quinta-feira, 15 de abril de 2010

A um passo de ti... (resposta a um enredo)

Regras para um Enredo:
Fernanda - 30 muitos anos, arquitecta. Vive num espaçoso apartamento perto da praia. É solteira, vive com uma iguana, três hamsters e uma recordação que não consegue apagar há já 14 anos: a do namorado que se suicidou à sua frente.
Paula - 20 e poucos anos, enfermeira num hospital, no serviço se Oncologia. Vive com a mãe e um irmão mais novo. É muito solitária e psicologicamente instável.
Mafalda - 23 anos, operadora de caixa numa grande superfície. É muito bonita. Vive frustrada contando as horas que faltam para ir dormir.
João - 50 e poucos anos, mecânico de automóveis. Três divórcios, dois filhos maiores emigrados na Alemanha. Vive em união de facto com uma cabeleireira com menos de metade da sua idade.



A um passo de ti.



Acto I – O Detective



“Mas isso deve ser fascinante!?”
Sim, por incrível que pareça, essa é uma das frases mais comuns que eu oiço quando conto a alguém da minha profissão. Sou detective acerca de 5 anos. Já me passaram pelos olhos muitos casos estranhos, até bizarros. Já conheci muita gente, demasiada até, que parecem a Madre Teresa de Calcutá perante a família e os amigos, e que vivem uma vida paralela digna de qualquer Borgia. Conheci homens de família simples e banais que no outro lado da cortina eram traficantes de droga, pedófilos, prostitutos ou escravos de uma Dominatrix que os usava como cinzeiros humanos. Pouco havia para me surpreender. Mas a vida guarda sempre uma surpresa para quando menos esperamos...

Há 12 anos atrás, quando me mudei para esta cidade, deixei para trás uma vida da qual não acreditava voltar a encontrar rasto. Mas, por mais que o neguemos, o mundo é um quintal, e com maior ou menor distância, estamos todos ligados.

O dia era isso mesmo, mais um dia, mais uma picadela no cartão de serviço, menos um dia para a reforma. Até que fui chamado pelo director do serviço para me ser dada uma investigação que iria alterar profundamente o rumo da minha vida. Um miúdo de 17 anos tinha aparentemente cometido suicídio de um modo demente e invulgarmente bizarro. O seu corpo foi encontrado num motel de estrada, em cima da cama. Teria fumado crack e, num aparente acto de erotismo suicida, praticou auto-sodomia com uma glock semi-automática, semelhante às que usamos na nossa força policial, acabando por díspar com ela introduzida no recto.
Quando cheguei ao local já a equipa forense tinha feito a maior parte do trabalho. Foi-me entregue um relatório preliminar onde constavam os dados da vítima, as condições em que foi encontrada e que haveria indícios da presença de outra pessoa no cenário do crime.



Acto II – As Vítimas (não somos todos?...)


O nome dele era Artur Dias e vivia com a mãe e a irmã numa pequena casa arrendada num bairro de classe média-baixa. A mãe, Adélia, era divorciada de um mecânico de automóveis conhecido por ter um gostinho particular pelas “facadinhas” no seu percurso matrimonial.
Adélia tornara-se uma mulher distante e perturbadoramente fantasista, que insistia em viver num mundo de ilusão paranóica de que o ex-marido não a tinha abandonado, mas sim morrido, e que por vezes voltava à noite para fazer amor com ela na cama que compraram juntos. Tinha-lhe sido diagnosticada depressão grave e estava em casa com baixa psiquiátrica há mais de 5 anos.
A meia-irmã Paula, filha de outra relação que a mãe tivera mais cedo, era enfermeira no serviço de oncologia do hospital central. Também ela uma personagem curiosa. Muito atraente, embora não fosse exactamente bonita. Tinha um corpo magro e aparentemente débil, cabelo muito escuro e liso, olhos afundados nas órbitas escurecidas por anos de olheiras e angústias. Tinha um sorriso magnífico, discreto e encantador, enternecedor, capaz de fazer qualquer homem fixar-se na sua face que de repente se iluminava com uma doçura fulminante. Era sol de pouca dura, e a sua fragilidade irrompia com frequência à flor da pele, desfazendo o sorriso em milhões de estilhaços amargos. Paula raramente era vista com mais alguém fora do serviço. A excepção era a Mafalda, uma amiga um pouco mais velha que ela, que fazia 23 anos no dia em que a interroguei. Conheciam-se dos tempos de liceu, onde Mafalda era a estrela ‘teen’ que coleccionava namorados como se fossem troféus, e Paula a ‘craniozinho’ que lhe dava explicações em troca de um possível arranjinho com alguém que estivesse disponível para a amar.

