O esqueleto que passeia pelo campo de concentração, tem olhos, tinha olhos que viam acima e por cima das montanhas que existiam no seu dedo mindinho do pé esquerdo. Dói ter de transportar tantas rochas, terra, plantas, animais, poluição, em cima de um só dedo. O esqueleto coxo que caminha pelo campo de concentração, tinha na mão direita e preso ao dedo anelar um iô-iô que subia e descia e marcava o ritmo dos seus ciclos respiratórios, os que sobraram dos seus pulmões fantasma, mas que ainda respiravam porque há coisas que nos atormentam para o resto da vida mesmo depois de já não fazerem parte dela fisicamente.
O esqueleto que deambula pelo campo de concentração adora bolas de sabão e gostava de as tomar ao pequeno-almoço acompanhadas por algodão doce barrado com as letras dos cartazes que anunciavam que o circo vinha a chegar à aldeia. O esqueleto trapezista que sofre de aerofobia, gostava de jogar xadrez nas pedras da calçada que estavam no chão da biblioteca e era aí que via a dama a fugir da torre com o bispo a cavalo, deixando o rei amargurado a comer os peões e a beber sumo aos quadradinhos pretos e brancos.
O esqueleto coxo, trapezista e rei tem o sonho de ser aquático para nadar em mares de prata e desta forma sentir que os ossos já não pesam tanto, nem as montanhas, nem o iô-iô. Talvez amanhã haja uma grande precipitação atmosférica e a chuva ácida encha as paredes que terminam em arame farpado. Talvez amanhã o esqueleto esteja a tomar o pequeno-almoço debaixo de água no campo de concentração ao mesmo tempo que se concentra naquela palavra esquecida. Aquela palavra que o rei sentia pela dama. Aquela palavra que nasce naquele órgão que ele já não tem, mas que em silêncio ainda se ouvem os seus batimentos. Nos dias em que recorda a palavra quer chorar mas, o esqueleto que vagueia pelo campo de concentração, reparou que está sempre a sorrir. É o pior preço que se pode pagar por ser esqueleto… sorrir para toda a eternidade sem poder deixar cair uma única lágrima. Ele sorri para mostrar o desgosto que sente por a ter perdido. Ele não chora para poder dizer que a ama.
Perdeu-se no deserto e apareceram miragens dele, primeiro era só um depois dezenas dele e centenas e milhares dele todos com a mesma cara e todo o corpo igual ao dele e aproximavam-se dele e rodeavam-no até taparem o sol. Afastavam-se todos em sintonia como uma orquestra desaparecendo em nuvens brancas e brilhantes, restavam o silêncio da noite gelada, das estrelas puras e da mansidão de dunas paradas e de horizontes invisíveis, era à noite que tinha forças para rastejar, quem sabe alguém me descobre, no deserto passam caravanas de beduínos e berberes. Segundo sei o Atlas fica próximo mas não tenho a certeza por isso vou rastejando na noite à procura do Eden, ou de outro sítio onde possa viver, foi por isso que me meti nesta aventura, vim procurar o Eden fora de mim, todos os meus companheiros desistiram, vi os seus corpos enterrados com as bocas cheias de areia e os olhos em forma de cacto, e depois foram-se enterrando ainda mais, só um pé ficou de fora, arranquei-o e comi-o todo, chupei os ossos dos dedos, procurei os sacos de água, resta-me um que vou bebendo com sabor a conhaque, só às vezes, está menos de meio, ao longe o fogo aproxima-se, não sei o que são dias ou noites. Aparecem todos, eles que sou eu, riem-se de mim e fazem caretas como palhaços, estão vestidos com o meu fato de executivo numa empresa de sucesso e grito-lhes, e peço-lhes que desistam, que vistam a minha roupa, levem-me daqui mas eu não faço nada, quer dizer eles não fazem nada e desisti de os olhar nos olhos brilhantes que ferem os meus, já não tenho água, o sol, o sol, neste deserto, neste deserto, rastejo de mãos enclavinhadas de sangue o tronco move-se como um lagarto moribundo. Quem sou eu? Lembro-me vagamente do perfume, dos restaurantes, da casa confortável, de caras, sorrisos, pessoas apertando-me a mão, vagamente, e o sol, o sol o sol martela, não há água, a boca é um buraco pequeno lambendo areia, o Eden? Será uma ficção? O Eden, deve existir, força, anda, rasteja, procura, eles vêm aí, iguais a mim, são cruéis, maus, rodeiam-me, vão-se, noite, noite gelada e o sol ardente, ardente, come-me as entranhas, água, água, sou um tronco de ossos descarnado, sinto um som profundo é o fogo a comer-me, a sugar-me, um raio de sol zumbe como um enxame de abelhas entrando nos ouvidos, está cá dentro o sol, rebolo no sol, a duna desliza sobre mim, mais além vejo finalmente o Eden e ergo finalmente os ossos dos braços quando me aparece a luz suave que me leva e me liberta.
