Parte I
No final as memórias chegavam difusas, esparsas como a espuma que persiste sobre o areal quando a onda de maré volve ao oceano. E ao mesmo tempo tão delicada quanto as penas juvenis perdidas pelo exultante mocho-real ao abandonar de vez o ninho para voar por seus próprios meios, para longe, longe da infância partida, escuridão adentro. Uma a uma, pedaço a pedaço, eu reconstruo a minha passagem pela vida e revisito a ansiedade de a devorar inteira, de um só trago, como se de água para matar a sede infinita se tratasse.
Menino, garoto, rapaz. Foram estes os meus nomes até fazer 6 anos. Até ao dia em que me levaram à escola pela primeira vez, de cara lavada, calções roçados e descalço, saltitando entre as poças das primeiras chuvas de outono… Tinha no bolso um caniço para molhar no tinteiro e desenhar as primeiras letras do meu nome. C. Descobri nesse dia que o meu nome começava por ‘C’. Lembrava-me os últimos dias antes da lua nova, quando no céu havia ainda uma réstia de luz que entrava pelas frestas rangentes da loja, onde eu dormia tantas vezes aninhado na palha das bestas, depois de ter roído uma maçã ou duas que roubara aos porcos. Essas eram as noites boas, estava longe do quarto negro e pesado onde ela me jogava, atava-me a perna à cadeira com uma linha de coser.
Era costureira, a minha Madrinha, a mulher mais rica e poderosa da aldeia. Pequena, seca e já com os primeiros sinais de artrite mas com uma voz de gume ferrugento que lacera e infecta. Herdara terras e fazenda e isso, aos olhos de meu pai, fazia dela melhor mãe que a minha, que ficara em casa a dar de mamar ao meu irmão mais novo, enquanto o mais velho já andava à escola e ajudava nos afazeres da casa. Nos afazeres de minha mãe, pois meu pai andava sob a força do vapor e trepidação da máquina. O comboio. Nunca me disse ou me contou como o fazia. Mas era ele que o movia, o cavalo monstruoso de negro ferro e letras romanas. O cheiro a fuligem e carvão, o toque áspero das suas mãos, o olhar vago e jocoso com que me daria o mais marcante presente de Natal, anos mais tarde, já todos sobre o mesmo tecto. ‘Aqui tens rapaz, e não digas que vais mal aviado’. Riram-se desbragadamente, ele e meus irmãos, o mais velho e o mais novo. Eu sorri e fingi alinhar na brincadeira. Mas o meu coração endureceu mais um pouco nesse dia, duro como a castanha que meu pai me atirara ao colo, a minha prenda de Natal.
‘Tens a mania que és mais que os outros, que és esperto, mas ainda te tramas garoto, apanhas uma lamparina nas trombas’. Ou foi isto ou coisa parecida que ouvi do meu irmão mais velho, no dia em que construí com latas de sardinhas e pedaços de corda, arame e paus o meu comboio de lata. Estava perfeito, era tal e qual como aqueles comboios janotas que os meninos ricos tinham. Os deles tinham vindo da Suíça. O meu veio do lixo. Mas o meu irmão irritou-se, ele era prático e bruto e deu-me mesmo um tabefe e gozou a tarde inteira com o meu comboio de lata. Deu-lhe um pontapé que o arremessou contra a parede.
Eu sabia o que era ir contra a parede. Minha madrinha, a costureira, atava-me a perna à cadeira com uma linha de coser e arremessava-me contra a parede se eu partia a linha. É para aprenderes, garoto insolente! Ela não estava nada feliz por a ter voltado a apanhar engalfinhada com o padre a abanar a velha cama de cerejeira. Era a primeira vez, aos olhos dela que eu testemunhara tal acto de heresia certamente incestuosa, pois o abade insistia em chamar-lhe ‘minha filha, vem a mim minha filha’. Mas o medonho espectáculo sucedia amiúde, quase tantas vezes como aquelas em que eu fora dormir nas camas dos animas, lá em baixo na loja, onde o cheiro a lã por cardar e leite azedo era infinitamente mais doce que o do bafo do senhor abade. Sangue do Cordeiro, dizia ele, engarrafado pelo caseiro de minha madrinha.
As geadas que chegavam com o primeiro brilho da lua d’Inverno. As manhas brancas. A serra, alva, pura. O frio que me consolava por dentro. As lagoas geladas, onde eu brincava descalço, a patinar a toda a brida. Um dia rasguei o meu pé, o gelo rachou e foi como se uma lâmina de açougue afiada se tratasse. Mas ninguém me tratou.
Na sala escura, a parede que ficou manchada de sangue dos meus lábios quando me enviaram contra ela que o diga, pois nessa noite eu confessei-lhe que queria morrer.
Era uma criança morta por dentro, talvez assim deveria ser, morta, no total do meu ser.
(continua)
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Uma descrição riquíssima de personagens e ambiente e a promessa de que talvez saia daqui um ser humano muito torto. Tem potencial para o lado negro, como diria do Darth Vader. :)
ResponderEliminarPrende imediatamente à leitura, faz-te o filme todo na cabeça. Uma delícia de ler. Parabéns, Berlinde.
Muito visual. Gosto particularmente da construção da personagem através de flashes dos momentos amargos da sua vida pois cria uma empatia que, adivinho, será posta à prova pelas acções que ela irá praticar.
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