Mafalda tinha uma irmã quase da mesma idade, a Irene, que era agora ajudante de salão de cabeleireira. Tinha trabalhado com a irmã como caixa no hipermercado, mas não aguentava a rotina de embalar as compras em silêncio. Era uma mulher muito activa, na boca de alguns a palavra era ‘vadia’ ou ‘leviana’. No entanto havia já quase 2 anos que vivia com o ex-padrasto da Paula, o Dias da oficina. Conheceram-se num bar de engate, onde mais podia um homem de 53 anos feitos arranjar uma miúda de 25 disposta a aturá-lo?



Acto III – Amar/Arma



À medida que procedia com a investigação e desenhava os perfis das pessoas próximas do Artur, ia desvelando alguns factos perturbadores. Fossem boatos ou não, talvez me ajudassem a desenhar o perfil do Artur e compreender como pudera ele ter chegado a um fim tão macabro.
O que constava era que, no verão desse ano que agora entrava no final de Novembro, Artur conhecera o filho mais velho do Dias, o Victor, de 33 anos. Este tal Victor vivia na Alemanha, onde supostamente trabalharia em mecânica de automóveis, tal como o pai. No entanto, o que se diz é que ele vivia de negócios muito negros ligados ao mundo da pedofilia e tráfico de drogas. Um ‘belo rapazinho’, segundo consegui perceber pelo seu já longo cadastro. Ao que tudo indica, Victor e Artur tiveram algum tipo de relação, muito escondida, que não se tratou de simples amizade casual entre meio-irmãos.

Segundo me consegui aperceber das conversas com Paula, Artur tinha uma amiga, uma senhora mais velha, que era uma espécie de segunda mãe (ou mãe de substituição, como dizia a Paula).
Tratava-se de uma arquitecta que vivia num casarão junto à praia. Paula conhecia-a bem, pois via nela um modelo do que se haveria de tornar: rica, excêntrica... e completamente só. Segundo ela, a Sr.ª Arquitecta (era assim que ela a tratava) rodeava-se de objectos de arte requintados, provenientes de todo o mundo e arredores, prestando uma devoção quase doentia aos seus animais de estimação, desde os cães que lhe guardavam a casa, à Iguana que tantos calafrios causavam a Paula. Esta contava que, sempre que Artur andava mais frágil ou desequilibrado ia a correr para casa da Sr.ª Arquitecta e vinha de lá sempre mais calmo e seguro. Mas desde Junho que a tal arquitecta partira numa viagem à volta do mundo, dizia-se que ela sofria de um enorme desgosto que nunca a ultrapassara, mas que ninguém sabia bem o que afinal se tinha passado, pois só à 7 anos é que ela vivia naquela comunidade.

Não foi difícil ligar Victor com Artur. Passados menos de 3 dias de investigação, recebo notícias do laboratório criminal de que foram encontrados vestígios de pele e de sémen no corpo de Artur, e que o DNA destes correspondia ao de Victor. Sem dúvida, este estivera no Motel com Artur no dia da sua morte.
Mais duas semanas de investigação, entrevistas, interrogatórios e referências cruzadas permitiram-me chegar à triste conclusão: Artur de facto suicidara-se. Os seus 17 anos não tinham a maturidade suficiente para admitir perante todos a sua homossexualidade. E para piorar a sua angústia e dor, o seu primeiro e único amante fora o seu meio-irmão. Depois de terem passado parte da noite juntos a fumar crack e envolvidos em actividades sexuais, Victor deixou Artur só no quarto de Motel. Mas esqueceu-se da arma que sempre trazia no bolso do blusão, rotina de ‘dealer’. Ou talvez não se tivesse esquecido, mas teria sido Artur que a surrupiara num instinto pré-programado…
O resto é demasiado doentio e triste para contar. Artur não conseguiu lidar a sua própria identidade sexual e, num acto de desespero ou de delírio tóxico induzido pelo crack, introduzi-o a pistola do irmão-amante no seu corpo e, num simbólico acto final de encenação, disparou...