“Foram encontrados no deserto os restos mortais do famoso empresário X que empreendeu com um reduzido grupo de amigos uma viagem a Nenhures, ignorando-se as causas exactas da morte. Os restantes elementos encontram-se bem, manifestando-se estupefactos com o acontecimento, para o qual não encontram qualquer justificação”.
(estava a arrumar a 'casa' e reencontrei este texto já com 4 anos, mas como continua a ser um dos meus favoritos, aqui vai uma 'reedição'. Hope you like it!)
Que mundo mesquinho. Estou farta de os aturar...
Sirvo-os à mesa, todos os dias, neste café de beira de estrada, farto de brutos e ‘meninas da vida’, de penduras, pelintras e pedintes, de cretinos, descrentes e credores em viagem. E cabe-me a mim, no meio deste inferno, aturar toda esta canalha. Dar-lhes de beber, de comer, e se eu os deixasse, de f.....
Ninguém diz nada que valha a escuta, que preencha o vazio, que alegre o dia, que me eleve a alma, que me conforte a dor, que me faça sentir humana, pessoa, útil, amada! Nada, apenas a rudeza dos gestos e o lixo da palavra de rua, suja e bruta como todos são, do patrão à colega mais nova, da velha da caixa ao puto do posto de serviço, do miúdo que me olha para o decote com vergonha ao porco do Mercedes que devora o rabo com os olhos e saliva nos cantos da boca.
Não consigo ser mãe, mulher, esposa, prazer, nem delito nem deleite, sou apenas a ‘tipa’ do café da beira da estrada, aqui para vos servir, aqui ontem, aqui hoje, ... e amanhã?....
Não oiço uma única expressão que mereça ser ouvida, vivo dentro de um mundo onde não se usam palavras com mais de três sílabas. Ninguém as usa, ninguém as diz. Três sílabas, é o limite do meu espaço, do meu ser, da gentalha que se move entre as mesas já gastas pelos anos, gastas pelo meu esfregar constante do pano húmido e fedendo a pop limão. Não usam mais de três sílabas para escrever nas portas da retrete: “faço bicos”, “vivó benfica”, “jovem solteiro”, “no cagar é que está o ganho”, e são essas merdas que eu tenho que aturar quando me calha a vez de limpar...
Uma. Duas. Três. É o máximo. Não existem palavras com mais de três silabas no meu mundo. Não tenho mais letras para o horror e depressão em que vivo. Não conheço fim deste limite para descrever os dias que passo entre os pedidos de hamburgers, de coca colas, de batatas fritas, de massa com molho de tomate, de carne de porco frita, de rissóis, empadas, sopas, cafés, bagaços, tabaco, trocos para a máquina de jogos, mais água por favor, traga o ketchup, a pimenta, azeite, vinagre, sal. Todo o sal que me resta está nestas lágrimas que me escorrem da face, que deslizam para a minha boca, que sorvo com tremuras, que uso como tempero de mim própria, como final amargor da minha vida vazia por entre as mesas e o balcão, por entre as mãos sujas que me deixam meia dúzia de trocos e os olhos vazios de quem não me vê nem nunca verá...
Hoje mudo tudo.
Ergo-me ainda mais cedo e vou até à cozinha. Hoje aumento os limites do meu mundo, uma nova dimensão, a quatro sílabas. No vinho a granel, no azeite de prato e no café moído está o meu tributo para todos vós.
O mundo está cheio de sonâmbulos. Sim, isso mesmo! É que são tantos semiconsciente andando por aí, não é brincadeira. E o pior é que eles pensam que estão acordados. A quantidade de gente hipnotizada é enorme. É gente que não pensa e apenas gravita em torno das percepções limitadas que os seus sentidos físicos lhes proporcionam. E isso é um problema, pois, quando a Dona Morte chega e bate...ficam perdidos nas brumas de seus condicionamentos e limites. A Dona Morte não é brincadeira, não! Quem vive na carne, que se cuide. Viver não é só comer, beber, dormir, amar, e um dia, finalmente, morrer... Viver é muito mais e não cabe numa só vida. E é triste só descobrir isso após a chegada da Dona Morte. Despertar é preciso! Quem está desperto (e esperto), valoriza a consciência limpa. E a velha senhora dizia isto de uma forma clara e doce...nunca mais a vi nem ouvi... Penso nela muitas vezes, principalmente quando estou na minha varanda ao fim do dia E as cerejeiras começam a dar flor.
