Parte I
A primeira mensagem chegou com as águas de Outubro, num daqueles dias em que céu pesa sobre a terra. Sentimos que algo vai romper, vai transvasar, que há um grito iminente. Mas esperamos em vão e o rastilho é interminável.
Nesse dia toda a minha vida foi reescrita por apenas duas palavras grafadas com letras indeléveis, a tinta arrastada em linhas longas sobre uma folha de papel biblia, numa diáfana teia de aranha. “Brinca comigo”.
Durante toda a tarde olhei à minha volta à procura de alguém que buscasse uma resposta. À noite uma tempestade assolou violentamente os meus sonhos arrancando-me a alma do chão, mas a manhã seguinte surgiu límpida e clara.
Quando abri a janela reparei que o caminho para a minha porta estava transformado num tapete de folhas de árvore. Enquanto rolava feliz, cheia de lama nas pernas e nos cabelos, senti que algo se ria, deitava-se ao meu lado, tocava-me nas mãos e fitava-me sem pudor. Senti-me invadida mas não fugi.
O Outono foi um tempo de espera, de desejos encobertos. Em Janeiro chegou a segunda mensagem, traçada na geada que cobre os campos. “Dança comigo” O rumor dos pinheiros fez-se música, os medos elevaram-se como éter e eu deixei-me conduzir, envolta por braços transparentes. Não mais voltou durante o Inverno. Por vezes sentia-o presente, mas revolto, capaz de me despedaçar.
Na Primavera fez-me a corte com remoinhos de flores. Em Março desflorou uma cerejeira para que a brancura das pétalas rodopiasse à volta dos meus pés. Em Abril deitou-me sobre os narcisos para traçar o contorno do meu corpo. Em Maio pintou de rosas uma fonte e sussurrou-me que bebesse. No vermelho, no veludo e no sangue dos lábios rasgados pelos espinhos li a sua terceira mensagem. “Beija-me”.
Apaixonado, envolvente, uma bela mistura de sensualidade e frio na espinha. Escrito com contenção, num crescendo muito cuidado.
ResponderEliminarO que não se vê é o que mais se deseja? E será que é preciso cuidado com o que se deseja?
Estou muito curiosa para ler a segunda parte. Muito bom.