torno de nós, na verdade, mesmo que não o saibam, estão implorando amor. Isto parece, à primeira vista, um total absurdo, mas não é, podem acreditar. Somos Amor e por ele fomos criados. Esta é nossa essência, indiscutivelmente. Quando nos afastamos dela, caímos, sofremos,esquecemos nos de nós mesmos, passamos a viver na ilusão, e, usando da liberdade de escolha que nos é inerente,vamos por caminhos que nos podem manter enganados por muito, muito tempo...
Podemos preencher nos, apaziguando a ânsia que nos leva a bater em portas enganosas, que nos faz acreditar em propaganda mentirosa, que nos faz viver um roteiro pobre e insatisfatório, que no fim nos premia com um vazio ainda maior!
Viver é amar e não amar é estar morto, verdadeiramente, mesmo ainda no corpo de carne. Tão simples assim, tão fácil e complicamos tudo, criando para nós exigências pesadas, buscando honrarias e condecorações que muitas vezes apenas nos tornam a vida ainda mais pesada, invejada, difícil.
Nem precisa vir de fora esta recompensa, pois mesmo que ninguém reconheça qualquer bem que fazemos a nossa alma comemora cada uma dessas conquistas, com uma festa completa em nossa consciência! Não há prémio maior, amar o que caiu.
Perante o universo, nus
Pois nada nos cobre a não ser a fraca carne
A armadura ficou lá em baixo, esquecida
Por entre pedras e poeira dos dias do passado
Por entre o sopro que já não se sente
Do frio vento de leste, da memória
De dias obnubilados, entre ruínas
Da cidade que se afunda no horizonte
Onde nos perdemos para não mais sermos achados
Perante o espelho, a sós
Reparamos nos olhos que olham através de nós
Tememos o estranho que nos assoma, distante
Errante, por entre os gélidos cristais de vidro
Absorto, no reflexo dos labirintos onde perdemos a nossa inocência
Sem consciência, iludidos com o fluxo e refluxo
Da maré que leva os nossos sonhos de infância para o oceano
Onde para sempre perdurarão
Se perderão
Na eterna e infindável espiral quebrada
Perante esta manhã, esquecida
Vejo a aurora chegar, completamente branca
Cegos, admiramos os céus antes azuis
O mundo que era preenchido de formas e cores
É agora branco absoluto
Pois nada é mais assustador que a fria luz interminável
Na noite, sentimos as presenças dos entes que se passeiam entre trevas
Não os vemos
Contudo, sentimos
Na Aurora da Cegueira nada vemos, nada sentimos, nada sonhamos
Não há fantasias, nem visões de glória e conquista
Não há monstros escondidos, demónios inquietos
Não há corpos escaldantes envolvidos em delícia e delírio
Não há mistérios, sussurros ou palavras secretas entre livros empoeirados
Não há um Deus a quem rezar, nem anjos projectados nas paredes
Não há cor, forma, aroma ou sabor
O branco é o vazio
O esplendor do vácuo
O abandono total do Eu
E é assim que eu o imagino, o Inferno
"Por momentos à sombra de árvores e a desenhar os recortes dançantes que as folhas fazem no chão, com o meu dedo indicador. O meio-dia dos plátanos projetado na relva que cheira a corte e rega recentes. Descalço-me para senti-la e aos seus microscópicos dedos frescos de clorofila nas plantas dos pés, de onde imagino raízes a crescerem para baixo e a entranharem-se na terra, todo o meu corpo a entranhar-se na terra, os meus novos amigos de cem patas e sem patas a chamarem-me, os torrões fofos da minha nova cama.
Não devia ter saudado a fada verde na chegada à festa. Ela tem sempre uma queda para o declive, para abismos de rochas aguçadas, leva-te pela mão e lança-te: “Voa agora”! Boa… assim é fácil. Tu tens asas, não é verdade?... Mas hoje disse-lhe: “Não, ficamos aqui a desenhar recortes na relva, lençóis de sombras chinesas para a nossa cama.” Ela concordou, parece. Não tem jeito para o desenho mas tem jeito para dançar. É ela que faz as folhas do velho plátano valsar lá em cima. É ela que manda no vento e conduz a dança.
Porque se veio ele deitar aqui, afinal? Estavamos só nós duas e duzentos fantasmas connosco, todos tão bem ao sol da tarde, sem o peso opressor da respiração descompassada que me acontece sempre que ele chega. A fada verde tinha acabado de ensinar ao plátano uma mazurka… Ele vem e olha-me e sem palavras deita-se aqui, no meu lençol de sombras chinesas. “Chega-te para lá”, resmunguei-. “Estás a ocupar o espaço todo e eu daqui a pouco caio da cama.” Mas ele só me olhou com estranheza e uma prega entre os olhos e disse: “O quê?”
