segunda-feira, 27 de setembro de 2010
A Filha do Meio (Parte II de II)
Em silêncio, Elisa dirige-se para seus aposentos, frios e distantes, como a sua paixão pela vida. Na cama do meio, com todo o espaço vazio deste mundo que a separa de suas irmãs, a seu lado. Tão perto que lhes sente o bater do coração, o pulsar das suas asas, pois, ao contrário de si, Elisa, filha do meio, suas irmãs voam e espalham sonhos, por entre lírios e poças de água, trazem alegria e sorrisos. Elisa apenas tem pó e sabor a metal para oferecer, perdida no espaço vazio, um inominável monstro se esconde entre duas fadas. No meio, a fealdade, em cada lado, a virtude.
Elisa contempla, sua irmã mais velha brinca às médicas com as suas bonecas, dá-lhes injecções e receita-lhes dias nas termas, para rejuvenescerem a pele, como faz a mamã, sempre que os seus medos lhe mostram no espelho o passar dos anos e o desgaste da rotina. Ela inveja sua irmã mais nova, que a todos maravilha com cabriolices e ‘coisas de menina’, enche a sala de ‘oooohhhhh’s e suspiros.
Elisa suspira, suspira por um momento de felicidade, algo que lhe roube o fôlego e a deixe de pernas a tremer. Algo que a entusiasme para um novo dia, algo que a desperte e a faça sentir viva…
Hora após hora, negra noite após branco dia, meio triste, meio ausente, Elisa finalmente sente onde está o seu momento de felicidade. Tal como Alice, é chegada a hora de crescer e a solução está dentro de um frasco.
Perdida num sentimento de pesar, a filha do meio ira decidir que nada mais há neste mundo que a faça sentir e decide engolir.
Meio frasco, para ser exacto. Acordou meio dia depois, meio perdida, meio espantada. Meio dorida da lavagem ao estômago, ficou meio estupefacta quando viu toda a sua família, mãe, pai e irmãs, completamente felizes de a ver meio desperta.
Elisa sentiu então, no meio da sua inconsciência, o que tanto procurava. Plena paixão para redescobrir a sua vida…
Publicado originalmente em:
http://www.gustaveeiffel.pt/Downloads/Publicacoes/RevLumiar02-Agosto2010.pdf
Uma excelente edição, com textos originais e estimulantes. Se mesmo assim não descobrirem esta revista... you're doomed, doomed!
Pontuação rápida
Quando se está vazia, as correntes de ar fazem-se sentir de uma forma muito oca. Batem nas paredes e voltam sempre ao mesmo sítio. Depois, como a imunidade custa muito tempo, a constipação é inevitável. Faz frio dentro de mim e, tudo o que sai são letras a precisar do aconchego das palavras. Hoje de manhã estava frio, outra vez, pelo que vesti o casaco de texto e fui para a rua, para cima da tinta que forma a linha que me leva até ao fim do parágrafo. Ponto.
Passei pela loja de chocolate e, com as bochechas cheias de doce por dentro, fiz um ponto e vírgula, para a pausa durar mais tempo. Continuei e fiquei a achar que já tinha ido longe demais, que nem devia ter saído de casa. Não sei se por culpa do chocolate me ter feito muito feliz ou, se por o doce já estar a chegar aos pés e, neste momento fazer o barulho de quem já está preso. Pegajosamente fui até ao fim do parágrafo e ao saltar fiquei pendurada pelos pés, de cabeça para baixo, na linha. Estas coisas só devem acontecer aos azarados de vida. Esperneei, balancei, chamei nomes aos sete ventos, contorci-me e cansei-me. Agora nada há a fazer. Adormeci. Ponto.
Acordei sobressaltada com o som das palavras dele. Ponto.
Travessão. Ele perguntou se eu queria ajuda. Comecei por dizer que não, que não merecia ajuda nenhuma. Ele protestou. Eu calei-me. Ponto.
Após muitas horas de silêncio a baloiçar ao sabor da folha de papel, resolvi voltar a dirigir-lhe outra palavra, mas o doce voltou à boca e no meio de um engasgo respondi. Dois pontos.
Travessão. Amo-te. Exclamação.
Travessão. Ele respondeu que o frio tem destas coisas. Ponto.
Fiquei tão corada que a folha ficou com uma mancha vermelha. Ponto.
Ele sorriu. Reticências.
Abre parêntesis. Ainda bem que as borrachas não conseguem apagar estas manchas. Fecha parênteses.
A Filha do Meio (Parte I de II)
Nem protegida, nem mimada, apenas ignorada
Nem como a irmã mais velha, que será doutora
Ou como a bebé, uma bailarina idolatrada
Ou como sua mãe, uma falhada sedutora
Será ela própria, em si mesmo abandonada
Meio triste, meio ausente
Nem fria, nem quente
Simplesmente, indiferente
Senta-se na mesa, para jantar
Mas nada lhe apetece mastigar
Queria simpesmente divagar
Fugir dali, para que ninguem a descubra
Das suas irmãs, tão perfeitas e adoradas
Do olhar de seu pai, que tanto a perturba
E das mentiras de sua mãe, enfeitadas
Metade peixe, metade lua
Sereia imperfeita encalhada na maré
Sem brilho ou cor, de alma nua
Não sabe o que quer, nem sabe que é
Nada a move ou seduz
Nem trevas, nem luz
Apenas uma indiferença que se afunda
Num torpor que tudo inunda
Perdida num sentimento de pesar
A filha do meio ira decidir
Terminar com sua vida, apagar
Tudo o que ainda estará por vir
(continua)
(texto publicado originalmente na revista "Máquina de Escrever" #2)
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Labirinto azul
Depois de nascer, só temos pela frente uma sina, que é viver.
