sexta-feira, 7 de maio de 2010

Pobre Edward O. (Parte II de III)

Parte II: O Anjo Negro



Cena 1: Crepúsculo

A tarde ia avançada e Helios beijava a linha do horizonte pela última vez, era chegada a hora de Silene se erguer sob os mortais que dentro de algumas horas se iriam recolher nos braços de Morfeu. Mas Hades espreitava, ansioso e faminto… A hora da ilusão descia sobre nós…


Cena 2: (Não-)existência

O caminho é rigorosamente sempre o mesmo: das traseiras para a ruela, da ruela para a avenida, da avenida para o beco. Mão no bolso. Chave à porta. Átrio, escadas, nova porta. Nova chave. Casa.

Despido o sobretudo e pousado o chapéu, encaminha-se para a bacia e lava as mãos e o rosto. Aquece um pouco de água para o chá e passa a manteiga no pouco de pão que ainda lhe resta da manhã. Sentado no cadeirão, lê mais alguns capítulos d’Os Irmãos Karamazov de Dostoievsky: "Com a força que sinto em mim, creio-me capaz de suportar todos os sofrimentos, contanto que me possa dizer a cada instante: "Eu existo". Entre tormentos, crispado pela tortura, mas existo! Exposto ao pelourinho, eu existo apesar de tudo, vejo o sol e, se não o vejo, sei que está lá. E saber isso já é toda a vida."

Pousados os óculos e exalado um profundo suspiro de consternação, Edward O. decide tomar a noite como berço e aninhar-se entre memórias, escurecidas e gastas, como sua alma. E era a sua alma que mais o fazia temer por tudo o que havia sido, mas mais, muito mais, pelo que não havia sido. Em breves instantes viria o abismo, a profundeza do esquecimento, o sono que tolhe o juízo do inquiridor. Dorme pobre Edward, que a noite escura te ilumine…

Edward O. Só consigo mesmo e os seus sonhos. Só entre as muralhas do infinito e perante Deus. Só. Mas por pouco tempo, pois esta noite, Edward O. era visitado por um Anjo Negro errante…


Cena 3: Mensagem


“Não te movas Caminhante. Não ouses saber quem sou nem porque te visito. Deixa fluir a narcolépsia que te enrola o sentir, pois nada há para sentir nas minhas palavras, apenas a mensagem interessa.”

Edward O. era uma erva sacudida pelo vento da tempestade, mantinha-se agarrado a si mesmo, mas ciente de que nada era perante tal força imensa.

“Em três dias a tua vida termina. Despirás tuas vestes e seguirás viagem na escura estrada. Oh pobre Edward, aproveita, aproveita bem estes 3 dias, pois são os teus derradeiros momentos na Terra.”

Edward O. não estava só consigo mesmo e os seus sonhos. Perante ele, abrira-se uma brecha nas muralhas do infinito e Deus era o farol que incendiava a noite com rasgos de âmbar e carmim. Logo a ele, a quem a vida escapara por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma, fora desvelado o Apocalipse, os dias do fim…

A hora antes da aurora foi tão extensa como as histórias que a sua senhoria lhe contava, sempre que o apanhava a entrar ou a sair de casa. Mas valeu-lhe sentir na baça retina o primeiro brilho do dealbar. E á medida que o fulgor aumentava, renascia algo em Edward O. Algo vibrante e inquieto. Era vida, vida que lhe escapava e agora pulsava forte…


Cena 4: Os dias do fim

Dia 1.

Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a rotina que ainda o prende.

Regista tudo, a entrada e saída da menina do dia, que vem alegrar a manhã do patrão. Aponta a despesa no seu livro sob o tema ‘Outros Serviços – solicitação de prostitutas’. Pousa o seu livro e redige a sua carta de demissão. Cerra-a num envelope cinza claro e dirige-se até à secretária do patrão. Pousa o envelope sem dizer uma única palavra ao chefe que, ainda a apertar o cinto, se sobressalta com a sua presença, enquanto tenta disfarçar ao dizer para a jovem que o acompanhava “As botas de veludo estão muito na moda este ano, a senhora vai-se sentir magnífica com elas”. A jovem desfazia um pequeno riso enquanto olhava parva para Edward O. Este sorriu de volta para ela. Curioso, Edward O. estava certo de que haveriam passado anos a fio desde que sorrira pela última vez…

Confiante e altivo, segue porta fora, passa pelo salão da sapataria, cumprimenta os clientes e empregados uma última vez, com uma vénia ligeira e um ‘até sempre meus caros’. Caminha com a aura excelsa de quem se despediu de um verme pequeno e mesquinho. Ao sair esbarra-se com a mulher do Patrão. Pede-lhe perdão. Primeiro pelo encontrão. Depois, pelos anos de ocultação e vergonha a que se submeteu. Atónita, esta deixa cair o seu caniche de colo e, mais violentamente, a si mesma, esparramada na carpete de feltro da sapataria que erguera como altar a seu divino esposo.

Edward O. 39 anos. Desempregado. Vive o seu primeiro dia na cidade, debaixo do Sol. Livre do cheiro a papel amarelecido pelo tempo e do travo a azul metileno. Azul agora, só o do céu que o cobria.




Dia 2.

O tempo voa e com ele levanta as folhas das árvores e a poeira dos anos perdidos. A água que agora te molha não é para beber, são as lágrimas que nunca derramaste, a saliva dos beijos que ficaram presos nos teus lábios, o suor de um dia de Verão passado no campo a apascentar ovelhas, a chuva que te haveria de molhar, enquanto rodopiavas a mulher dos teus sonhos, agarrada a teus braços, a suspirar por ti, enquanto carregava teu fruto em seu ventre.