Menina canta ao som das pancadas que sofreu no passado e daquelas que se anunciam à medida que a sua voz se espalha ao ritmo do fumo e assim menina desenha as notas musicais de tudo aquilo que não sabe ouvir e por isso espera que o medo a venha obrigar a fugir ou a permanecer naquele lugar que sonha e vê mas não parece real porque menina sabe que os olhos choram e rasgam a face sempre em direcção ao chão que não faz barulho à sua passagem mas mesmo assim menina quer tocar e sentir que tem cócegas nos pés plantados ao som das pancadas que sofreu num futuro que fez o fumo desaparecer e deixar menina sem ritmo suficiente para fugir e por isso tem de permanecer naquele lugar que fala e lhe segreda ao nariz que neste momento não tem fôlego para continuar a sonhar e por isso menina sorri amargurada ao mesmo tempo que sente o toque dos seus fios de cabelo a acariciarem a face cicatrizada pelo ácido ocular que dói que dói muito pelo que menina resolve pôr-se em pontas e olhar para as nuvens brancas às riscas pretas desenhadas com aquele lápis que todos trazemos atrás da orelha mas que só alguns o sabem usar porque nem todos conhecem o sítio do afia-angústias que a vida oferece e a morte favorece pelo menos enquanto as gotas de areia nos preenchem a alma e marcam a ferros tudo aquilo que menina já sabe e sempre soube ser mágico e sem tempo contado e que pelo menos uma vez em toda a história aquilo fez sentido e menina arrisca a ter medo arrisca a sentir o seu cabelo colado ao pescoço pelas lágrimas de suor que neutralizam o ácido respirado e amado para sempre um sempre que agora faz menina juntar as pestanas de cima com as pestanas de baixo e formar com os lábios uma meia-lua voltada para cima e nunca voltada para baixo e é aqui só aqui que menina respira fundo e recupera o fôlego. Menina canta ao som das pancadas que sofre.
Os melhores curadores são discretos. Eles calam o ego e deixam o coração fluir o amor sereno... O toque de suas mãos é gentil e generoso. Eles têm mãos de Luz!
Pelo alto de suas cabeças desce a sabedoria celeste. Ao mesmo tempo, a vitalidade da terra beija seus pés. Enquanto isso, as pétalas dos lótus dos seus corações abrem se... E eles tornam se templos vivos da Luz que cura!
Não carregam posturas arrogantes; são simples e alegres. Transitam pela existência sem julgar ninguém. Eles são da Luz serena!
Eles são curadores, dos outros e de si mesmos. Não se magoam com coisa alguma,são felizes. Os seus actos são lúcidos!
Ah, esses curadores,belos e tranquilos, que fazem voos na luz! São estrelas na carne, agindo em nome do Alto. Muitas vezes, quietinhos, eles abraçam a humanidade. Eles nada esperam, só abraçam a alma do mundo.
Eles estão no mundo igualmente com todos, mas há colunas de luz sobre os seus caminhos. Muitas vezes, eles sentem a dor do mundo, em si mesmos. Nesses momentos, eles se recolhem na prece e juntam forças no Alto. E vibram as mãos cheias de luz, sob o comando do coração.
Não há orgulho no seu rumo, só satisfação serena. Não há contendas nem competições nos seus caminhos, só cura. E, eles sempre dizem, contentes: "Senhor, nada é meu, tudo é Teu. Inclusive eu!
É importante para mim
Que depois do dia venha a escuridão
Que a cegueira não nos tire a visão
Que o mundo seja feito de ilusão
Até que descubro por fim
No meio de tanta inquietação
É só mais um dia, enfim
É tão importante para mim
Compreender porque temos que viver
Arrumados em caixas, a enlouquecer
Presos a detalhes, sem nunca saber
Que tudo se dilui no dia de morrer
Entender porque me sinto assim
Tão ansioso por conhecer
O que causa o frenesim
É então que descubro, em mim
O estranho que sempre procurei
Mas que nunca encontrei
Até me encontrar, por fim
Um sentimento de infinita plenitude
Por reconhecer no estranho em ti
Outro igual a mim
A criança já dormia a sono solto mas o velho continuava junto à cabeceira dela. A história não tinha acabado; raramente chegava ao fim porque ela adormecia durante. Já não se lembrava de si na sua meninice, não se recordava se o mais importante eram as histórias que ouvia ou se a voz e presença de quem lhas contava. O dar a mão era fundamental. Sim, disso lembrava-se. Também ela entrelaçava os dedos nos seus e iam perdendo força à medida que o sono vinha. Até que a mão ficava ali, perdida na sua. O silêncio do quarto apenas era interrompido pela respiração suave mas profunda dela. Nesse sono, nessa respiração e no abandono à sua presença a criança respondia àquilo que o velho nunca lhe tinha dito porque não era necessário: dorme. Estarei cá e vigiar-te-ei o sono.