Na chegada, para os olhos deslumbrados, tudo o que brilha é ouro. Tão logo passe o deslumbramento, acaba tornando-se óbvio que por detrás das luzes do atraente parque de diversões, há uma rede de ferro, fios e engrenagens que, apesar de bonito nada ter, serve para criar miragens esfuziantes que cativam e inebriam os sentidos e que aprisionam e escravizam a essência do Ser, que se perde quando entra o labirinto do planeta azul. E quem pensa que "nasceu para ser feliz" mal percebe que os poucos instantes de aparente felicidade têm embutido o cruel.
São as fichas do jogo da vida. Jogo no qual, a rigor, nenhum participante é mais importante do que o próprio jogo em que a vitória é pura ilusão, pois nele só há um único participante a apresentar sob diferentes vestes e com inúmeras máscaras. Jogo repleto de dores, frustrações, tristezas e sofrimentos insuportáveis. Ou suportáveis com a morte. A morte do corpo e o renascimento da alma, mas não a libertação.
Nesse labirinto encontramos nos aprisionados numa realidade ilusória que não passa de um sonho vivido que nos prende nas teias do pesadelo por ele dissimulado.
Dissimulado por tantas pequenas coisas as quais cremos que quando as tivermos seremos felizes. É o esforço cotidiano para obtermos e termos. Enquanto isso, a vida leva nos de turbilhão. Não nos dá tempo para pensar. Hipnotiza-nos. É o desajuste. A confusão. A depressão. É a contínua fantasia com o sonho de consumo. A angústia e os antidepressivos. A procura de não sei o quê para nos levar não sei aonde. É a incessante busca de algo para tentar dar sentido à própria vida e ser feliz.
Em geral, quando feliz, o ser humano agradece pela vida boa que tem, pois quando olha em volta vê outros passando fome e necessidade. Agradece pela saúde que tem, quando em volta os outros estão doentes e sofrendo. Agradece pelos pais, irmãos, amigos, filhos e cônjuge, quando vê a solidão e o desamparo do próximo. Agradece o tão feliz é, quando vê os pobres infelizes a sua volta. Agradece, pois no fundo tem medo de que, se não o fizer, possa vir a ser castigado como os que estão à sua volta. Agradece, invoca, acende velas e oferece sacrifícios para manter distante o chicote do invisível feitor do destino. Enquanto isso, farfalha feito borboleta alucinada em volta de um clarão qualquer, buscando ser assimilado por algum rebanho. Buscando encontrar um grupo social em que possa ser mais um ninguém para se sentir alguém. Ademais, no rebanho, é só seguir o líder, o formador de opinião, pois até "formadores de opinião" são necessários para que haja um direcionamento das que julgamos nossas escolhas.
"Assim, acordei e assustado descobri-me presa e preso. E em volta outros tantos vagando a lesmo. Às vezes, algo faz acelerar o passo de um ou de outro e uma esperança lhes faz brilhar a face. É quando do encontro com alguns focos de luz. São instantes de uma luminosidade mal percebida pelos que andam em busca de já nem sabem mais o quê. Acostumaram-se tanto a viver nesse labirinto que se tornaram parte dele. E a presa eternizando-se nas malhas da rede que a seduziu e a capturou, acaba tornando-se instrumento do próprio predador, ajudando-o no seu negro"
Quem, assustado e emocionado se descobrir também no labirinto azul, que se junte para ajudar na busca da via de saída em direcção à Liberdade e à Luz...
Nespereira
Havemos de ir ainda à mesma árvore
Que trepávamos numa indolência animal
E ficar a tarde toda deitados nos seus ramos,
A dizer disparates ao sol,
Tu e eu, como aos 10 anos.
Hei-de fazer um amuleto
Com o teu sorriso intacto,
Perfeito
E andar com ele sempre preso ao peito
Para nunca me esquecer de rir também.
Um dia ainda há-de ser
Tudo tão simples como antes.
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Vegetativo consciente
Quando o meu tempo se confunde
batem os ponteiros
os minutos querem seguir
os segundos preferem parar
a loucura conta até doze
o interior fica crescente e
quando o tempo se reconhece
o corpo realiza fotossíntese à sombra
sombra da mão que agarra o relógio
que agita o passado preso ao pulso
que abre o tempo redondo e
roí até aos ossos o som dos pés
que caminham em direcção ao ninho prometido
por um estrada que sela a confusão
que limpa com ácido as ideias necrosadas e
agora, simplesmente
pelo início do sorriso
pelo toque das palavras
pelo olhar que baloiça nas pestanas
sei que serei sempre vegetal
mas tu serás sempre a sombra do sol.
Simples.
Cada vez que o meu tempo se confunde
voa um beijo soprado pelas folhas verdes.
E a culpa é tua.
Felizmente.
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Desafio "Brinca Comigo", II parte
Não, ela não se lembrava. Nem sequer sabia histórias onde aparecessem rainhas, nunca lhas tinham contado. Nunca ninguém a sentara ao toucador para lhe escovar o cabelo como se amansasse um cavalo, um puro sangue depois da corrida. Ia jurar que o espelho lhe devolvia reflexos de prata...
E ele foi buscar o melhor vestido dela, aquele que usava só em funerais e missas, e abriu-lhe o guarda jóias onde só restavam pó e souvenires baratos que os marinheiros lhe traziam de outros portos. Encaixou com cuidado, nos delicados buraquinhos das orelhas, os brincos mais decentes que lá encontrou, como se já soubesse que eram herança da madrinha, e abriu-lhe a bolsa de veludo onde guardava a maquilhagem para lhe tingir os lábios de vermelho, com toques leves mas precisos, como um pontilhado de tapeçaria.
