domingo, 1 de agosto de 2010
Encontros com a fada verde
"Por momentos à sombra de árvores e a desenhar os recortes dançantes que as folhas fazem no chão, com o meu dedo indicador. O meio-dia dos plátanos projetado na relva que cheira a corte e rega recentes. Descalço-me para senti-la e aos seus microscópicos dedos frescos de clorofila nas plantas dos pés, de onde imagino raízes a crescerem para baixo e a entranharem-se na terra, todo o meu corpo a entranhar-se na terra, os meus novos amigos de cem patas e sem patas a chamarem-me, os torrões fofos da minha nova cama.
Não devia ter saudado a fada verde na chegada à festa. Ela tem sempre uma queda para o declive, para abismos de rochas aguçadas, leva-te pela mão e lança-te: “Voa agora”! Boa… assim é fácil. Tu tens asas, não é verdade?... Mas hoje disse-lhe: “Não, ficamos aqui a desenhar recortes na relva, lençóis de sombras chinesas para a nossa cama.” Ela concordou, parece. Não tem jeito para o desenho mas tem jeito para dançar. É ela que faz as folhas do velho plátano valsar lá em cima. É ela que manda no vento e conduz a dança.
Porque se veio ele deitar aqui, afinal? Estavamos só nós duas e duzentos fantasmas connosco, todos tão bem ao sol da tarde, sem o peso opressor da respiração descompassada que me acontece sempre que ele chega. A fada verde tinha acabado de ensinar ao plátano uma mazurka… Ele vem e olha-me e sem palavras deita-se aqui, no meu lençol de sombras chinesas. “Chega-te para lá”, resmunguei-. “Estás a ocupar o espaço todo e eu daqui a pouco caio da cama.” Mas ele só me olhou com estranheza e uma prega entre os olhos e disse: “O quê?”
“Pronto… se vai ser assim…”, resignei-me. O meu dedo indicador começou a traçar-lhe mapas vegetais sobre as pálpebras fechadas, na boca de polpa fresca, no peito a subir e a descer na cadência mansa das sístoles e diastoles, nas coxas mornas de corredor a pulsarem, nos tornozelos de porcelana prestes a partir – imaginei, por fracções de segundo, a minha lingua neles e o travo a seiva nos poros -, nos pés de nazareno, brancos e ossudos. Sentia-lhe a pele a estremecer, tal como a terra treme todos os dias debaixo dos nossos pés sem que nos apercebamos disso, se não estivermos muito concentrados.
E antes que desse por isso, já todo ele era a geografia do plátano, como negativo, negro no verde. E já não era de papel de seda a sua pele, mas rugosa e castanha como casca; todas as suas veias transportavam seiva, a pulsar verde; os braços e os dedos cresciam em ramos nús e pesadelos de inverno; dos pés brotavam as raízes enormes e contorcidas que o ligavam ao chão, a cortiça a tapava-lhe, devagarinho, o buraco preto que há atrás da boca e os melros faziam-lhe ninhos no cabelo.
A fada verde desceu e entregou-me um machado, olhando para a estranha árvore que ali crescera na horizontal. “Precisamos de lenha. Logo à noite faz frio e é preciso aquecer a casa…”
Só fiz o que ela mandou…
Nota: este texto nasceu de uma proposta da Inês Isabel, que me deu a frase incial (a itálico). Pode ficar a ideia para um desafio em cadeia, em que algém dá uma frase que o autor continua e este, por sua vez, repete o processo com outro autor. Digam de vossa justiça. :)
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"só fiz o que ela mandou..."Sem carregar nada, nada além disso.
ResponderEliminaradoro o que escreves sister miuda gira!!:))
Para quem se dizia sem inspiração... Estou "uau"... "O meu dedo indicador começou a traçar-lhe mapas vegetais sobre as pálpebras fechadas (...) na cadência mansa das sístoles e diastoles". Simplesmente adorei, transformaste uma simples frase em algo muito grande e isso nem sempre é fácil.
ResponderEliminarObrigada, Cristina :)
Obrigada a ti, Inês, pela inspiração e, sobretudo, pela motivação. Já não escrevia nada há demasiado tempo.
ResponderEliminarE obrigada também à sister Nani, pela força. :)
be careful with that axe CC.....
ResponderEliminarGosto da tua fadinha, podes emprestar-ma um dia destes?
é na boa. Ela adora fazer amigos novos... ;)
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