quinta-feira, 3 de março de 2011

Chá das horas mortas



Quando te vi, tu e ela, pela primeira vez, a tua língua de trapos estava dilatada de anos e esses anos encarregaram-se de amputar a respiração do teu coração fraco. Nesse dia não fiquei muito tempo a olhar para ela. Olhar para ti sempre me deu mais prazer aos sentidos.
Mais tarde, o teu tronco surpreendeu-me a jorrar de um sangue que te agasalhou de coágulos até à exaustão da grande circulação. Manchei todo o meu branco mas, ainda assim, não deixei que ela me falasse. Preferi escutar-te e com isso lembrar-me do quanto me pediste para ficar perto de ti.
Próximo da hora das estrelas, os teus membros inferiores encharcados até aos joelhos de tosse produtiva planearam ceder à força do aperto e antes que conseguisse descalçar-te aquela bota, já ela te tinha vestido collants cor de vazio. Para a próxima prometo-te que a deixo entre o murro pré-cordial e os lençois da tua cama.
Quando o sol já ia a rebentar no escuro da noite, senti o peso apertado da tua mão leve no meu braço e antes de acalmar as tuas lágrimas frágeis, ela inspirou-te e na mesma sucção quase me levou contigo. Fiquei agarrada aos teus membros superiores mas não consegui a atenção dela, escorregou-me mais uma vez entre as pupilas dos dedos.

Agora, quando pouco sobra de ti, não sei quantas mais vezes me irás morrer no mesmo dia.
Agora, se ela quer tanto atravessar-se no meu caminho, prefiro que me convide (de uma vez por todas) para um chá, longe daqui e das pálpebras que tenho de fechar constantemente por sua causa. Prefiro acertar contas pessoalmente… a água já está quente há muito tempo.

6 comentários:

  1. Um chá sem açucar, tal como a vida nos serve de vez em quando. Dá para muito facilmente nos sentirmos na pele da protagonista, o que define um texto muito bom.

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  2. Um dos textos menos filtrados que te vi escrever. Lirismo puro, desvelado. Muito bom.

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  3. Não sei como consegues, mas ainda bem que o consegues!

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  4. perder alguém aos poucos, enfrentar o monstro olhos nos olhos. sente-se a dor que aqui escreves, com medo daquela que o sujeito desta história sente sem dizer. lirismo puro e muito duro. Lindissimo, como sempre.

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