domingo, 1 de agosto de 2010

A Grande Devoradora: A Morte da Inocência em 4 actos (Acto II)

Acto II: A Aurora Branca



Perante o universo, nus
Pois nada nos cobre a não ser a fraca carne
A armadura ficou lá em baixo, esquecida
Por entre pedras e poeira dos dias do passado
Por entre o sopro que já não se sente
Do frio vento de leste, da memória
De dias obnubilados, entre ruínas
Da cidade que se afunda no horizonte
Onde nos perdemos para não mais sermos achados

Perante o espelho, a sós
Reparamos nos olhos que olham através de nós
Tememos o estranho que nos assoma, distante
Errante, por entre os gélidos cristais de vidro
Absorto, no reflexo dos labirintos onde perdemos a nossa inocência
Sem consciência, iludidos com o fluxo e refluxo
Da maré que leva os nossos sonhos de infância para o oceano
Onde para sempre perdurarão
Se perderão
Na eterna e infindável espiral quebrada

Perante esta manhã, esquecida
Vejo a aurora chegar, completamente branca
Cegos, admiramos os céus antes azuis
O mundo que era preenchido de formas e cores
É agora branco absoluto
Pois nada é mais assustador que a fria luz interminável

Na noite, sentimos as presenças dos entes que se passeiam entre trevas
Não os vemos
Contudo, sentimos
Na Aurora da Cegueira nada vemos, nada sentimos, nada sonhamos
Não há fantasias, nem visões de glória e conquista
Não há monstros escondidos, demónios inquietos
Não há corpos escaldantes envolvidos em delícia e delírio
Não há mistérios, sussurros ou palavras secretas entre livros empoeirados
Não há um Deus a quem rezar, nem anjos projectados nas paredes
Não há cor, forma, aroma ou sabor

O branco é o vazio
O esplendor do vácuo
O abandono total do Eu
E é assim que eu o imagino, o Inferno

Uma eterna Aurora Branca

5 comentários:

  1. Dos teus poemas, este é mesmo um dos meus preferidos. Construído sem pressas, límpido na forma e construção, uma delícia de ler. Já vou na terceira... :)
    Perder a inocência é, sobretudo, isto: um inferno branco, asséptico, frio, cristalino, sem exaltações, emoções positivas ou negativas, nada. Sem memória, sem sonhos, a sós. Gostei muito deste teu inferno alternativo, original mas completamente plausível, e porque nele o Anjo da Luz, somos nós. Muito bem.

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  2. Ritmo fantástico, marcado apenas pela escolha das palavras e das frases. Não te preocupaste com a rima e deixaste apenas fluir....
    O tema também exige alguma coragem. Enfrentar, num registo lírico, esse momento de solidão absoluta em que nos deixamos para trás e enfrentamos a angústia do (branco) vazio eterno não é fácil.
    Venha a 3ª parte...

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  3. adorei.... fabuloso... chocante!!

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