sexta-feira, 11 de março de 2011

Duche



Tu, tão formosa e cheia de graça, detrás desse vidro fosco cuja sombra clara me rouba o fôlego. Como se o brilho da tua pele me tornasse baço e oleoso, na mesma medida em que o gel te lava a alva pele de fada. Como se inflacionasse a minha flácida barriga de pouca cerveja e de muita fome de vida. Barriga de bicho do mato, sem letras nem óculos de ver a mesma vida, astigmatisada. Abdomenizo-me até à hiperventilação, enquanto tento pescar no mar revolto da minha trapalhice, 250 gramas de conversa de circunstancia.

Sais do duche, olhas-me esperando algo que já vomito ainda antes de abrir a boca e rebobinar mentalmente a alegadamente bela tirada com que pretendia quebrar o gelo. Sinto as têmporas dilatarem com o ricochete da tua toalha turca, com o reflexo esbranquiçado do teu olhar trocista de observadora atenta.

-"Desculpa hoje, cada vez que abro a boca ou entra mosca ou sai..."

E não acabei, inibido com a vergonha de me envergonhar. Como se estivesse preso no corpo de há 20 anos atrás, mas com a graça triste e deprimente da meia idade.

Encolheste os ombros, e viraste costas ao isco reles que usei, vestiste o piscar de olhos superficial, com que tentas içar-me do abismo de qual só vês um décimo.

-"Deixa lá, tens suficientes truques de magia para nem precisares de falar. Dorme!"

Escalaste os saltos agulha e enquanto abri e fechei os olhos, nem o vento da porta senti quando saíste.

Que frio tenho desde sempre!

3 comentários:

  1. que estranheza familiar encontro em teu desenlaçar de palavras, um ameno desconforto que me deixa à beira da crueldade das palavras.

    Estás em grande forma

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  2. Gosto quando vejo cada detalhe visualmente num texto, como se pudesse tocar...
    Em poema ou prosa, gosto muito do teu vulto.

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  3. Senti cada palavra. mesmo as que não disseste.
    E a água fria do duche num acenar de adeus irresoluto.
    Adoro a tua escrita.

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