Ele voltou sempre nos 10 anos que se seguiram, para o mesmo ritual. A princípio, de longe a longe, sempre que podia, depois regularmente, na última terça-feira do mês. Sentava-a ao toucador, ia buscar o vestido preto de rendas, compunha os sapatos pretos de salto junto aos pés cada vez mais pequeninos e delicados. Comprou-lhe uma gargantilha falsa e perfume francês verdadeiro - não as imitações de drogaria, a cheirar a um misto de insecticida e incenso grosseiro que ela comprava. Entrançava-lhe o cabelo em ninhos complicados e serpentes de Medusa. Cobria-lhe o papiro da pele de pó-de-arroz e rouge, para a fazer parecer viva.
Ela deixava-se servir. Entregava-se nas mãos dele e sentia-as flutuar, abelhinhas atarefadas à sua volta, no abandono de um sonho em câmara lenta em que via o seu rosto mudar para o de uma outra com ar de dona de dez milhões de destinos. E quando ele acabava, dançavam.
À terceira visita ainda tentou mostrar-lhe a ciência da carne que o pai dele lhe pagara para desvendar ao infante, mas ele segurou-lhe as mãos com força, lembrando-a:
- Disseste que íamos brincar ao que eu quisesse...
Nunca mais tentou mudar-lhe os planos. Nunca mais lhe tentou ensinar nada. Deixava-se servir, deixava que ele a tirasse dali, lhe desse banho e lhe lambesse as feridas, o seu anjo.
Na última terça-feira, pela primeira vez em 10 anos, saiu do sonho a câmara lenta no reflexo do espelho e comunicou ao homem que mal reconheceu a seu lado:
- Chegou a altura de outra subir ao trono, bebé...
Ele parou com a escova na mão, que agora tinha mesmo um cabo prateado – presente de há dois aniversários atrás.
- O que queres dizer com isso?
- Quero dizer que está na altura de abdicar, meu doce. A tua rainha vai depor a coroa. Já estou muito velha para isto. Já só vens cá tu e dois velhos amigos que já nem conseguem dar conta do recado. Estou cansada, quero sossego. Tenho umas economias... tenho uma casa junta ao mar, na aldeia onde nasci. É pequena mas dá à conta para mim. Pensa nisso como um exílio. É isso... um exílio.
- Eu sigo-te para o exílio.
- Não estás a perceber, rapaz. – levantou-se e olhou-o com tristeza, também pela primeira vez. – Isto... assim... não é saudável para ti. Está na altura de teres uma rainha só tua, da tua idade, linda.
- Eu não quero outra rainha, quero-te a ti. És minha.
“Minha...” Não pode deixar de rir com a ironia das palavras dele.
- Quem te vai arranjar para o baile?
- Hoje foi o último, rapaz. Já não consigo valsar mais.
A febre e a raiva nas lágrimas dele iam gelando aos poucos até o olhar lhe cristalizar.
- O último? Então tem de ser especial...
Pôs a tocar o ‘Volver’ do Gardel e arrastou-a pelo ar, sem peso, sem atrito, nas voltas do tango. Quando o disco acabou tirou-lhe a roupa, escovou-lhe o cabelo como se amansa um cavalo, vestiu-lhe a combinação mais bonita e deitou-a na cama.
- Vou ficar aqui até adormeceres.
Ela afagava-lhe o rosto. O seu anjo.
- Querido, não precisas. É melhor ires agora...
- Não. Vou ficar aqui até adormeceres e contar-te a história do sonho branco – deitou-se ao lado dela, cabeça sobre o peito murcho, ouvido junto ao coração. – Já te contaram a história do sonho branco da rainha?...
Quando acabou, ela estava quieta, em sossego, como queria; um ar de espanto nos olhos e na boca vermelha semi-aberta, que deixara a sua impressão na fronha da almofada. Ia leva-la consigo, uma relíquia régia. Ela não se iria importar e, além disso, deixava-lhe os brincos da madrinha já postos nas orelhas. Afinal, mesmo no exílio as rainhas precisam de manter a dignidade.
sábado, 11 de setembro de 2010
Desafio "BRINCA COMIGO", parte I
Fazia aquilo há tantos anos que já tinha perdido a conta aos pequenos saloios corados e anafados como querubins - como ele - que lhe entraram pela porta do quarto dentro, a mando dos pais. Para se fazerem homens...
“Julgava que era para isso que a tropa servia...”, costumava pensar. Mas, geralmente, mandavam-lhos lá uns bons anos antes de irem às sortes.
Mas dele não se iria esquecer nunca. As botas ortopédicas como peças desconchavadas, grandes demais para os pés, as calças demasiado curtas, o cheiro a leite coalhado, a terrores nocturnos e enurese. Sentou-se na borda da cama a olhar para o chão, provavelmente a contar os fios puxados no tapete rosa de bazar chinês aos pés deles. Ela pôs-lhe a mão no joelho, resignada ao constrangimento de quem já sabe como aquilo vai acabar, e perguntou:
- Então, meu lindo... já fizeste isto antes?
Uma queimadura de cigarro, uma mancha de vinho, mais fios puxados, uma boneca sevilhana no aparador em frente, um par de algemas verdadeiras que um policia ali deixara uns anos antes, e ele a balançar-se para trás e para a frente a olhar para aquilo tudo.
Tinha uns 13 ou 14 anos e caracóis. Estranhamente, não parecia debater-se como um peixe fora de água por estar ali, como ela adivinhava nos olhos de outros cordeirinhos que lhe mandavam para desmamar.
- Entrar em quartos de senhoras estranhas? Não. É a primeira vez.
- Sabes por que te trouxeram cá?...
Os olhos dele fixos na sevilhana, sério, ausente como se recordasse alguma coisa. E, ao fim de uma boa pausa, olhou-a de frente:
- Para brincarmos.
- Sim, podemos brincar ao que quiseres. Tu é que mandas.
