sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

(H)eras


1% of monster - Mogway

Foi como se as mãos dela, de repente, ganhassem raízes aéreas, como as heras, para se agarrarem às paredes da minha pele e ficarem ali, a crescer lentamente até me cobrirem por completo.

Não eram umas mãos especialmente vegetais. Não tinham a textura de troncos nem os dedos eram longos como galhos nem a palma fresca como as folhas. Mas procuravam-me como se procura suporte e eu passei a procurá-las como se procura sombra.

As mãos dela germinaram aos meus pés sem que eu desse por nada. Primeiro, limitavam-se a procurar o sol e a romper o solo, a fazer-me cócegas nos calcanhares e a desenharem-me arabescos nos tornozelos com as pontas dos dedos. E passaram semanas sem que olhasse e as visse trepar as minhas pernas e subir os meus joelhos, como as ervas daninhas crescem sem que se olhe para elas. Quando dei por isso, já não conseguia arrancá-las das minhas costas.

Julho chegou quando já me começavam a tapar a boca mas, por essa altura, já eu tinha aprendido a mordê-las para não me cortarem o ar. E o ano avançou na minha cama, enquanto lá fora passavam filmes inteiros de chuva e vento e neve e sol e chuva outra vez. Com ele, foram desaparecendo lentamente todos os milímetros quadrados livres da minha pele e da minha fachada, atrás de toda a aquela massa verde com transpirações de clorofila.

Eu, uma casa cada vez mais antiga e desabitada, com fantasmas no sótão e ninhos nos parapeitos. Eu, caves invadidas pelas raízes dela, alicerces rachados pelo peso de todo aquele amor e fotossíntese. Eu, deitado na minha cama, a tornar-me cada vez mais transparente com o passar das estações, o fôlego aspirado pelo seu beijo súcubo, desnutrido pela sua paixão bulímica.

Os poucos que pararam à minha porta com curiosidade e vontade de entrar foram vencidos pelas suas mãos totalitárias e, ao afastarem-se, salgavam o chão para que nada voltasse a crescer no caminho que me levaria até eles.

O problema das casas cada vez mais desabitadas e de solo salgado em volta é que a vida vai secando e morrendo até não restarem nem mãos nem heras. Em pouco tempo foi o que aconteceu às dela, até não restar mais do que o esqueleto de madeira seca que foram os seus afagos e as marcas da sua passagem nas minhas paredes exteriores, como escaras, como um eco a dizer “eu cresci aqui e tomei conta de ti.”

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No dia em que acordei do meu coma amoroso, a luz enchia o quarto com a luminosidade cortante e branca do aço a cintilar. A manhã doía-me nos olhos. Fui até lá fora, recolhi a lenha e fiz uma fogueira. O tempo começava a arrefecer...

5 comentários:

  1. gostei muito ... de tudo!!
    Paulo Santos

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  2. "Não eram umas mãos especialmente vegetais. Não tinham a textura de troncos nem os dedos eram longos como galhos nem a palma fresca como as folhas. Mas procuravam-me como se procura suporte e eu passei a procurá-las como se procura sombra."

    Excelente ::))
    parabéns

    Teresa Maria Queiroz

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  3. Perfeito. Ponto final.

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