Hoje vais observar as crianças no jardim, puras e doces como as camomilas que perfumam o ar. Tu és uma delas, estás mesmo ali, de mão dada ao mais pequeno, para o ajudar a subir ao banco de pedra, a gritar que te passem a bola para marcares golo, a ver no carreiro as formigas a carregarem sementes com cinco vezes o seu tamanho, a sujares os calções de lama sem te lembrares do ralhete que irás receber ao chegar a casa…

Irás dormir exausto de tanta excitação e brincadeira. E este será o dia mais feliz da tua vida.



Dia 3.

Edward O. acorda pouco após o nascer do Sol, mas hoje, não tem pressa que o dia comece, pois quanto mais depressa o inicie, mas depressa se encaminha para o seu fim…

Quando finalmente se resigna e se apronta para abandonar o leito, sente no coração uma pontada de dor forte, como se fosse o gume de uma faca a penetrar lento em seu peito. É a ansiedade que se apodera de ti, oh pobre Edward O.

Vestiu o seu melhor fato, a mais cara gravata italiana de seda e o par de sapatos de couro de búfalo que estava a guardar para o seu próprio funeral. Hoje parecia-lhe ser o dia indicado para os usar. Colocou o seu chapéu e pegou no sobretudo. Deixou as chaves em cima do aparador da entrada. Saiu e fechou a porta, sem olhar para trás.

Ao passar pelo átrio encontrou a senhoria, mas antes que esta pudesse abrir a boca para falar, Edward O. espetou a sua mão aberta em frente dela e disse com calma e suavidade: “Minha cara senhora, deixo-lhe o meu profundo agradecimento pelos anos à sua guarda, mas hoje saio desta porta pela última vez, para não mais voltar. Por favor, trate de que venha alguém mais sorridente e falador para ocupar o lugar triste e oco que ora abandono. Bem-haja, cara senhora, bem-haja.” E saiu pela porta da rua, passando pelo beco em direcção à avenida.

Edward O. passou o dia a caminhar pela cidade, até sair para além dela, caminhou até sentir a lama a cobrir os seus sapatos de pele de Búfalo, foi andando e largou a gravata de seda sob as roseiras bravas e ofereceu o sobretudo a uma velha árvore decadente que parecia gritar por um final aconchego.

Agora estava perante o grande rio, largo e grandioso. Aproximou-se das margens saibrosas e fez planar sobre as águas turvas um par de seixos mais aplastrados, tendo o mais ligeiro saltitado quase até à outra margem, do outro lado, para além do seu conhecimento.

O dia chegava ao fim e no peito de Edward O. restava agora a sensação de plenitude e autoconhecimento. Ele soubera finalmente quem era, o que poderia ter sido e o que decidira ser. No que se tornara. Edward O. via-se a si mesmo reflectido nas águas paradas do rio e nada mais lhe trazia angústia ou arrependimento. Aceitara o seu destino.

O Sol cumpria mais uma jornada e puxava agora atrás de si o manto de trevas estreladas que para alguns seria apenas mais uma noite. Em 5 segundos estava terminado o terceiro dia que o Anjo anunciara.

5… 4…
Edward O. suspira de alívio e sorri. Está pronto.

3… 2…
Nada teme. Abraça a morte com a entrega de quem reconhece a própria Mãe.

A última luz que brilha no seu olhar é profunda e infinita. Como a sua alma.

(continua)

5 comentários:

  1. Ai, Nuno...a escrita!
    Eu devo-te mil perdões, embora nenhuma desculpa possa servir...colocaste-nos a todos esse fantástico desafio de Alone in The Dark e nunca pude corresponder...arrasto-me entre milhentas coisas para fazer, sempre com pena de deixar assim a vida a passar ao lado...
    As escritas são uma tentação quase irrecusável...lembraste dos tempos de Luz e Sombra?? Vamos ver se eu consigo alguma coisa, mas não prometo nada!
    É bom reencontrar-te aqui, nas escritas, cheio de energia, de imaginação e de vida!!

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  2. Oi Isabel
    Estás perdoada, agora venham de lá essas escritas
    O tempo do Luz % Sombra é passado, aqui escreve-se o futuro ;)

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  3. E que bem se escreve, deixa-me dizer-te. Estou a adorar o teu Edward O., o discreto contabilista de uma sapataria povoada de personagens pequeno-burguesas e de uma deliciosa decadência. Ele é muito kafquiano, não no estilo mas na sua solidão, no confronto com o inevitável. "Edward O. 39 anos. Desempregado. Vive o seu primeiro dia na cidade, debaixo do Sol. Livre do cheiro a papel amarelecido pelo tempo e do travo a azul metileno. Azul agora, só o do céu que o cobria." Gosto muito disto.
    Confrontado com a sua própria mortalidade, começará ele por fim a viver ou será o agente involuntário que vai quebrar o lacre de um qualquer Sétimo Selo? Parece-me que nos vais nos dar um daqueles finais de deixar a boca à banda. A twisted twist, very unexpected... :)
    Venha de lá isso. :)

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  4. Valeu a pena esperar! Está diferente do habitual. Nota-se menos a compulsão por contar a história e dar corpo às personagens mas em troca sente-se o passar do tempo, visualiza-se os cenários, mais significados paralelos, um estilo mais difícil de penetrar... menos sanguíneo, mais cerebral. Muito bom... tanto, que, como só acontece nos livros de que gosto, não me importo de ficar mais um bocadinho na antecipação do despecho. :-)

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  5. Faltou-me dizer isso: está muito mais contido. Deixas espaço para as personagens crescerem e ganharem corpo, de nos contagiarem. Ficamos a torcer por um último segundo de redenção.
    A escolha da música também é muito boa, acompanha bem todos os momentos dele, como num filme. Parabéns, estás em forma inspiradora.

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