Olhou-a: o cabelo louro-fogo comprido aos canudos despenteados e a carne do tronco já a desafiar a gravidade, entalada dentro do corpete de renda preta e rosa, transparente no peito caído de maduro. Levantou-se, foi até ao gira discos investigar as raridades com ar de quem está no museu, demorou-se num Carlos Gardel e em dois boleros. Enquanto a veterana punha a agulha a ferir o vinil, ele pediu:
- Brinca comigo.
Aquilo vinha-lhe tão de dentro dos olhos trágicos que a deixou confusa pela primeira vez em muito tempo.
- Brinca comigo... – teve de repetir.
- E vamos brincar a quê?
- Às rainhas.
- Também vais ser uma rainha?...
- Não, que disparate. – riu para voltar logo a pôr o seu ar sério. – És um bocadinho tonta para uma senhora mais velha. Vou ser o teu pagem, claro. Vou pentear-te e vestir-te. Foste convidada para um baile, lembraste?...
Resposta ao Desafio 'Brinca Comigo' parte II (D.Ü)
Tinha 13 anos quando, já na cidade, me foi diagnosticada uma infecção muito grave, resultado de anos de sinusite não tratada. O médico disse que eu era um herói, um valente. Nem um gemido de choro, mas as lágrimas corriam pela face à medida que me abriam a cabeça a sangue frio, com um pequeno escopro e martelo cirúrgicos. Era para meu bem, dizia para comigo próprio, para meu bem, pois poderia ter morrido com a febre e o choque séptico que estava eminente. À medida que a visão se abatia, fruto do trauma do bater do martelo, pensava que ficara cego, para sempre. Na escuridão. Tal como no quarto negro onde eu rezava sem saber como para que a fina linha de algodão não se quebrasse. Eu era um bom garoto, só queria mesmo que a linha não quebrasse. Da última vez que consegui vislumbrar alguma coisa antes de ficar tolhido de visão consegui ver quem estava à minha frente. O médico. Duas enfermeiras. Uma senhora velhota que chorava por mim. Chorava tal como a minha mãe, em sua casa, sem o seu marido, meu pai. Este estava demasiado ocupado a acarinhar outras senhoras, noutras camas que não a de minha mãe. Era isso que se dizia dos ferroviários. Um amor em cada estação. Quando o inchaço passou e a luz voltou a meus olhos famintos vi os meus irmãos, à minha frente, a sorrir. Foi um dia feliz.
O peso das memórias verga-me até ao chão. Tal como nos tempos em que, para ganhar alguns tostões, andei de saco de sisal carregado de ferros de engomar, daqueles modernos que se aqueciam sobre as brasas de carvão e deixavam as camisas dos homens e as saias das senhoras mais dignos e perfeitos. ‘É para quebrares rapaz, andas muito insolente. A trabalhar é que te educas’. Mas nunca deixei a escola, até ao exame. Era um bom garoto, ou rapaz como agora já me chamavam. Fiquei educado e vergado. Nunca consegui voltar a sentir-me digno ou perfeito. Nem recuperei das minhas costas partidas, que anos mais tarde quase me mandaram para uma cadeira de rodas.
O brilho nos olhos do garoto, o meu filho mais novo. Olhou para mim, muito emocionado e com lágrimas nos olhos, das mais puras que já vira. De alegria. ‘És o melhor pai que já tive!’. Ri-me, com todo o prazer do mundo, à medida que o miúdo se agarrava à sua bicicleta. ‘Vens brincar comigo pai’? E lá fomos, para o jardim grande, a tarde toda… O brilho nos olhos do rapaz, o meu filho mais velho, quando eu o vi a cortar a meta em primeiro lugar, numa corrida que fora absolutamente frenética, após os mais longos 100 metros que se possa imaginar ele levantou os braços, com uma máscara de esforço que se tornou de glória e exultação. Os meus filhos. Não haverá páginas neste mundo que cheguem para descrever tudo o que senti por eles e tanto que ficou dentro de mim e nunca lhes disse…
Num segundo, num dramático segundo, duas crianças congeladas em tempos que nunca haveriam de voltar encontram-se face a face e abraçam-se. Confiam um no outro, para se resgatarem da miséria humana, da pobreza de bolso e espírito, ansiosos que no outro esteja a tábua de salvação. Foi esse o nosso erro, entregarmos a esperança nas mãos de quem não a tinha. Tivemos dois filhos e uma vida de distância crescente entre nós. Nós, crianças, isoláramo-nos, os sentimentos apagaram-se e tornaram as memórias azedas, como o leite que a minha madrinha me dava para beber pela manhã. Destruiu-me por dentro. O leite e o casamento.
O passar dos anos, o desgaste dos momentos que podiam, que deveriam ter sido de cumplicidade. Oh miséria humana, porque nos atormentas? Porque é que eu e tu, meu amor, não nos conseguimos livrar dos fantasmas do passado, porque os convidamos para nossa casa, nossa mesa, onde não nos sentávamos os dois, só nós dois? Porque é que eu não te acompanhei nessa solidão triste de quem vive a sorrir e a dar o pouco que tem aos outros, porque não te dei eu o que lhes oferecias, porque não me ofereceste tu o que eu tanto te queria dar. Paz. Serenidade. Amizade. União. Força. Uma pílula dourada que te ajudasse a olvidar o rapto que ficou marcado a fogo em tua memória. Porque não peguei em tua mão e te levei à casa de onde não deverias ter saído, levada por quem te dizia querer bem e te manietou de forma que eu nunca soube entender, pois tantas das cordas que te prendiam eras tu quem as enrolava e apertava. Merecíamos melhor, tu e eu, mas por favor, lembra-te de mim com amor, o amor que eu te neguei mas que sempre existiu aqui, neste coração duro como uma castanha. Não te percas nessa ilusão de que nos outros viverás o que em ti não conseguiste viver. Deixa para trás tudo o que te pesa, todas as memórias encordoadas que de nada te servem e vive um futuro melhor, por ti. Por aquilo que (não) fomos.
