sábado, 11 de setembro de 2010

Resposta ao Desafio 'Brinca Comigo' parte II (D.Ü)

Parte II



Tinha 13 anos quando, já na cidade, me foi diagnosticada uma infecção muito grave, resultado de anos de sinusite não tratada. O médico disse que eu era um herói, um valente. Nem um gemido de choro, mas as lágrimas corriam pela face à medida que me abriam a cabeça a sangue frio, com um pequeno escopro e martelo cirúrgicos. Era para meu bem, dizia para comigo próprio, para meu bem, pois poderia ter morrido com a febre e o choque séptico que estava eminente. À medida que a visão se abatia, fruto do trauma do bater do martelo, pensava que ficara cego, para sempre. Na escuridão. Tal como no quarto negro onde eu rezava sem saber como para que a fina linha de algodão não se quebrasse. Eu era um bom garoto, só queria mesmo que a linha não quebrasse. Da última vez que consegui vislumbrar alguma coisa antes de ficar tolhido de visão consegui ver quem estava à minha frente. O médico. Duas enfermeiras. Uma senhora velhota que chorava por mim. Chorava tal como a minha mãe, em sua casa, sem o seu marido, meu pai. Este estava demasiado ocupado a acarinhar outras senhoras, noutras camas que não a de minha mãe. Era isso que se dizia dos ferroviários. Um amor em cada estação. Quando o inchaço passou e a luz voltou a meus olhos famintos vi os meus irmãos, à minha frente, a sorrir. Foi um dia feliz.



O peso das memórias verga-me até ao chão. Tal como nos tempos em que, para ganhar alguns tostões, andei de saco de sisal carregado de ferros de engomar, daqueles modernos que se aqueciam sobre as brasas de carvão e deixavam as camisas dos homens e as saias das senhoras mais dignos e perfeitos. ‘É para quebrares rapaz, andas muito insolente. A trabalhar é que te educas’. Mas nunca deixei a escola, até ao exame. Era um bom garoto, ou rapaz como agora já me chamavam. Fiquei educado e vergado. Nunca consegui voltar a sentir-me digno ou perfeito. Nem recuperei das minhas costas partidas, que anos mais tarde quase me mandaram para uma cadeira de rodas.



O brilho nos olhos do garoto, o meu filho mais novo. Olhou para mim, muito emocionado e com lágrimas nos olhos, das mais puras que já vira. De alegria. ‘És o melhor pai que já tive!’. Ri-me, com todo o prazer do mundo, à medida que o miúdo se agarrava à sua bicicleta. ‘Vens brincar comigo pai’? E lá fomos, para o jardim grande, a tarde toda… O brilho nos olhos do rapaz, o meu filho mais velho, quando eu o vi a cortar a meta em primeiro lugar, numa corrida que fora absolutamente frenética, após os mais longos 100 metros que se possa imaginar ele levantou os braços, com uma máscara de esforço que se tornou de glória e exultação. Os meus filhos. Não haverá páginas neste mundo que cheguem para descrever tudo o que senti por eles e tanto que ficou dentro de mim e nunca lhes disse…



Num segundo, num dramático segundo, duas crianças congeladas em tempos que nunca haveriam de voltar encontram-se face a face e abraçam-se. Confiam um no outro, para se resgatarem da miséria humana, da pobreza de bolso e espírito, ansiosos que no outro esteja a tábua de salvação. Foi esse o nosso erro, entregarmos a esperança nas mãos de quem não a tinha. Tivemos dois filhos e uma vida de distância crescente entre nós. Nós, crianças, isoláramo-nos, os sentimentos apagaram-se e tornaram as memórias azedas, como o leite que a minha madrinha me dava para beber pela manhã. Destruiu-me por dentro. O leite e o casamento.

