domingo, 2 de outubro de 2011

Insectos (parte III de IV)


Parte III


 

Olá, como te chamas? Eu sou a Joana, mas toda a gente me trata por Joaninha.

Parece que ainda a oiço… voz suave, ondulante como o vento nos seus cabelos, alegre como as manhãs mornas de Primavera, e perante mim a formosa criatura, filha das estrelas, das estrelas que brilhavam nos seus olhos verdes e suaves, como a sua voz, a ondular por entre a floresta de pensamentos que hirtos, mal reagiam ao tom morno da primaveril manhã em que a ouvi. E ainda oiço… por vezes.

Algo devo ter dito, não que tenha qualquer memória de ter dito nada, só olhado, contemplado, maravilhado, completamente enamorado. Mas entre o que não disse, terei certamente dito o que ela queria ouvir, porque dias depois ainda me olhava com os enormes olhos verdes, entre sussurros e sorrisos me enrolava à sua volta, e as palavras fluíam quietas entre os nós pequenos que nos uniam como uma teia apertada, nós que éramos dois mas seriamos um, apenas um nó, pequenino, na gigantesca teia do universo que prende as vítimas em busca de mel, um pouco de água e tanto amor.

Os dias passavam ligeiros e os meninos de 6, 7 anos, brincavam sem nada saber sobre nada do que ao mundo se referia, apenas coisas de crianças, coisas de meninice e amor verdadeiro, daquele que só a inocência faz matéria e a ignorância lei. Sem lei, nem memória de tal coisa e de regras, nem um traço, por entre os muitos que traçámos no pó das janelas das velhas casas do caminho, do nosso caminho, entre ervas e pedrinhas, os nossos passos foram marcados na lama das poças da chuva de ontem, porque ontem, tal como hoje ou amanha, nada haveria para dizer. E contudo, como eu gostava de te poder dizer algo agora…

Um dia acordei, não de um sonho mas de toda uma vida sonhada. Um dia procurei, mas não havia nada. Um dia chamei e não te encontrei.
Meninos, a Joaninha mudou de escola, foi acompanhar os pais para o seu novo trabalho, foi de repente, mas é a vida, os meninos tem que ir para onde os pais vão, ou os mandam, é assim que tem que ser. Agora abram a página 24 do livro de Meio Físico e completem o exercício 3…

Não percebo. Tanto tempo passado e continuo sem perceber. Não percebo porque nada me disse, não percebo porque não me contou na tarde antes de partir que ia partir, na estrada que nos separaria para sempre, partir o meu coração ainda verde, de idade e de esperança. Nesse dia, depois da escola, cheguei a casa, despi a minha roupa, coloquei-a num pequeno monte ao pé da cama de ferro e deite-me, de olhos bem abertos. Olhei para o tecto e lá estava, a aranha, na sua teia, feita de pequenos nós, quieta, bela e ausente, a ondular na suave brisa de Maio, quase indiferente à minha presença. Até que, quase por divina providência, um pequeno mosquito pousa incauto e lança pelo fio da teia uma minúscula mas sensível vibração. Num segundo, estava preso num casulo de seda, envenenado, a sucumbir à doce narcolepsia, enquanto os olhos da aranha brilhavam como estrelas, verdes e doentias, escondidas no mais escuro e perverso canto da minha casa. Tal como o agoirado mosquito, também eu me deixei morrer, devagar, silencioso, abandonando o meu corpo ao veneno do engano…

Os anos passam e não há nada pior que nos tornarmos pessoas normais. Afinal o que há de bom em sermos normais? Não seria tanto melhor sermos excepcionais, inigualáveis, ímpares num universo de seres únicos e irrepetíveis? Não é isso a vida eterna? Que tem de eterno sermos uma sombra de outros, outro entre tantos, tão simples e normais. Mas há uma coisa boa em ser normal, se nada nos distingue, também nada nos identifica, diferencia, não há um dedo mágico a apontar ‘ali vai ele’, uma de tantas formigas num carreiro negro, infinito e infindável, para trás e para a frente, para frente e para trás, para trás, onde me deixei ficar, mais para trás ainda, quando eu olhava naqueles olhos verdes e sonhava, nos dias em que cigarra cantava para a joaninha e fazíamos felizes o caminho incerto da Primavera. Para a frente. No carreiro negro, indiferente, normal.

Até que um dia houve um eclipse, e um sol enorme e brilhante se interpôs entre mim e a noite negra que era o meu dia e a vi. Não acreditava no que via, porque não era possível acreditar que via, muito menos que a via. Lá estava ela, a passar os dedos pela vitrine onde estavam afixados os papéis que diziam o que seria o futuro dos jovens normais que seguem a sua vida, normal. Mais de 10 anos depois, senti um pulsar forte no meu peito, o frio do ventilar na minha garganta, a dor lacerante de finalmente ver luz no meio de tantas trevas. Não consegui dizer nada, ou nada me lembra de ter dito, mas é possível que algo tenha sido dito, porque ela virou-se e disse ‘por favor, pode dizer-me as horas?’. As horas? A que horas se referia ela? Às horas que esperei por ela na estrada da escola? Às horas que dediquei a pensar porque não teria eu simplesmente morrido naquela tarde? Talvez quisesse perguntar.me quantas horas aguenta um ser humano normal, num dia normal, sem perder a sua normalidade e explodir de dor e desejo e paixão e saudade e ainda mais dor, muito mais dor do que qualquer ser normal possa aguentar sem que o coração se desfaça em mil pedaços, espalhados por mil poemas fechados em mil gavetas, por entre mil vezes que se suspira e nada se sente porque gastamos o ultimo suspiro há mil dias atrás… Disse-lhe então as horas, 11:17, mais precisamente. Ela olhou para um pequeno papel que tinha na mão direita e exclamou assustada que estava atrasada. Não resisti e peguei-lhe no braço e olhei para os olhos verdes e infinitos e enormes. Procurei-a mas ela não estava lá. Ela olhou de volta, assustada e ansiosa e procurou, mas não me encontro. Eu ainda estava debaixo de água, entre folhas e sedimentos, perdido na corrente fria do rio, enquanto ela havia mudado, transformado o seu ser, feito a metamorfose e ganho asas, feitas de organza e vitral, pairava sobre mim, olhava para baixo e não reconhecia a larva. Ela era a joia da criação enquanto eu nem sequer me erguera daquela cama onde fique para sempre preso e envenenado. Libertei o seu braço, pedi desculpa, ou pelo menos devo ter feito uma cara de desculpa, porque ela olhou para mim, distante e fria, devorou a minha alma, ou o farrapo que restava dela e voou…

3 comentários:

  1. As palavras e a musica, combinação mais que perfeita!
    Retive uma passagem que me arrepiou:
    "...quantas horas aguenta um ser humano normal, num dia normal, sem perder a sua normalidade e explodir de dor e desejo e paixão e saudade e ainda mais dor, muito mais dor do que qualquer ser normal possa aguentar sem que o coração se desfaça em mil pedaços, espalhados por mil poemas fechados em mil gavetas, por entre mil vezes que se suspira e nada se sente porque gastamos o ultimo suspiro há mil dias atrás…"

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  2. mais............:-))
    e continuo a ler-te ao contrário no tempo
    Anamar

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  3. Muito boa a forma como controis estes teus textos multidimensionais, vários quartos dentro da mesma casa. Tudo se encaixa. De leitura compulsiva, este.

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