De tudo o que lamento, o que me atormentará para a eternidade é o orgulho mal dirigido com que comandei a minha vida. E tanta coisa boa tinha eu para me orgulhar… Errei tanto e por razões tão sem sentido, esse será o peso que levarei comigo, muito maior que o do saco de ferros que me vergava quase até ao solo. Inebriei-me com a minha maior conquista, ter-me tornado um homem culto por auto-instrução. Era sempre o melhor da turma, assim foi no curso que fiz na tropa e que me livrou de ir para o Ultramar. Devorava os livros que apanhava aqui e ali, competia comigo mesmo na demanda de mais e mais sabedoria a mim próprio infligida, recolhi-me no canto só e solene do pensamento racional e deixei que me vissem apenas pelo produto das minhas mãos, pelas engenhocas e capacidade inata de arranjar tudo o que fosse mecânico ou eléctrico que aparecesse à minha frente. Mas podia ter ido mais longe, em carreira e distância, ter trazido outra vida para a minha família, outros bens e posses, mas isso nada era para mim. A minha madrinha tinha bens e posses, variados e bastos. Lá ficaram, na terra, sem que eu, o designado herdeiro, os reclamasse. Os seus amantes padres que ficassem com o tudo do que nada me deu, pois a cicatriz maior não é a da fome, miséria ou mau trato. Foi o de ter passado a minha meninice sem um nome de pessoa. E isso, não há bens ou posses que enterre. Mas como o lamento, não ter separado as minhas cicatrizes das vossas, ter feito de vossa vida uma vida melhor, como eu queria ter melhorado a minha vida. A vida que me fugiu um dia, por fim.
Lembro-me agora, com detalhe, de algo que já não estou certo de ter alguma vez acontecido mas que na minha cabeça sempre persistiu. De mais um dia em que estava preso na sala negra de minha madrinha. Lembro-me de quebrar a linha, deliberadamente. Lembro-me que encontrei um velho cinto de couro, guardado no fundo de uma gaveta da cómoda esconsa e carcomida. Lembro-me de ter subido à cadeira. De ter prendido o cinto ao meu pescoço e ao gancho de ferro fundido que havia no tecto, onde se penduravam as réstias de cebolas e sacas de farelo para os ratos não as apanharem. Lembro-me de balançar a cadeira e suspirar fundo. Mas no momento que a cadeira iria baloiçar pela última vez vi uma criança ao fundo da sala. Assustei-me e num gesto rápido e desajeitado retirei de imediato o cinto do gancho e sussurrei a gaguejar: ‘Quem está ai?’. Era um menino como eu, mas com uma enorme diferença. Os seus olhos brilhavam de alegria e os meus estavam baços de desespero. Quis saber como se chamava e o que ali fazia. Disse-me o seu nome, o verdadeiro. Era igual ao meu, com o mesmo ‘C’. Ele e eu éramos a face e o reverso, ele era quem eu não era e o que sonhava um dia ser. E num gesto que me aqueceu a alma, o menino apelou que eu descesse da cadeira e perguntou-me se queria brincar com ele…
Ali ficámos, o resto da fria e luminosa noite que durou uma eternidade. O que ele me contou ficará só para mim, não poderei partilhar convosco, pois não poderiam compreender. Mas foi suficientemente importante para eu esquecer a linha, o cinto, a cadeira e a escuridão que me assolava. O dealbar trouxe a continuação da minha pena, mas levou para longe o medo que a minha vida fosse vazia e inconsequente. Poderei não ter conseguido levar a vida que queria, ser melhor amigo, irmão, filho, pai, marido ou colega, deixei-me embrulhar pelos meus próprios limites, medos e orgulho desorientado. Mas uma coisa sei por certo, terá havido uma razão para estar aqui, pois quando agora olho para o que deixei para trás e vejo como florescem gerações e a luta dos que me sucederam, sinto que não foi, de todo, em vão.
Não deixem que a vossa vida vos escape, meus filhos. Foi a última mensagem que o meu cérebro destruído processou ao fim de 21 dias de coma. O sangue que fervia de angústia e inquietação um dia clamou vitória e escapou da prisão de minhas veias, mas escolhera o cérebro, o meu mais querido e valioso bem como praça de conquista e arco do triunfo. Imóvel, preso em mim mesmo, soltei este pedido mudo com o derradeiro sopro que exalei, já liberto da respiração artificial que me manteve preso a um caixão de carne que já nada me dizia ou a ninguém servia. Não deixem que a vida vos escape, não desperdicem nada, vivam até ao último dia com a convicção profunda de ter vivido uma vida plena, para além da dor e da saudade, libertos dos grilhões dos sentimentos perdidos e memórias esquecidas que serão barra de ferro e cortina de aço, pois nesta prisão estareis sós e lá fora existe um mar de gente para abraçar.
E nesse mar, matem a vossa sede com sonhos e desejos de coisas boas, partilhem a fome entre abraços e sorrisos, deixem-se fluir como a onda da maré, deixando permanecer a espuma difusa com que os vossos amados construirão tantas das suas melhores memórias…
In Memoriam, 'C' (1938-2007)
Resposta ao desafio " Brinca comigo" 2ª parte
Quando a rapariga se aproximou com todo o cuidado, verificou que o tio tinha o pescoço torcido de uma maneira estranha e os olhos abertos fixando o vazio.
Morreu, não brincas mais comigo.
Tinha rebolado pela escada abaixo tipo verme gordo e peçonhento.