Quantas vezes as mais belas coisas são aquelas que não precisam ser ditas?
Que sorte a minha ter te aqui na minha frente. Enquanto teus olhos percorrem estas linhas e palavras, eu consigo sentir os ruídos do teu coração e do seu corpo. O coração ameaça sangrar de tantas dores que traz, mas o teu corpo abranda este sofrimento quando ouve a voz... dizendo palavras de coragem e fé. Este é um raro momento... evita olhar para os lados,Fica aqui...
Tu és uma alma bela! O Universo fez os contornos do seu corpo com mãos de luz... O teu semblante foi esculpido num singular momento de prazer de duas pessoas que se amaram naquele instante. Sabes, tu és uma fruta deliciosa que a vida guarda no pomar da terra. E há muitas criaturas e seres da natureza que se deliciam com teu cheiro e sabor. Os que passam pela tua vida são como abelhas que pousam na tua alma, bebendo o que há de melhor no teu ser... Não! Em hipótese alguma, te sintas seca, consumida.
E se algum dia, as lágrimas forem o teu único instrumento, deixa as cair no peito e rega o teu coração para que nele nasçam novas sementes e flores. Que sorte a minha ter te aqui e agora, emprestando me os teus olhos e ouvidos... Porque tudo o que tu lês e sentes, neste minuto, esta sendo gravado nas estrelas, para que essa luz do teu coração possa iluminar e oferecer oportunidades para mais alguém. Fica aqui assim. Sente o pulsar do teu coração. É um som divino ele ressoa no teu corpo e irradia bem-estar para todos...da o teu coração, mas não o deixes a guarda do outro porque só a mão da vida o pode guardar descansa agora na razão e actua na paixão...Deixa te ficar por aqui...
Aquilo que se sente quando… a olhar pela janela, sei que vai acontecer. Fixo as linhas brancas da passadeira e imagino palavras, palavras e palavras, que sabem porque saem, mas estão totalmente vazias de texto. Sabem que são palavras mas não sabem como conseguiram juntar as letras. Sabem que dia é hoje mas já se perderam no passado que futuramente vai trazer mais palavras que nem sabiam que existiam. Depois de atravessar a rua chego ao passeio e este é outra longa linha onde desfilam mais palavras, de mãos dadas, ou com o peso dos sacos das compras, ou ainda de mochila às costas. Mas as minhas preferidas são aquelas que vêm a mascar pastilha elástica e a fazerem balões de dióxido de carbono com letras misturadas. Quando esses balões rebentam, milhares de palavras são formadas com as letras que se soltam. Sustenho a respiração. Volto para trás. Entro em casa e regresso à janela. Imagino sons, sons e sons, que sabem porque saem, mas estão totalmente vazios de música e de… palavras. Neste momento prefiro ouvir o som do coração, porque sei que um dia, ele estará a tentar juntar letras para formar palavras que ainda não conheço e nem vou conhecer. Nesse mesmo dia, alguém no passeio irá estar a fumar um cigarro e a fazer argolas de fumo com letras penduradas à volta. Nesse dia, mas só nesse dia, saberei que afinal só depois do som é que vem a palavra, e que o melhor era ter ficado a escutar os meus pulmões a inspirar enquanto as letras ainda andavam à solta. Expiro o ar vazio. Aquilo que se sente quando… se volta para casa sem letras suficientes sequer para formar a palavra “janela”.
“Pára quieta com a mão! Menina insolente… assim não consigo cortar a direito. Pronto, já está. Dez dedinhos. Toma cão, já tens jantar para hoje. Raios! Pára de me berrar aos ouvidos… bela medricas me saíste. Já aqui estive melhores do que tu.”
Na cabana, ao fundo do bosque, vive ele, o homem que tem como forma de vida a arte da morte. Não uma morte pelo simples prazer de ser morte, mas uma morte que tem sempre um propósito. Chama-lhe morte útil, e para ele é uma simples forma de expressão.
