quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Bons fígados



Não saias de perto de mim nada tem a ver com as saias até ao joelho que usei quando estes ainda faziam sentido.
Da mesma forma que cedo mais e mais a cada volta de sessenta passos nada tem a ver com os dias em que acordava cedo para parecer senhora de mim mesma.
Por outro lado, sinto as minhas vontades distorcidas tem tudo a ver com o cinto que me prende a uma cadeira e quando digo cerrar os olhos tem tudo a ver com o desejo delicioso que tenho em serrar as carótidas.

Quer parecer-me que quando os pulmões são alimentados com o nosso próprio vómito, não há muito a teimar, nem tempo para isso. No início são eles que vomitam secreções inflamadas, no fim é a força diminuída que permite consumar a sensação de afogamento. Com tantos dias a enviar secreções purulentas para o estômago, um dia a retribuição acontece e os pulmões são nutridos com a carne mastigada pelas máquinas domésticas. Mas não é com isso que perco o interesse pela gastronomia e ainda me lambuzo com mais refeições, não muitas. As suficientes para conseguir forças e gemer ecolálias. Gemer mas há quem diga gritar, depende da sensibilidade da compreensão e se fico posicionada para o lado do buraco que tenho na anca. Um buraco directamente proporcional ao que a minha menina me abriu quando a pari. Era um suspiro aquela menina, tenrinha num tempo de fome. Não chorou e eu também não, saiu à cêpa.

Mas imagino o melhor de tudo e é o agora, com a hemorragia a desfazer-se de mim. Eles enfiam-me toalhas na boca e no nariz, porque ninguém gosta de ver sangue e isso suja, aflige, enjoa. Por outro lado nunca fui dotada de respiração cutânea. Infelizmente não os culpo pelos seus pudores e fracos conhecimentos no sistema respiratório humano. Nem no circulatório. Nem na relação de ajuda.
Espero, pelas paragens…
Na verdade a aflição dá-nos aquela sensação de suor fixado na pele, de urina quente nas pernas, de pregas coladas, de roupa que queima e de exsudado que transborda dos buracos no corpo. Tudo junto dá aquilo a que chamo abstinência gananciosa do morto. Claro que até chegar a morta o tempo dá-me os segundos retalhados em migalhas. A sensação repentina e estranha de querer sobreviver não faz sentido real nos pensamentos da minha condição. Será que a minha menina também teve esta vontade?
É de noite, no pico da noite que deixam as toalhas ensanguentadas de molho no tanque do quintal para amolecerem e serem esfregadas de manhã. Depois desamarram o cinto, tiram-me mole da cadeira e deitam-me no chão para me lavar. Soube bem aquele banho, como quem lava um porco, jorram mangueiradas contra o meu corpo e com isso arrastam toda a sujidade que desliza para os esgotos comuns da população. Sou enrolada na colcha da minha cama, a que sempre usei, desde o meu primeiro dia de casada e finalmente espero na despensa, pendurada na trave de madeira para as linguiças.
Espero pela autópsia suavemente demorada dos talheres porque o tempo continua a ser de fome e o único buraco onde posso ser enterrada é o do estômago do meu marido. Compreendo. Aqui em casa nunca fomos estranhos com a carne uma vez que a terra jamais foi fértil para as verduras.

7 comentários:

  1. fico sempre de queixo caido ao ler te...excelente!

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  2. Que delícia de texto! :) Agora e sempre, fascina-me a forma genial de dizeres o mais atroz como se fosse um soneto, nunca o óbvio, nunca o lugar comum. Muito, muito bom.

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  3. Queria ter palavras para explicar como isto é sublime e nem uma. Mais uma vez emudeceste-me. O teu talento não tem limites e é uma honra poder ler-te.

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  4. perante a grandiosidade de um texto destes, qualquer comentário é supérfluo. Obrigado pela partilha

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