A rapariga ficou a olhar para baixo durante algum tempo, depois respirou fundo e deixou sair o ar,devagar.
Pensou e assim o fez , vai ser uma tarefa terrível leva lo e abandona lo ao sabor da corrente do rio.
Vamos brincar ...vou pedir ajuda ao João ratão a carochinha ,a branca de neve e as sete anões...vou te arrastar pelas ervas ,e vais boiar velho barrigudo.
Três horas mais tarde, quando a rapariga fez sinal a camioneta ,subiu para bordo,usava o seu novo vestido de algodão branco e transportava consigo a velha e desgastada mala de cartão do tio .
Descobriu um lugar vazio,sentou se e pousou a mala sobre os joelhos, sorriu, olhou pela janela enquanto a camioneta rugia para leva la de volta a vida.
- Olha a força com que a rapariga segura naquela mala velha - murmurou uma mulher, do outro lado da camioneta - Até parece que leva ali uma fortuna!
A rapariga...falou para dentro dela mesmo...ela não sabe...levo a vida , levo o meu brincar!!
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Brinca comigo
Parte II
Esse beijo, selado com o meu sangue, foi o primeiro. Outros se seguiram, sempre brisas delicadas.
O Verão foi chegando e nas fitas esvoaçantes das festas do povo veio a sua quarta mensagem. “Mergulha em mim”. Hesitei. Mas eram já as suas mãos que davam forma ao meu corpo. Por isso fui à falésia, olhei as vagas suaves que me esperavam e continuei a avançar, olhos nos olhos com o meu zéfiro.
Deixei que tocasse cada milímetro da minha pele, que rasgasse o meu vestido, que me partilhasse com o mar, onda após onda....
Na calma morte do crepúsculo, veio a sua mensagem final. “Chora por mim”. Obedeci, enquanto os seus braços me engoliam pela última vez. Afastou-se na vela de um barco e eu fiquei à deriva, sem respirar todo aquele Verão seco.
Desde então o tempo ergueu-se entre nós. Cada vez que cheira a maresia oiço o seu sopro mas a brisa já não me ama, apenas me fustiga. Vagueio perdida. Pergunto de onde veio este nevoeiro. Pergunto pelo caminho. Pergunto como viver o infinito que foi desperto para ser só um momento. Sigo sozinha pois o meu corpo fechou-se. Como posso entregar-me a um homem se já fui a noiva do vento?
É Outubro. As águas voltarão em breve. Sinto-me romper. Sinto um grito iminente. E espero em vão.
Resposta ao desafio " Brinca comigo" 1ª parte
Brinca comigo
Estas a ouvir
Brinca comigo
Estou aqui para ti
Como o João ratão esta para a carochinha
Como a branca de neve para os sete anões
Brinca comigo
Ninguém liga ao que eu digo...
O pequeno almoço- gritou o tio,mal a viu aparecer- E não fiques a espera que as ervas cresçam!
O tio era careca e não tinha dentes, tinha uns braços enormes e os músculos que quando se mexia pareciam serpentes.
Come rapariga!!
Sim tio
Ovos e presunto,café ,pão e doce de ameixa.
Despacha te com essa comida, rapariga - ainda agora saíste do quarto e voltas para la!
O meu tio é um monstro só se ri quando esta satisfeito consigo mesmo.
Sai da mesa,sai rapariga, vai la para fora anda vai brincar...
Tenho tanto medo...vivo apavorada quando ele entra no meu quarto.
Vamos brincar...
( continua )
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Brinca comigo
Parte I
A primeira mensagem chegou com as águas de Outubro, num daqueles dias em que céu pesa sobre a terra. Sentimos que algo vai romper, vai transvasar, que há um grito iminente. Mas esperamos em vão e o rastilho é interminável.
Nesse dia toda a minha vida foi reescrita por apenas duas palavras grafadas com letras indeléveis, a tinta arrastada em linhas longas sobre uma folha de papel biblia, numa diáfana teia de aranha. “Brinca comigo”.
Durante toda a tarde olhei à minha volta à procura de alguém que buscasse uma resposta. À noite uma tempestade assolou violentamente os meus sonhos arrancando-me a alma do chão, mas a manhã seguinte surgiu límpida e clara.
Quando abri a janela reparei que o caminho para a minha porta estava transformado num tapete de folhas de árvore. Enquanto rolava feliz, cheia de lama nas pernas e nos cabelos, senti que algo se ria, deitava-se ao meu lado, tocava-me nas mãos e fitava-me sem pudor. Senti-me invadida mas não fugi.
O Outono foi um tempo de espera, de desejos encobertos. Em Janeiro chegou a segunda mensagem, traçada na geada que cobre os campos. “Dança comigo” O rumor dos pinheiros fez-se música, os medos elevaram-se como éter e eu deixei-me conduzir, envolta por braços transparentes. Não mais voltou durante o Inverno. Por vezes sentia-o presente, mas revolto, capaz de me despedaçar.
Na Primavera fez-me a corte com remoinhos de flores. Em Março desflorou uma cerejeira para que a brancura das pétalas rodopiasse à volta dos meus pés. Em Abril deitou-me sobre os narcisos para traçar o contorno do meu corpo. Em Maio pintou de rosas uma fonte e sussurrou-me que bebesse. No vermelho, no veludo e no sangue dos lábios rasgados pelos espinhos li a sua terceira mensagem. “Beija-me”.
