terça-feira, 5 de julho de 2011

Lavração de testamento


Eu, Maria, encostada aos portões desta cidade, nomeio para meus testamenteiros aos senhores, que este virem, ouvirem ou dele notícia tiverem. Saibam que estando em perfeito juízo e sem qualquer induzimento, atesto por fé, sem testemunhas que o comprovem, ser esta a minha última vontade, a derradeira, no momento em que abdico do que fui.

Deixo cada coisa que juntei neste mundo a quem ma deu.

À minha mãe deixo a pedra do adro da igreja, a vergonha de que me vestiu, o corte de metal rombo que nos separou , o primeiro grito, o beijo que me negou.

Aos que me criaram deixo as braçadas de lenha, as costas partidas, os ilíacos e as costelas a rasgar a pele, os prantos, os trapos, as vergastadas, os beijos que me negaram.

Ao meu pai nada deixo porque nada me ofereceu.

Ao homem que me comprou deixo a cabra por moeda da transacção, a saliva obscena na minha boca, os cabelos arrancados, a cama sórdida, os beijos com que sugava todo o meu corpo apesar de eu negá-lo.

Ao homem a quem me dei deixo o feitiço, os nervos excitados, o estigma, a culpa, o adeus fácil, o amargor, os beijos de quem ama por dois que não lhe neguei.

Ao meu filho deixo o amor por entregar, o seio a secar, a procura vã de calor na pele, os beijos que não negaria ao anjo que não soube enterrar.

A todos vós deixo a falsa caridade, o olvido e o asco.

E por não saber ler nem escrever e não ter tinta nem papel, rogo-vos que aceitem como letra esta impressão lívida da minha alma.

Rogo-vos, igualmente, que me olhem enquanto seguro esta adaga e golpeio as parcas que me fizeram bastarda da vida, enquanto inspiro e bebo-lhes o sangue, enquanto me ergo contra o destino, enquanto renasço e me levanto do chão. Outra mulher. Não mais Maria.




6 comentários:

  1. Auto de uma alma danada a arder. Adoro almas danadas... e tu sabes criá-las tão bem! Cuidado com as Marias que renascem do fogo e das cinzas. Excelente.

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  2. Deixar finalmente o que nos dão em vida, retribuir... e numa mistura de "cada um tem o que merece" mas ao mesmo tempo, em cada palavra do testamento de Maria, ser inevitável imaginar toda a vida vivida (ou por viver)da tua personagem... os teus textos fazem sempre desejar por mais porque as imagem ficam a baloiçar nos olhos.

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  3. Se pudéssemos deixar cada cicatriz (de carne ou alma) a quem nos infligiu isso nos lavaria por dentro? Tu também escreves com a pena que escondes atrás dos olhos que se chama alma. Digo abertamente, esta foi a resposta ao desafio que mais gostei.

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  4. Excelente! Foi uma delicia ler este texto, nem tenho palavras para tanta criatividade!

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