Ata uma corda à volta dos tornozelos e deixa-a pendurada de cabeça para baixo. Dez canais jorram para o chão até que ficam só a conta gotas. Chão vermelho, a chão vermelho escuro, a simples nódoa… Corta a corda com um só golpe e ela cai. Ouve-se um estalar e ele pensa “raios, é mesmo frágil, já partiu o pescoço, que má caçada, nem luta deu.” Arranca os olhos das órbitas, nunca gostou de sentir olhares fixos nele, nem mesmo daqueles que davam tudo para nunca ter tido o azar de olhar para ele. Litros de ácido são injectados pela boca e pelas narinas para o interior do corpo. Não quer o corpo desventrado. Espera. Enquanto isso, abre a porta e deixa o cão sair para a rua. Uma lufada de ar frio entra. De novo pendurada de cabeça para baixo, os órgãos que derreteram vão saindo aos poucos. Com a ajuda de um ferro tenta raspar ao máximo o interior do corpo. Flores. Flores que nascem no bosque, flores de todas as cores e de vários perfumes são empurradas para dentro do corpo e as duas mais bonitas são colocadas nas órbitas oculares “Menina perfumada, de olhar florido, gosto do teu olhar doce.” Os lábios são cosidos, ponto cruzado, perfeito. Herdou esse jeito da mãe costureira. Braços e pernas amputados e assim há jantar para a vara de porcos que tem nas traseiras da cabana. Os cotos levam o mesmo ponto cruzado e ficam com uma bainha muito bem rematada. Trabalho finalizado. Abre a porta, o cão entra. A noite traz novamente aquela brisa gelada do bosque, que se mistura com o aroma a sangue e flores. É esse o objectivo. Gosta de trabalhos manuais e este é o seu preferido. “Menina, meu saquinho de renda perfumado.” Sorri. Sorri novamente e começa a lavar o chão.
Pega no cão ao colo e faz-me festinhas na cabeça. “Nenhum animal no mundo deveria sofrer, muito menos ser maltratado com propósito.” Respira fundo para apagar esta imagem da cabeça, quase lhe escorrem lágrimas de cada vez que pensa nisso. “Nunca vou deixar ninguém fazer-te mal. Vou dar-te sempre o melhor lar. Amanhã terás um tapete para te deitares e dormires quentinho ao pé da lareira.”
Ele, que vive na cabana ao fundo do bosque, sabe que encontrar matéria-prima é muito fácil. A inocência é sua aliada e neste momento… Ela abre os olhos. Acorda pela última vez e daqui a poucas horas vai estar a atravessar o bosque para conseguir chegar ao rio.
Amanhã, a esta mesma hora, vai ser um bonito tapete entrançado, com um excelente acabamento.
“Apanha-me se puderes
Faz como o gato matreiro
Esconde-te atrás da árvore mais alta
E quando eu passar…. Salta!
Vira vira, não me apanhas
Eu sou gato e tu és cão
Tu polícia e eu ladrão”
As crianças brincam com alegria à apanhada, entoando rimas antigas que desde cedo as ajudam a compreender o quão complexa é a teia que a todos nos prende. Vivas, de olhos cintilantes, saltitando nas poças rasas que se espalham pela grande praça da cidade. O céu está fabuloso, como se o Sol tivesse explodido em chamas, com imensas labaredas espraiadas por entre os véus da manhã. Por todo o lado a luz, clara e fria, como são as manhãs de outono na cidade. Mas como será no resto do mundo?...
Para além das poças onde a alegria se passeia sob a forma de pequenos e esvoaçantes corpos infantis, há um muro enorme que se levanta, estampado na face dura e vazia dos habitantes da cidade. Há muito que a esperança e alegria se desvaneceu, foi-se apagando, tal como o brilho da velha estátua que, aprisionada entre grades e choupos, se ergue no centro da praça. Passados mais de dois séculos, ainda há quem diga que foi verdade, que a menina da estátua existiu mesmo, que foi um anjo mensageiro que veio trazer o desafio da vida em tempos duros de miséria e violência. A cidade sempre fora um bastião inexpugnável mas, lá fora, milhares morriam na guerra e de fome, ansiosos por abrigo e protecção proporcionada pelos muros altos e insondáveis da cidade. Mas os muros eram tão altos para os que queriam entrar como para os que sonhavam em sair. Em cada coração dos que viviam na cidade havia o sonho de liberdade, abafado pelos duros muros de pedra e ferro que esmagavam os habitantes com as suas pesadas sombras. Como insectos atarantados, os habitantes da cidade viraram-se para si próprios, inquietos e sombrios, construíram uma sociedade alienada e esquizóide, negra como as sombras que os esmagavam, onde esperança era sinónimo de desespero.