O passar dos anos, o desgaste dos momentos que podiam, que deveriam ter sido de cumplicidade. Oh miséria humana, porque nos atormentas? Porque é que eu e tu, meu amor, não nos conseguimos livrar dos fantasmas do passado, porque os convidamos para nossa casa, nossa mesa, onde não nos sentávamos os dois, só nós dois? Porque é que eu não te acompanhei nessa solidão triste de quem vive a sorrir e a dar o pouco que tem aos outros, porque não te dei eu o que lhes oferecias, porque não me ofereceste tu o que eu tanto te queria dar. Paz. Serenidade. Amizade. União. Força. Uma pílula dourada que te ajudasse a olvidar o rapto que ficou marcado a fogo em tua memória. Porque não peguei em tua mão e te levei à casa de onde não deverias ter saído, levada por quem te dizia querer bem e te manietou de forma que eu nunca soube entender, pois tantas das cordas que te prendiam eras tu quem as enrolava e apertava. Merecíamos melhor, tu e eu, mas por favor, lembra-te de mim com amor, o amor que eu te neguei mas que sempre existiu aqui, neste coração duro como uma castanha. Não te percas nessa ilusão de que nos outros viverás o que em ti não conseguiste viver. Deixa para trás tudo o que te pesa, todas as memórias encordoadas que de nada te servem e vive um futuro melhor, por ti. Por aquilo que (não) fomos.



De tudo o que lamento, o que me atormentará para a eternidade é o orgulho mal dirigido com que comandei a minha vida. E tanta coisa boa tinha eu para me orgulhar… Errei tanto e por razões tão sem sentido, esse será o peso que levarei comigo, muito maior que o do saco de ferros que me vergava quase até ao solo. Inebriei-me com a minha maior conquista, ter-me tornado um homem culto por auto-instrução. Era sempre o melhor da turma, assim foi no curso que fiz na tropa e que me livrou de ir para o Ultramar. Devorava os livros que apanhava aqui e ali, competia comigo mesmo na demanda de mais e mais sabedoria a mim próprio infligida, recolhi-me no canto só e solene do pensamento racional e deixei que me vissem apenas pelo produto das minhas mãos, pelas engenhocas e capacidade inata de arranjar tudo o que fosse mecânico ou eléctrico que aparecesse à minha frente. Mas podia ter ido mais longe, em carreira e distância, ter trazido outra vida para a minha família, outros bens e posses, mas isso nada era para mim. A minha madrinha tinha bens e posses, variados e bastos. Lá ficaram, na terra, sem que eu, o designado herdeiro, os reclamasse. Os seus amantes padres que ficassem com o tudo do que nada me deu, pois a cicatriz maior não é a da fome, miséria ou mau trato. Foi o de ter passado a minha meninice sem um nome de pessoa. E isso, não há bens ou posses que enterre. Mas como o lamento, não ter separado as minhas cicatrizes das vossas, ter feito de vossa vida uma vida melhor, como eu queria ter melhorado a minha vida. A vida que me fugiu um dia, por fim.



Lembro-me agora, com detalhe, de algo que já não estou certo de ter alguma vez acontecido mas que na minha cabeça sempre persistiu. De mais um dia em que estava preso na sala negra de minha madrinha. Lembro-me de quebrar a linha, deliberadamente. Lembro-me que encontrei um velho cinto de couro, guardado no fundo de uma gaveta da cómoda esconsa e carcomida. Lembro-me de ter subido à cadeira. De ter prendido o cinto ao meu pescoço e ao gancho de ferro fundido que havia no tecto, onde se penduravam as réstias de cebolas e sacas de farelo para os ratos não as apanharem. Lembro-me de balançar a cadeira e suspirar fundo. Mas no momento que a cadeira iria baloiçar pela última vez vi uma criança ao fundo da sala. Assustei-me e num gesto rápido e desajeitado retirei de imediato o cinto do gancho e sussurrei a gaguejar: ‘Quem está ai?’. Era um menino como eu, mas com uma enorme diferença. Os seus olhos brilhavam de alegria e os meus estavam baços de desespero. Quis saber como se chamava e o que ali fazia. Disse-me o seu nome, o verdadeiro. Era igual ao meu, com o mesmo ‘C’. Ele e eu éramos a face e o reverso, ele era quem eu não era e o que sonhava um dia ser. E num gesto que me aqueceu a alma, o menino apelou que eu descesse da cadeira e perguntou-me se queria brincar com ele…

