domingo, 6 de março de 2011

5.3

“Olha nos meus olhos e não digas o que vês. Diz-me por favor o que não vês”


A criança-prodígio a todos maravilhava com os seus discursos sobre a beleza das coisas, sobre a amizade que nos une e narrava os dias de felicidade em que as ruas eram pátios vivos de brincadeiras e jogos entre meninos e meninas, em alegre convívio e sob o atento mas sereno olhar vigilante das mães, avós e vizinhas que se abeiravam dos parapeitos para assomar o rebuliço que fazia pulsar a cidade.

A criança-prodígio conta-nos de coisas que deixam mais leve o coração, conta-nos de coisas que assim queríamos que fossem contadas, daquela exacta maneira, com aquele exacto desfecho em aberto, com aquele preciso tom de que precisa de dizer o que tanto precisamos de ouvir contar. Homens e mulheres, professores, doutores e gente de todos os ofícios, credos e cores se junta, para a ouvir contar sobre a beleza das coisas, os dias felizes. Então o menino conta como foi, conta como é o mundo que existe na sua mente, lavra os campos da memória colectiva com o arado da sua imaginação e loucura infantil, leva-nos a saber mais sobre o mundo de que ele nada sabe, só sonha e descreve com minúcia e textura, a criança que tem o prodígio de nos fascinar é tabula rasa, pois cria a beleza das coisas que não experimentou, narra a felicidade que não viveu, pulsa uma luz volátil que nos deixa em rebuliço sem saber porquê, leva-nos ao desespero porque queremos entrar pelas ruas e pátios onde ela brinca alegre e desprendida. Esta criança é um espelho mágico que nos mostra que Branca de Neve é e será sempre a mais bela, que nós somos feios, pequenos, egoístas e mesquinhos, nada sabemos sobre a beleza das coisas, filtramos a amizade e envenenamos as relações com desconfianças, traições e jogos de poder, convívios que não passam de lutas ferozes dissimuladas, seja o ringue um jantar da empresa, um baile de debutantes ou uma defesa de tese de Doutoramento.

Olhamos para o menino-espelho e vemos tudo aquilo que mais tememos: o que não temos dentro de nós. O menino-espelho é deveras o ungido, o escolhido, Zoroaster, o filho do nada infinito, a fusão da verdade-mentira, a ilusão do pensamento não-linear, a ilusão da realidade impossível e, contudo, impassível. Ele é a ponte que temos que percorrer, entre o poço das bestas e o voo dos anjos, entre o abismo e a montanha. Por ele temos que subir a montanha, conhecer o outro lado do espelho, a verdade, a minha, a tua e a que é como é.

A criança mágica, o prodígio da Natureza que se senta perante nós e nos conta histórias do passado que não tivemos e do futuro que ela não poderá ter é a luz do mundo, a salvação da peregrinação cega ad nihilo, a prova de qua a nossa civilização entrou em Reductio ad absurdum, ela própria existe porque não pode existir, é o derradeiro reflexo do que nada reflecte porque absorve toda a luz disponível, tornámo-nos vórtices de matéria e energia, buracos negros em instabilidade gravitacional que ameaçam destabilizar todo o universo e provar, de uma vez por todas que afinal, a teoria foi assassinada pela prática e irá colapsar como uma supernova, esmagada pela sua própria massa e gravidade, mas cuja destruição inevitável irá gerar todo um novo fluxo de energia, conhecimento e luz.

O grande desafio de provar o que não é passível de ser provado, por demais evidente ser improvável é que nós somos a prova de que o Universo é infinito, senão pelo menos à escala da nossa imaginação e maior, muito maior que a nossa ciência. Deus joga aos dados com a menina dos caracóis dourados e o universo encontra o seu equilíbrio por fim, tal como deve ser, nem muito frio, nem muito quente, mas com as condições exactas para que a vida prospere e exista quod est demonstratum. Porque não percebemos então que a multiplicidade de personagens é ao fim de contas um arco-íris, o espectro desdobrado, a descoberta de Newton que deixou Keats à beira de um ataque de nervos, escrevia o Poeta sobre o despropósito com que o Físico destruía a beleza das coisas: “Philosophy will clip an Angel's wings, Conquer all mysteries by rule and line, Empty the haunted air, and gnomed mine - Unweave a rainbow, as it erewhile made The tender-person'd Lamia melt into a shade.“ Mas, oh pobre poeta que na tua campa és esmagado pela força da maça de Isaac, tudo o que nos quiseste dizer é que há coisas que não devem ser explicadas, maravilhas que foram feitas para maravilhar, não para desdobrar, medir, pesar, cortar, descrever, analisar, sintetizar, formular, dissecar, teorizar, violar.

A mente de Deus é e deve para sempre permanecer inacessível, pois nada poderemos compreender sobre tudo o que é em absoluto para além da nossa compreensão. Então fragmentamo-nos, como as cores do arco-íris e para além delas e formamos todo um espectro de seres que se aglutinam para parecerem um só, para além da violência do vermelho e da angústia do violeta, espalhamo-nos por entre o vão das ondas que nos desenham nas areias dos tempos e somos. Somos homens e mulheres, professores, doutores e gente de todos os ofícios, credos e cores se junta, para criar a História, não como ela é mas como a pintamos. Até que um dia nasça da Natureza um milagre, o prodígio, a criança-espelho que nos mostre a salvação, que tudo pode mudar se encontrarmos a matéria negra que não vemos mas que nos mantém unidos e separados, estáveis num universo em expansão, onde o futuro demora menos a chegar mas que permanece inalcançável, onde a seta percorre espaços cada vez mais curtos sem que acerte de uma vez no alvo mas em que já descobrimos: não existe um alvo.

Olhamos para o espelho e vemos as coisas simples. Um universo de harmonia das esferas, uma infância feliz num berço civilizacional simplificado, o retorno à Terra-prometida, o regresso ao que nunca existiu.

Por tudo isto e mais que não sabemos dizer admiramos a criança-espelho. Olhamos para dentro de nós e sabemos que o indivisível é na realidade a união dos opostos. Dois a dois subimos a derradeira montanha que nos mostrará a linha do horizonte onde se esconde elusivo o divino. O mundo mudará no dia em que luz e trevas sejam compreendidas pelo que são, verso e reverso, uma sem a qual a outra deixa de fazer sentido. E o espelho que tanto admiramos dobrar-se-à sobre si mesmo, libertando a criança aprisionada num reino de fantasia e verdade, para que da montanha possa descer apenas um de nós e nenhum de entre nós.

Chegamos ao fim do terceiro dia. A madrugada canta e embala a criança. Já não há espelhos entre eu e ela. O mundo reajusta-se e volta ao seu estado de equilíbrio, onde tudo é como deve ser, absolutamente perfeito.

3 comentários:

  1. Muito bom, mesmo. Pensei que só tinha três partes mas eu devia ter desconfiado que não acabavas sem uma mensagem final de esperança.... [e agora acrescentavas mais uma parte bem down, só para não me armar em esperta... ;)]

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  2. Nietzsche meets Sagan. Do micro para o macrocosmos, humano e físico, da luz para trevas e daí para a luz de novo. Muito filosófico e muito bom.

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  3. No limiar do avesso do direito do oposto do contrário...whatever, muito bom, prontU ;-))

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