Não há nada pior do que saber que nada há a fazer, dai a narcose colectiva, a entrega à rotina, a morte do pensamento, o abraço venenoso da religião e ordem social. Quem poderia acalentar a esperança neste cenário? Seria suicídio, por certo! E as pessoas na cidade temiam a morte, pois sem esperança, pensavam que até a sua alma seria prisioneira da cidade, para todo o sempre, presa, manietada por pesadas sombras que a devorariam, lentamente, até à sua aniquilação final. Assim sendo, não havia lugar para a centelha de esperança que Lucia ofertara, de peito aberto…
No meio da brincadeira descontrolada, há uma menina que é empurrada para cima do gradeamento que cerca a estátua velha e decadente que apodrece lentamente no coração da praça da cidade, onde tudo começou. Aqui estou eu, sentado num banco de tábuas largas que rangem a cada movimento do meu pesado e cansado corpo. Atento, reparo que a menina se magoa na sua pequenina mão de criança e verte uma gota de sangue sobre o pavimento alvo e polido da praça...
Paradoxalmente, começou com o anúncio final. Inexplicáveis corpos celestes em rota de colisão com a Terra, um planeta a preparar-se para morrer. E realmente alguns embateram e muitas vidas ficaram por viver, mas a maior parte das rochas vermelhas ficou suspensa na atmosfera, pairando, contrariando as leis da física.
As pedras, afinal organismos vivos, torturadas pelo cheiro do medo e pelo silêncio da dor e do arrependimento, tinham-se condoído com as súplicas. E, quais divindades, por lá ficaram a escutar o nosso sentir mais íntimo e a interferir nos nossos destinos.
E, debaixo daquele céu coberto de ilhas escarlate filtrando suavemente a luz do Sol, calaram-se os cientistas e levantaram-se os profetas. As rochas tornaram-se um símbolo de redenção e uma nova doutrina nasceu. Os sábios de ocasião, únicos capazes de ouvir o cântico das pedras, ordenavam que o tempo parasse e decretavam o fim da mudança, da evolução, da revolução, do devir... Perante a crença colectiva no presente perpétuo, as rochas interromperam o fluir das eras. Os seres nasciam, cumpriam o seu fado e morriam, afogados naquele limbo perene.
Foi nesse mundo estagnado que nasceu aquela rapariga estranha. Como sempre, os sacerdotes deram aos pais a hipótese de escolher entre dois nomes, um teste que determinava a sobrevivência do recém-nascido. Entre “aquela com dois corações” e “ aquela que não sangra”, a mãe optou pelo último. Mais seguro. Ao pronunciar aquela frase decretou para a sua filha uma existência sem medo, sem coragem, sem alegria, sem tristeza, sem amor, sem ódio.... sem o pulsar da vida. E trazia a sua condição estampada no rosto plano e no pescoço fino, onde a pele aberta mostrava uma jugular cortada a atrofiar.
A rapariga que não sangrava foi escrevendo o seu tépido poema sem um verso lírico. E naquele mundo sem tempo, a sua era a mais negra das canções. Todos viam-na passar com uma faixa à volta do peito a segurar o coração inútil e os compridos cabelos a arrastar pelo chão.
Foi por isso que o povo emudeceu quando um dia parou no meio do templo e levantou a voz. Enquanto olhava os rochedos suspensos, imaginava um rio vermelho a galgar margens, sentia um calor húmido a escorrer-lhe pelo corpo até aos tornozelos, ouvia pela primeira e última vez o som do seu coração e partia suavemente, depois de ver concedido o seu único desejo.
E enquanto todos olhavam para aquele cadáver esperando que a abundante nascente de sangue secasse, uma a uma as pedras começaram a subir nos céus.
Lucia era uma menina vulgar, uma entre tantas, centenas, que vagueavam pela cidade negra, entre mourisqueiros e bugios, crentes e gentios, uma chama entre sombras, uma sombra entre homens que a ignoravam, invisível, indizível, insensível a todo o fel que escorria dos muros da cidade e onde, em azáfama e frenesim, os insectos se banhavam e alimentavam.
Mas da lama do mais fétido pântano podem nascer flores belas e luminosas, com perfumes doces e nunca antes apreciados. Assim era Lucia, doce, luminosa, bela, a vaguear pelo mundo fétido dos homens ignorantes, invisíveis e insensíveis. E foi numa noite de Verão que esta flor exalou o mais cândido aroma que aquela cidade alguma vez iria sentir, ao derramar sobre nós todo o que de precioso pulsava em seu coração.
