terça-feira, 19 de julho de 2011

Confidências em epiderme de cordeiro



Não imagino o que fazer nas noites em que as mouras encantadas cospem raios, serpenteiam por grutas ou diluem-se em água.
Igualmente não imagino o que fazer nas manhãs em que as fadas tocam nas cabeças dos bebés com varinhas e desejam que sejam bonitos e inteligentes para depois crescerem e passarem cem anos a dormir na torre mais alta do castelo.
Na verdade, nunca soube o que fazer nas tardes em que o João troca vacas por feijões e depois fica com um pé a bater nas nuvens.
O que tenho de certo é que hoje (tal como ontem) entre o final da manhã e início da tarde fui outra vez obrigado a andar com uma sutura de alto a baixo na barriga para depois, por causa do pêlo, os pontos infectarem sempre. A menina de vermelho irrita-me de cada vez que me confunde com a senhora das rugas. É muito triste quando um animal não consegue reconhecer outro da mesma espécie, ainda mais quando se diz racional. E desde quando é que o "é para te comer melhor" implica que o acto seja consumado? Como podem as pessoas pensar que me dá gozo ter uma centenária dentro da barriga para depois vestir as roupas dela?

Depois no final da tarde, início da noite sou discriminado por ter as patas pretas. Uma vez que o pó de arroz é caro e a maquilhagem só é testada em ratos e humanos, tive de ir ao moinho enfarinhar as patas para poder ir bater à porta da mãe cabra. Gosto de me sentir útil pelo que vou sempre oferecer os meus serviços de cuidador por achar que ter sete cabritinhos deixa qualquer um a balir de desespero. Mas depois de um trabalho enorme em tentar convencer os pequeninos a abrirem-me a porta tenho de os engolir afim de os proteger de alguma desgraça. É que ficam todos histéricos a correr de um lado para o outro e claro, ao serem daquela espécie saltam para cima de tudo e podem magoar-se. O que ganho com isso? Um supremíssimo cansaço daqueles à Pessoa e uma sede de morte depois de ter uma mão cheia de pedras dentro da barriga. E a tesoura nunca é esterilizada. E dos pontos já nem vale a pena falar. O que custava à mãe acordar-me e pedir para regurgitar? A cabra é mesmo uma cabra e o descendente que tem a manha de se esconder dentro do relógio para depois ir fazer queixinhas não nega que sai à cepa.

Finalmente, no final da noite início da manhã, ando a soprar em casas de palha e madeira. Muito sinceramente não sei porque sou criticado. Que mal poderá advir de querer juntar os três porquinhos na mesma casa? Os porcos não são felizes sozinhos. É sempre melhor ter alguém para partilhar a pocilga de vida que temos.
Ah, e já nem vou falar do miúdo que anda a gritar aos sete ventos que "o lobo vem aí". Primeiro, porque já não me sobra tempo nas vinte e quatro horas dos meus dias e, em segundo porque nunca percebi a dimensão do espaço "aí". E se o "vir aí" é digno de banhos de água benta... bem... a morte também vem sempre aí e ninguém anda a gritar por isso.

2 comentários:

  1. Um "lobo" incompreendido, como algumas bruxas más e madrastas desta vida. Por vezes o lobo é cordeiro, a bela adormecida tem insónias ou o capuchinho vermelho engoliu a avó e culpou o caçador. Gostei (muito), mas isso já sabes.

    ResponderEliminar
  2. Pois tens toda a razão, lobo. Há por aí muita má res mas o mau és sempre tu. E ainda por cima acham que és estúpido. Como se fosses parvo ao ponto de esperar um dia em a capuchinho vai visitar para comer a avó, ou não soubesses contar o cabritinhos para ver se faltava algum, ou simplesmente não entrasses por uma das janelas da tal casa de tijolo.... E não uses a pele de cordeiro pois fica-te mal. O teu pêlo é mais bonito. Mas voltando ao que interessa, muito divertido e inteligente este teu texto. Adorei.

    ResponderEliminar

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...