Ali ficámos, o resto da fria e luminosa noite que durou uma eternidade. O que ele me contou ficará só para mim, não poderei partilhar convosco, pois não poderiam compreender. Mas foi suficientemente importante para eu esquecer a linha, o cinto, a cadeira e a escuridão que me assolava. O dealbar trouxe a continuação da minha pena, mas levou para longe o medo que a minha vida fosse vazia e inconsequente. Poderei não ter conseguido levar a vida que queria, ser melhor amigo, irmão, filho, pai, marido ou colega, deixei-me embrulhar pelos meus próprios limites, medos e orgulho desorientado. Mas uma coisa sei por certo, terá havido uma razão para estar aqui, pois quando agora olho para o que deixei para trás e vejo como florescem gerações e a luta dos que me sucederam, sinto que não foi, de todo, em vão.



Não deixem que a vossa vida vos escape, meus filhos. Foi a última mensagem que o meu cérebro destruído processou ao fim de 21 dias de coma. O sangue que fervia de angústia e inquietação um dia clamou vitória e escapou da prisão de minhas veias, mas escolhera o cérebro, o meu mais querido e valioso bem como praça de conquista e arco do triunfo. Imóvel, preso em mim mesmo, soltei este pedido mudo com o derradeiro sopro que exalei, já liberto da respiração artificial que me manteve preso a um caixão de carne que já nada me dizia ou a ninguém servia. Não deixem que a vida vos escape, não desperdicem nada, vivam até ao último dia com a convicção profunda de ter vivido uma vida plena, para além da dor e da saudade, libertos dos grilhões dos sentimentos perdidos e memórias esquecidas que serão barra de ferro e cortina de aço, pois nesta prisão estareis sós e lá fora existe um mar de gente para abraçar.

E nesse mar, matem a vossa sede com sonhos e desejos de coisas boas, partilhem a fome entre abraços e sorrisos, deixem-se fluir como a onda da maré, deixando permanecer a espuma difusa com que os vossos amados construirão tantas das suas melhores memórias…


In Memoriam, 'C' (1938-2007)

7 comentários:

  1. Surpreendente desfecho. Pensava mesmo que ias por outro caminho. Exquisite writing, all heart. Just beautiful.

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  2. fantastico!!O amor que jamais se cansa.
    Planta consolo e esperança,
    Espalha bondade e luz mesmo nas trevas da saudade...

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  3. D.Ü., se tivesse de escolher um texto teu como preferido, escolhia este. Texto e homenagem... certamente um orgulho para 'C'.

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  4. Não páras de me surpreender. :) Belíssimas, a homenagem e a luminosidade desta história. Direito à luz e direito ao nervo.
    Não sei quem é C mas escreves sobre ele com a alma e os sentimentos à flor da pele. Surpreendente!

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  5. guardo sempre os teus textos para o fim. geralmente são os que mais me "custam" ler (por vários motivos que não vale a pena mencionar). sinto-os, muitas vezes, como um hematoma no braço, quando lhe tocamos sentimos uma dor, no entanto é saborosa e damos por nós, sistematicamente, pressionando-o para voltar a sentir. tenho voltado, várias vezes, para ler "esta dor". obrigado.

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  6. apenas direi que gostei muito. apenas

    *e é curioso o cenário que cada um constrói a partir de umas mesmas palavras... eu jamais as associaria à música que escolheste :)*

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  7. O texto (juntando as duas partes) é verdadeiramente Brilhante!!! É um dos melhores textos que já alguma vez li! Não tenho palavras para o descrever... Uma história incrível, cheia de acontecimentos marcantes e com um final ... em forma de requiem... A guardar como uma relíquia.
    Não o deixes morrer ingloriamente...
    Grande Abraço!

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