Entre os anciãos, há muito que se falava da lenda da ‘menina da luz’, um ente que um dia viria dos céus para nos salvar a todos e mostrar o caminho para um admirável mundo onde não haveria mais medo, pestilência, fome ou guerra. Ela traria em seu coração a semente da esperança e em sua voz a canção da harmonia entre os povos. Mas há já muitos séculos que ela era aguardada e, há medida que as gerações passavam, a lenda passou a memória débil na ponta da conversa circunstancial de velhos entregues à miséria que usavam estas memórias para conseguir que algum cobre caísse sobre o seu prato da sopa vazio.
Num dia de estio severo em que a canícula fazia definhar qualquer pego que ainda subsistisse no rio que saciava a cidade, aconteceu algo que nos deixou a todos atónitos. Uma menina, franzina, leve como uma pena, subiu às escadas da catedral da cidade. Do alto das escadas tinha-se a melhor vista para a praça que, se algum pássaro a descrevesse quando a vê do alto do céu, diria ser uma mancha branca rectangular ladeada de infinitos riscos negros entre tons de cinzento, pois assim eram as ruas da cidade, negras e assim eram seus edifícios, de um monótono e indiferente cinzento, de madeira e alvenaria.
“Mas o que faz ela ali?”
“Quem é ela, de onde apareceu”
“Mas o que pensa aquela rata de esgoto que é, para se por à vista de todos, nas escadas da catedral?”
“O que é aquilo ali, ninguém chama a guarda?”
Pacientes, calorosas e amistosas, como sempre, as pessoas da cidade indignaram-se com a presença de uma subcriatura, uma dessas muitas crianças sujas que vagueiam pela cidade, sem eira nem beira mas que aos poderosos e abastados tanto aborrecem. O que era aquela afronta, porque é que uma ‘ninguém’ decidira desafiá-los e impor a sua presença sobre eles, sobre nós?
Lucia permaneceu imóvel por uns minutos, como que vigilante, contemplativa até, olhos postos sobre a cidade e os seus homens-insectos, sobre a praça alabastrina ladeada de negras áspides que se imiscuíam por entre os seios da cidade. A rapariga que ninguém conhecia e a quem eu haveria de escrever infinitas cartas de amor era agora uma espécie de inquisitora-mor, a vigilante, quase uma visão. O tempo passava e nada acontecia. Ali estávamos todos, estáticos, extáticos de ansiedade, ansiosos por saber o que se poderia estar afinal a passar.
Num gesto lento, Lucia meteu a mão no espartano alforge que trazia dependurado e sacou um punhal de lâmina fina e cabo cilíndrico. Ergue-o no ar e proferiu as seguintes palavras:
“Por todos vós que olham, mas nada vêem, tocam, mas nada sentem, falam e nada me dizem. Por todos aqueles que sentem, mas nada mudam, dizem e não acontecem, vêem e desviam o olhar. Por tudo aquilo que eu sinto quando vejo que, por muito que vos queira falar, não posso mudar. O meu coração é vosso. Espero que em vosso coração o sangue corra vivo e que vivos se consigam sentir. Este é o meu altar. Por vós, derramo o meu sangue, para que possa fluir em vossos corações que nada vêem, sentem ou dizem. Por tudo o que vive, para que tudo viva, eu vos ofereço o meu coração e o que nele existe. Por vós, transbordo.”
Num gesto rápido, Lucia espetou o punhal que trazia consigo directamente no coração. Com a lâmina enterrada em seu peito, sorriu, de olhos fechados e murmurou. Ninguém sabe o que ela murmurou, ou porque o fez, mas quando em serena violência puxou a sinistra adaga de dentro de si deu-se uma explosão, não de sangue mas de luz, de mil milhões de pequenas centelhas coloridas e esvoaçantes, que jorravam infindáveis de dentro de tão pequena pregadora, como se ela, leve e bela, fosse a caixa de ressonância do Universo que, numa derradeira tentativa, quisesse trazer até aos homens e mulheres da cidade, do Mundo, um tributo para comprar um novo sonho, uma vida menos vil e esquecida de sentimento.
Quando o clarão terminou, nada restava da franzina Lucia, nem da miríade de centelhas. Mas na face e mente das testemunhas o sucedido fora gravado a fogo. E desse fogo haveria de nascer um novo sentimento: o anseio convicto de que dias melhores estariam por vir.
E em êxtase, as pessoas trocaram abraços emocionados, correram pelas ruelas frescas onde o impiedoso Sol de Verão não chegava e contavam a sua versão do acontecido a quem não estava na plateia durante o primeiro e derradeiro acto de Lucia, a filha da Luz. Era a profecia.