Esta era a história sórdida que tinha para contar. Mas a minha própria história ainda teria um capítulo cruel para me acrescentar…



Acto IV – (A)mar sem fim


Há 15 anos atrás tive uma relação amorosa extremamente intensa durante um ano com uma professora de Geometria Descritiva do liceu onde tinha aulas. Eu tinha 18 anos e estava a preparar-me para a admissão na faculdade.
Vivemos toda a plenitude do amor proibido, do secreto romantismo dos amantes, da emoção e da luxúria. Mas eu sabia que mais tarde ou mais cedo tudo iria ser descoberto, e que ambos seriamos crucificados pelos nossos actos, perdendo para sempre a honra e ficando eternamente marcados a fogo. Temia mais por ela do que por mim. Então decidi optar pela única saída possível, a única alternativa que me parecia resultar na altura…

Foi no final do verão, em Setembro, nas semanas em que o vento de nortada agita as águas para causar marés vivas. Fomos até à ‘nossa’ praia, num dia que foi o dia mais feliz da minha vida. Acordámos juntos, e juntos passámos todo o dia. Perdi a conta do tempo entre corpos, das horas que nos deixámos ficar nos braços um do outro, que prometemos amor eterno... e impossível...!
No fim da tarde, após o por do Sol disse-lhe que ia nadar. Ela olhou para mim e viu o vazio que me enchia o olhar. “Estás a mentir!”, disse-me. “Queres abandonar-me!”. Eu virei a cara e num acto encenado de desespero respondi-lhe que a ia deixar, a ela e ao mundo. Ela gelou e não se conseguiu mexer, nem dizer uma única palavra. O pânico e o horror tolheram-lhe todos os sentidos, a alma dela submergiu num inferno negro para não voltar a ser vista. Beijei-a uma última vez e entrei mar adentro.
Ela não gritou, não ergueu um braço, nem sequer teve força para chorar. Viu-me desaparecer diante dela, que estacou impotente enquanto contemplava em câmara lenta o meu desaparecimento, enquanto o mar me engolia...

O plano foi perfeito, o desaparecimento progressivo da luz do Sol impediu que ela me visse a nadar por trás da ondulação tremenda que se abatia sobre a costa. E assim morri para ela e o seu mundo, e fui ‘ressuscitar’ noutra costa, com outra vida e outro nome. Fiz o curso de Investigação Criminal e mudei-me para uma nova cidade.

No dia em que terminou a investigação da morte do Artur decidi voltar para casa de avião. Eram 16h45m e encaminhava-me para a zona de embarque, faltava ainda 1 hora e meia para o meu voo. Ouvia-se no sistema de som “O voo KLM 722 proveniente de Reykjavik acaba de aterrar”. “Islândia”, pensei eu em voz alta. Era um dos meus destinos de sonho quando era adolescente. Contava a toda a gente que ainda um dia havia de lá ir.

No lobby daquele imenso aeroporto, por entre uma amálgama de gente de várias nacionalidades, por entre viajantes de todos os cantos do mundo, contra todas as probabilidades... cruzei-me com ela, acabada de chegar de Reykjavik, aquela que eu deixei no areal soprado pelo vento de nortada, aquela que me tinha dado como morto. O reconhecimento mútuo foi imediato. O sobressalto fez-me sorrir nervosamente, tentando obter algo de volta.
Mas o que recebi em troca foi uma expressão gélida de desgosto e infinita dor. Durante os 5 segundos que ela me olhou fixamente senti 14 anos de dor, tristeza e imensa culpa a serem descarregados nos meus olhos. Depois virou-me a cara e abandonou-me, tal como eu o fizera naquele fim de tarde, e entrou pelo mar de gente adentro, e nunca mais a voltei a ver.
Hoje pergunto-me se terei feito o que devia. Questiono-me sobre que direito tinha eu de tomar a decisão que tomei. Mas ficou claro para mim de que amei e fui incondicionalmente amado.

Eu sei que nunca te esquecerei, minha querida… tal como agora sei que tu serias tão mais feliz se me tivesses esquecido…

4 comentários:

  1. Tens uma extraodinária capacidade para criar personagens (ou não fosses "o criador" :P) e é muito interessante essa tendência para ir buscá-las em caves negras. A tua abordagem das histórias é muito crua, o que além de prender quem te lê, liga muito bem com as tuas "criações". Deves ter vivido no século XIX na tua anterior encarnação... ;)

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  2. ... quem sabe, tomei um chá de lapsang souchong com Allan Poe e um copo de vinho com resina de ópio com Baudelaire... é uma bela fantasia!

    ... agora vou ali à cave desenterrar mais um conto, volto logo, logo...

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  3. A tua escrita faz-me sempre começar a transformar o que estou a ler em imagens, mas tudo isto de forma inconsciente, porque quando dou por mim já estou dentro do "filme". São contos que nos absorvem e que nós absorvemos, ainda bem que estão escondidos numa "cave" e desfilam cá fora um por um. Imagina o que seria alguém cair lá e ver todos ao mesmo tempo... ia ser uma overdose garantida por presenciar tanta criação junta :)

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  4. Sentada saboreando um cha..vou ficar a espera que venhas da cave com mais um, não me importo de esperar...é um prazer ler te:)

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