“Pronto… se vai ser assim…”, resignei-me. O meu dedo indicador começou a traçar-lhe mapas vegetais sobre as pálpebras fechadas, na boca de polpa fresca, no peito a subir e a descer na cadência mansa das sístoles e diastoles, nas coxas mornas de corredor a pulsarem, nos tornozelos de porcelana prestes a partir – imaginei, por fracções de segundo, a minha lingua neles e o travo a seiva nos poros -, nos pés de nazareno, brancos e ossudos. Sentia-lhe a pele a estremecer, tal como a terra treme todos os dias debaixo dos nossos pés sem que nos apercebamos disso, se não estivermos muito concentrados.
E antes que desse por isso, já todo ele era a geografia do plátano, como negativo, negro no verde. E já não era de papel de seda a sua pele, mas rugosa e castanha como casca; todas as suas veias transportavam seiva, a pulsar verde; os braços e os dedos cresciam em ramos nús e pesadelos de inverno; dos pés brotavam as raízes enormes e contorcidas que o ligavam ao chão, a cortiça a tapava-lhe, devagarinho, o buraco preto que há atrás da boca e os melros faziam-lhe ninhos no cabelo.
A fada verde desceu e entregou-me um machado, olhando para a estranha árvore que ali crescera na horizontal. “Precisamos de lenha. Logo à noite faz frio e é preciso aquecer a casa…” Só fiz o que ela mandou… Nota: este texto nasceu de uma proposta da Inês Isabel, que me deu a frase incial (a itálico). Pode ficar a ideia para um desafio em cadeia, em que algém dá uma frase que o autor continua e este, por sua vez, repete o processo com outro autor. Digam de vossa justiça. :)
Há uma guerra a decorrer dentro de cada um de nós. É filha do medo e da ganância, foi gerada no seio da confusão, enquanto esta era violentamente penetrada pelo horror e a mesquinhez. Esta guerra não tem fim, vive e prospera nos corações corruptos, banqueteia-se dos pensamentos de engano e traição, da estultícia, enrola-se connosco em sevícias decadentes, na busca da vã promessa de compensação orgástica. Nos meandros dos nossos pesadelos, esta guerra ganha força, empurra-nos para o abismo das nossas paixões e embala-nos na cantilena da mãe, suaves e ignorantes, adormecidos entre estilhaços de nós próprios, fragmentados pelo devir infinito que nos leva a construir os nossos próprios abismos, os nossos sarcófagos de pedra, enterrados vivos entre o clamor da batalha que se trava na nossa mente, alma e coração. Sim, esta guerra não tem limites, não conhece tréguas e jamais poupa os vencidos. Nesta guerra só há vencidos, derrotados, generais depostos dos seus cargos vazios, corpos infinitos de soldados mortos, espalhados por entre campos sangrentos esquecidos, arrumados num canto escuro para que ninguém neles tropece no meio da corrida frenética para chegar ao topo da trituradora. Somos nós os soldados, as pernas decepadas para não mais correrem, os olhos vazios de esperança, o ódio destilado de lamas ensanguentadas e putrefactas, somos o riso medonho da loucura que nos acena um lenço branco de tréguas, enquanto os canhões rugem ferozes por entre a noite sem rumo, sem porto seguro onde lançar amarras, antes que a corrente nos arraste para longe, longe daquele momento solene que nos viu nascer, puros, inocentes, sem saber da guerra que nos esperava.
Há uma guerra a decorrer dentro de cada um de nós. E dia após dia, estamos a perdê-la. Porque somos fracos, corruptos, débeis, ou simplesmente ausentes. Não acreditamos que a guerra grassa sem travão, avança sem temor rompendo as hostes autistas que a ignoram. Não a reconhecemos no olhar dos que privam connosco, trabalham ao nosso lado, dormem na nossa cama, comem à nossa mesa, marcham lado a lado nas fileiras de ilustres desconhecidos, passo a passo, em direcção ao momento final. O momento em que tudo aquilo que conheceremos serão os cadáveres e prisioneiros que ficam para trás, as memórias de alegria e prazer, embrulhadas no jornal da edição de ontem, onde em vão procurámos notícias do fim desta guerra sem fim. Por fim, adormecemos, entre rajadas de balas que iluminam a madrugada, entre o rufar dos tambores, entre as vozes dos desesperados que imploram por um pouco de água que lhes mate a sede que aumenta desmesuradamente, à medida que todos descemos mais um degrau rumo ao nosso inferno colectivo.
Há uma guerra a decorrer dentro de cada um de nós. E caberá a cada um de nós decidir se queremos ser vítimas, mercenários ou testemunhas de todo o mal que fazemos a nós próprios.
Nesta guerra, não há vitória possível. Não há fim à vista. Não há saída. Não há saída…