E porque Deus, sendo fêmea, só sabe gerar dentro de si, olhou o seu corpo gasto pelas gestações. E porque Deus, sendo imperfeito, não conhece a substância do divino, olhou as deformidades da matéria. E porque Deus, sendo finito, recebe a morte na taça da criação, olhou os elementos e rasgou uma vez mais o seu manto.
E disse: bebamos as águas, que são fluido da vida, para que o eleito seja transparente e tenha o ímpeto das correntes. E, depois de beber, foi Deus às florestas e cheirou a terra.
Mas o primeiro homem era informe e sujo. E ao tocar-lhe Deus sentiu os vértices do caos. E viu Deus que era mau. Tirou-lhe a vida e guardou-a entre os ramos dos seus cabelos. Beijou-o, deitou-o no regaço, enterrou-o e carpiu.
E disse: beijemos as trevas, de que se alimenta a luz, para que o eleito domine o ritmo das forças. E depois do beijo, foi Deus ao mar e provou o sal.
Mas o segundo homem era triste e inerte. E ao tocar-lhe Deus sentiu as pedras do sacrifício. E viu Deus que era mau. Tirou-lhe a vida e guardou-a dentro das lágrimas dos seus olhos. Acaricou-o, queimou-o, teceu um véu com as cinzas e chorou.
E disse: escutemos o fogo, que tem em si o fim e o princípio, para que o eleito conheça o silêncio e a purificação. E, depois de escutar, foi Deus às cavernas negras e contemplou os fios de luz.
Mas o terceiro homem era irado e vingativo. E ao tocar-lhe Deus sentiu um êxtase de lâminas. E viu Deus que era mau. Tirou-lhe a vida e esfregou-a nos lanhos da sua pele. Lambeu-o, afogou-o, banhou-se e sangrou.
E disse: comamos os bichos e as ervas, que são estéreis uns sem os outros, para para que o eleito saiba procurar além de si. E, depois de comer, foi Deus aos desertos ardentes e caminhou.
Mas o quarto homem era lúbrico e rude. E ao tocar-lhe Deus sentiu o acre da escuridão. E viu Deus que era mau. Tirou-lhe a vida e guardou-a no pó dos seus ossos. Chegou-o junto ao seu seio e alimentou-o com o branco leite negro veneno, esperou que secasse, varreu o mundo com ventos e gritou de dor.
Mas a agonia cedeu à lucidez. E disse: toquemos o céu que é o inverso da terra criada.
E subiu Deus às montanhas mas já não conseguiu levantar o braço exangue. Sem nada nas mãos, moldou o eleito com o vazio e com a sua própria alma. E uma criatura de barro surgiu-lhe no ventre, quase indistinta da sua carne.
Empurrado pelas vozes dos irmãos mortos guardados no corpo da mãe, o quinto homem rasgou-a antes de tempo. E para escapar à cegueira que já o agarrava e esmagava, deixou-se cair. E cresceram-lhe asas negras. E foi a tarde de um dia eterno.
E Deus desceu da montanha. E perseguiu o filho maldito. E viu que encontrara a música do tempo. E que procurara a poesia do horizonte. E que inventara palavras para todas as obras. E que escondera as imperfeições da criação com as penas das suas asas.
E ao tocar-lhe Deus sentiu o fel da loucura e do amor. E viu que era mau. Mas retirou a sua própria vida e guardou-a no coração do caído.
E na derradeira hora, Deus buscou a sua alma mais uma vez e criou outro ser, a mulher. E fê-la à sua imagem. Cada traço, cada veia, cada entrega, cada dor. E disse: uni-vos, frutificai-vos e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a. E descansou nos braços dos seus filhos. E foi a noite de um dia eterno.