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Resposta ao desafio " Brinca comigo" 2ª parte
Depois da experiência do homem luminoso e do filme, que na verdade era uma sugestão para viver numa eterna juventude e responsabilidade com a nossa felicidade, numa eterna reflexão sobre como se manter verdadeiro o tempo todo. Depois desse filme, depois do encontro com esse homem, João caminhou a pé até a sua casa. Lembra se de ter chegado e observado o seu cachorrinho de estimação que se chamava Toti. Ao olhar nos seus olhos, teve a estranha sensação de que nunca tinha olhado de facto para ele. Teve a certeza de jamais ter percebido aquele ser e que o brilho naqueles olhos era o mesmo que ele tinha acabado de perceber em tudo à sua volta. A diferença entre o brilho dos olhos do animal e o dos homens na rua, com quem trocara olhares, é que o Toti era presente. Sempre se colocava numa condição de afecto, de companheirismo.
Naquele dia, antes do filme, pegou o cachorrinho e colocou o no colo. Cortou lhe o pêlo da forma mais intuitiva possível... e realmente ele ficou horrível. Mas estava quente e deu para perceber que ele tinha ficado feliz. Quando regressou da rua, Toti veio ter com ele a porta : trocaram um olhar profundo... e parecia que era o primeiro "oi, tudo bem?" na vida deles e ele mostrou lhe a patinha direita, apontou em sua direcção e puxou, no meio da pata, com o dente, um pêlo que ele se tinha esquecido de cortar.
"Toti, esqueci me de cortar o pêlo de dentro da tua patinha? Que falta de educação!" João viu se conversando de verdade com um ser, igual ao ser que reconhecia dentro dele, com a mesma sensação. Só que era um ser dentro de um cão.
Um cachorrinho que eu tinha apanhado na rua...porque não tinha mais nada e o tempo inteiro emitia a gratidão das pessoas que são salvas - porque ele latiu tanto na porta da casa até conseguir entrar um dia... e ser adoptado...
A porta estando aberta, ou não, ele sempre ficava na parte de dentro e parecia que, com aquele tamanho minúsculo, queria dar a vida para defender a casa de qualquer tipo de invasão. Aquele cachorrinho estava a porta para mostrar a gratidão que tinha. Foi assim que ele sentira. Mas não foi só com o Toti que isso aconteceu.
Naquela noite, João não dormiu, não conseguia chorar mais, nem falar. Não havia vontade de conversar ou de olhar para ninguém. Parecia até que era fácil sentir os sonhos das pessoas, os sentimentos, as vontades... pelos gestos, pelo tom de voz...
Ele trancou se no quarto, sentou se e passou uma noite isolado olhando para o nada.
Dia seguinte, foi até ao parque, sentou se por baixo de uma árvore e ficou olhando para tudo a volta. Para os pássaros, as pessoas andando de bicicleta, outras correndo e, pela primeira vez, acreditou que existia o paraíso, ali, agora, no presente.
Na sua infância, lembrava se das histórias de Adão e Eva, do paraíso, das pessoas a vir para a Terra serem expulsas do Éden porque cometeram o pecado original. E nunca entendeu isso e achava uma tristeza enorme as pessoas estarem aqui porque um casal errou... Nem sabia ao certo... Não tinha muita reflexão sobre isso...historias que a mãe lhe contava. Mas, naquele dia, entendeu que o paraíso era aqui e as pessoas simplesmente não viam... ou não vêm. O pecado original é as pessoas não perceberem que estão no paraíso...
Aquela reflexão era tão intensa e verdadeira que, por conta dessa percepção, João passou três dias em silêncio absoluto. Um silêncio que envolvia o corpo e os sentidos, que parecia que ia conseguir ouvir até o som do próprio silêncio. Era profundamente extenso. Uma sensação de paz que dava a capacidade de se olhar para cada pessoa e não pensar nada deles. Era a sensação de uma criança que tinha acabado de nascer no corpo de um pré-adulto. Era tudo tranquilo, pacífico e sem julgamento. Não havia julgamento porque não havia ideia da nada. Ele estava vendo tudo e as pessoas pela primeira vez!
Os efeitos especiais do dia do carroceiro, na terceira vez em que viu o filme, desapareceram, mas ficou uma coisa melhor no ar. Ficou uma sensação de vida. Que toda aquela vida tinha um significado, tinha um porquê.
Ele também não era mais o miúdo pobre que só tinha o seu cão a quem dizia Toti vamos brincar ! corriam pelos campos e a liberdade era tão grande que nem se lembrava do barulho que o seu estômago fazia...era fome,nem tão pouco era mais o jovem que tinha entrado no cinema. E aí, começa uma busca, uma busca pela mente para tentar entender o que eram aquelas luzes, o que era aquela paz infinita e o que era aquela sensação de unidade que produzia um êxtase quase que ininterrupto. Um viver quase como se estivesse olhando tudo pela primeira vez....voltei a ser menino num corpo de um novo rapaz,vamos brincar.
domingo, 5 de setembro de 2010
Resposta ao desafio " Brinca comigo" 1ª parte
Sempre fui uma criança solitária, o meu único companheiro de brincadeira um cachorro peludo!!
Quando eu tinha 22 para 23 anos fui ver um filme,que contava a história de um monge. Durante o filme, a personagem, olha literalmente pra audiência e fala assim: se a vida em que vocês vivem é cheia de desamor, onde cada pessoa junto à vida do outro é praticamente um fantasma e ninguém percebe ninguém, nesse universo absoluto de descaso de um para com o outro, pra mim essa vida não interessa.
O que interessa é tentar voltar a ver o mundo como os animais o vêem, como os seres sem posses o vêm.
Naquele momento, a sensação de um pré-adulto em relação àquela reflexão foi algo que produziu uma profunda angústia e um intenso sentimento de que a vida e todas as pessoas que estão vivendo à nossa volta são um sonho. Um sonho... não vou dizer que se trate de um pesadelo, porque as pessoas ainda têm momentos de felicidade, mas é um sonho sem significado, sem sentido.
