domingo, 4 de julho de 2010

Artesanato



“Pára quieta com a mão! Menina insolente… assim não consigo cortar a direito. Pronto, já está. Dez dedinhos. Toma cão, já tens jantar para hoje.
Raios! Pára de me berrar aos ouvidos… bela medricas me saíste. Já aqui estive melhores do que tu.”

Na cabana, ao fundo do bosque, vive ele, o homem que tem como forma de vida a arte da morte. Não uma morte pelo simples prazer de ser morte, mas uma morte que tem sempre um propósito. Chama-lhe morte útil, e para ele é uma simples forma de expressão.

Ata uma corda à volta dos tornozelos e deixa-a pendurada de cabeça para baixo. Dez canais jorram para o chão até que ficam só a conta gotas. Chão vermelho, a chão vermelho escuro, a simples nódoa… Corta a corda com um só golpe e ela cai. Ouve-se um estalar e ele pensa “raios, é mesmo frágil, já partiu o pescoço, que má caçada, nem luta deu.”
Arranca os olhos das órbitas, nunca gostou de sentir olhares fixos nele, nem mesmo daqueles que davam tudo para nunca ter tido o azar de olhar para ele. Litros de ácido são injectados pela boca e pelas narinas para o interior do corpo. Não quer o corpo desventrado. Espera. Enquanto isso, abre a porta e deixa o cão sair para a rua. Uma lufada de ar frio entra. De novo pendurada de cabeça para baixo, os órgãos que derreteram vão saindo aos poucos. Com a ajuda de um ferro tenta raspar ao máximo o interior do corpo. Flores. Flores que nascem no bosque, flores de todas as cores e de vários perfumes são empurradas para dentro do corpo e as duas mais bonitas são colocadas nas órbitas oculares “Menina perfumada, de olhar florido, gosto do teu olhar doce.” Os lábios são cosidos, ponto cruzado, perfeito. Herdou esse jeito da mãe costureira.
Braços e pernas amputados e assim há jantar para a vara de porcos que tem nas traseiras da cabana. Os cotos levam o mesmo ponto cruzado e ficam com uma bainha muito bem rematada. Trabalho finalizado. Abre a porta, o cão entra. A noite traz novamente aquela brisa gelada do bosque, que se mistura com o aroma a sangue e flores. É esse o objectivo. Gosta de trabalhos manuais e este é o seu preferido. “Menina, meu saquinho de renda perfumado.” Sorri. Sorri novamente e começa a lavar o chão.

Pega no cão ao colo e faz-me festinhas na cabeça. “Nenhum animal no mundo deveria sofrer, muito menos ser maltratado com propósito.” Respira fundo para apagar esta imagem da cabeça, quase lhe escorrem lágrimas de cada vez que pensa nisso. “Nunca vou deixar ninguém fazer-te mal. Vou dar-te sempre o melhor lar. Amanhã terás um tapete para te deitares e dormires quentinho ao pé da lareira.”

Ele, que vive na cabana ao fundo do bosque, sabe que encontrar matéria-prima é muito fácil. A inocência é sua aliada e neste momento…
Ela abre os olhos. Acorda pela última vez e daqui a poucas horas vai estar a atravessar o bosque para conseguir chegar ao rio.

Amanhã, a esta mesma hora, vai ser um bonito tapete entrançado, com um excelente acabamento.

4 comentários:

  1. (... ainda a tentar recuperar o batimento cardíaco regular...)

    Aqui fica a minha enorme vénia, Mr. Poe ficaria orgulhoso de ti!

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  2. A explorar caminhos retorcidos e a abrir as portas seladas, Inês? Continua. Estou a gostar muito.

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  3. gosto muito!! brilhante, límpido, claro e preciso!!

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  4. pfffff
    Are you revealing a secret garden Inês? Mas que bem! Estou sem palavras

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