Foram semanas de felicidade, esperança e real vontade de mudar. Em louvor, o povo ergueu uma estátua em memória da sua Salvadora. Devotos, muitos visitavam a estátua e lhe deixavam flores, ex-votos e até cartas de amor. Mas no calor da ilusão, aos poucos, com o cansaço dos dias, desvaneceu-se a mensagem. Lucia poderia ter trazido uma nova visão, mas a única coisa que as pessoas agora se lembravam era de uma nova ilusão. Trocaram as trevas por religião, o desespero por fé, a ignorância por dogma. Estava dado um novo passo na espiral, chegávamos ao ponto paralelo à partida.
O Verão anunciou o seu fim com as mudanças bruscas de temperatura. A chuva fria e cadenciada da madrugada adivinhava a queda das folhas. A floresta parecia em chamas, pintada de tons laranjas, amarelos, vermelhos. Na praça da cidade, entre o branco das lajes, erguia-se imóvel e contemplativa a estátua de Lucia, a rapariga que não sangrava, mas a todos nos trouxera uma centelha de luz. Com o aproximar do Outono chegava o bramir dos trovões, ao fim da tarde. O calor dava lugar à friagem da noite e, pela manhã, faziam-se anunciar para breve as primeiras geadas. Gelava o nevoeiro nos campos, gelava o coração e a memória dos homens e mulheres da cidade…
Parte IV (final): http://aitd-text.blogspot.com/2010/07/rapariga-que-nao-sangrava-parte-iv-de.html
Houve tempos em que me era fácil escrever-lhe cartas de amor, tempos de inocência e paixão pueril, tempos de sonho e fantasia romântica, tempos em que eu ainda não sabia o que era realmente o amor.
Lá estava ela, perfeita e inatingível, a cidade a seus pés. Lucia era a inspiração dos fracos e inocentes que se ajoelhavam perante ela em suplício, arrastando-se até ela, só para lhe tocar nos pés, pois não ousavam sequer sonhar em estar mais além do que isso, ao nível dos seus pés, dos passos que estes simbolizavam, da memória que estes tinham arrastado atrás de cada passo marcado, vincado na memória que perante aqueles pés se estendia, fria e escura como uma manhã precoce de Primavera, ainda por vestir de Sol e flores. E a seus pés, rezavam que ela os abençoasse, lhes concedesse uma palavra de mérito perante o guardião dos céus, lhes aprouvesse bonança e expectativas de bons augúrios para os dias que haverão de chegar, tal como chegam as andorinhas nesta altura e com elas as papoilas e o som da água em fúria a escorrer pelas vertentes, depois de ter sido desperta do seu casulo de inverno, resguardado no ventre gélido da pedra da montanha. Dias que haveriam de chegar, carregados de pólen e cantos de aves, sons de insectos laboriosos e absortos de quanta beleza os rodeia, tal como os habitantes desta cidade suja e ruidosa.
A memória perdurará para sempre e, para sempre, Lucia será sinónimo de esperança, pois foi em nome da esperança, não sua, mas de todos nós, que Lucia se tornaria ícone, totem e tabu. Para sempre.
Em mim, despertava o amor, por tão fácil que era amar tão soberba e leve criatura, fiquei preso em seus cabelos que nunca toquei e sem fôlego por sua boca que nunca beijei. Escrevia então cartas, muitas cartas, de amor insano e adolescente, das quais nunca nenhuma por seus olhos foi lida. Em seu corpo nunca toquei, mas, por seu corpo, morreria. Apenas por uma centelha de luz, acolheria em meu peito a morte com doçura.
Sobra a brisa suave, aumentam os dias e mirra a noite. O Verão está a chegar.
Parte III: http://aitd-text.blogspot.com/2010/07/rapariga-que-nao-sangrava-parte-iii-de.html
E vinham multidões de todo o lado para ouvir a profeta a rapariga que não sangrava.
E ela falava do que estava por vir e na dor tormentosa que lhe ia no coração e no seu corpo seco.
- Não será um penso a tapar uma ferida mas uma pálpebra que protege os olhos.
-Vocês não querem ver porque aquilo que vos existe de infinito habita no castelo celeste , cuja porta é bruma da manhã e cujas janelas são canções e os silêncios da noite.
-E cantaremos uma canção e se o meu coração seco se encontrar noutro sonho construiremos uma torre até ao infinito .
- Agradeço ,a alma irmã -Fazendo -me canal mesmo singelo -De assistência e alivio aos semelhantes! -Por tudo o que me foi tirado -Por tudo o que me foi dado -Repito-te no amor que a palavra não diz: -Deixem -me sangrar...
E quando ficava sozinha sobre si mesma apenas num instante de repouso sobre o vento...