João, voltou duas vezes seguidas ao cinema pra tentar entender o que estava acontecendo... O tempo parou e ele voltou pelo terceiro dia ao cinema e sentou se para finalmente entender o que estava acontecendo com ele, além do que se passava no filme. Na terceira vez, já não havia reflexão nenhuma para ser feita.
Foi quando aconteceu um impacto, um choro compulsivo.
Aquele dia, ao sair do cinema, percebeu que a volta de todas as pessoas uma espécie de fumaça azul luminosa, líquida. Esse fumo envolvia também todos os animais, da menor formiga até o cachorrinho da esquina. E sob o impacto daquele transe espontâneo, daquela situação desconhecida, ele sentou se na rua e ficou observando... ao longe, percebeu uma luminosidade daquelas de filme de ficção.
Viu aproximando se um homem, um carroceiro muito sujo, com uma pobre carroça e dois cachorrinhos um deles era o seu companheiro de brincadeiras em cima dela, amarrados com fio de electricidade...
Continua
Resposta ao Desafio 'Brinca Comigo' parte I (D.Ü)
No final as memórias chegavam difusas, esparsas como a espuma que persiste sobre o areal quando a onda de maré volve ao oceano. E ao mesmo tempo tão delicada quanto as penas juvenis perdidas pelo exultante mocho-real ao abandonar de vez o ninho para voar por seus próprios meios, para longe, longe da infância partida, escuridão adentro. Uma a uma, pedaço a pedaço, eu reconstruo a minha passagem pela vida e revisito a ansiedade de a devorar inteira, de um só trago, como se de água para matar a sede infinita se tratasse.
Menino, garoto, rapaz. Foram estes os meus nomes até fazer 6 anos. Até ao dia em que me levaram à escola pela primeira vez, de cara lavada, calções roçados e descalço, saltitando entre as poças das primeiras chuvas de outono… Tinha no bolso um caniço para molhar no tinteiro e desenhar as primeiras letras do meu nome. C. Descobri nesse dia que o meu nome começava por ‘C’. Lembrava-me os últimos dias antes da lua nova, quando no céu havia ainda uma réstia de luz que entrava pelas frestas rangentes da loja, onde eu dormia tantas vezes aninhado na palha das bestas, depois de ter roído uma maçã ou duas que roubara aos porcos. Essas eram as noites boas, estava longe do quarto negro e pesado onde ela me jogava, atava-me a perna à cadeira com uma linha de coser.
Era costureira, a minha Madrinha, a mulher mais rica e poderosa da aldeia. Pequena, seca e já com os primeiros sinais de artrite mas com uma voz de gume ferrugento que lacera e infecta. Herdara terras e fazenda e isso, aos olhos de meu pai, fazia dela melhor mãe que a minha, que ficara em casa a dar de mamar ao meu irmão mais novo, enquanto o mais velho já andava à escola e ajudava nos afazeres da casa. Nos afazeres de minha mãe, pois meu pai andava sob a força do vapor e trepidação da máquina. O comboio. Nunca me disse ou me contou como o fazia. Mas era ele que o movia, o cavalo monstruoso de negro ferro e letras romanas. O cheiro a fuligem e carvão, o toque áspero das suas mãos, o olhar vago e jocoso com que me daria o mais marcante presente de Natal, anos mais tarde, já todos sobre o mesmo tecto. ‘Aqui tens rapaz, e não digas que vais mal aviado’. Riram-se desbragadamente, ele e meus irmãos, o mais velho e o mais novo. Eu sorri e fingi alinhar na brincadeira. Mas o meu coração endureceu mais um pouco nesse dia, duro como a castanha que meu pai me atirara ao colo, a minha prenda de Natal.
‘Tens a mania que és mais que os outros, que és esperto, mas ainda te tramas garoto, apanhas uma lamparina nas trombas’. Ou foi isto ou coisa parecida que ouvi do meu irmão mais velho, no dia em que construí com latas de sardinhas e pedaços de corda, arame e paus o meu comboio de lata. Estava perfeito, era tal e qual como aqueles comboios janotas que os meninos ricos tinham. Os deles tinham vindo da Suíça. O meu veio do lixo. Mas o meu irmão irritou-se, ele era prático e bruto e deu-me mesmo um tabefe e gozou a tarde inteira com o meu comboio de lata. Deu-lhe um pontapé que o arremessou contra a parede.
Eu sabia o que era ir contra a parede. Minha madrinha, a costureira, atava-me a perna à cadeira com uma linha de coser e arremessava-me contra a parede se eu partia a linha. É para aprenderes, garoto insolente! Ela não estava nada feliz por a ter voltado a apanhar engalfinhada com o padre a abanar a velha cama de cerejeira. Era a primeira vez, aos olhos dela que eu testemunhara tal acto de heresia certamente incestuosa, pois o abade insistia em chamar-lhe ‘minha filha, vem a mim minha filha’. Mas o medonho espectáculo sucedia amiúde, quase tantas vezes como aquelas em que eu fora dormir nas camas dos animas, lá em baixo na loja, onde o cheiro a lã por cardar e leite azedo era infinitamente mais doce que o do bafo do senhor abade. Sangue do Cordeiro, dizia ele, engarrafado pelo caseiro de minha madrinha.
As geadas que chegavam com o primeiro brilho da lua d’Inverno. As manhas brancas. A serra, alva, pura. O frio que me consolava por dentro. As lagoas geladas, onde eu brincava descalço, a patinar a toda a brida. Um dia rasguei o meu pé, o gelo rachou e foi como se uma lâmina de açougue afiada se tratasse. Mas ninguém me tratou.
Na sala escura, a parede que ficou manchada de sangue dos meus lábios quando me enviaram contra ela que o diga, pois nessa noite eu confessei-lhe que queria morrer.
Era uma criança morta por dentro, talvez assim deveria ser, morta, no total do meu ser.
(continua)
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