quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Desafio "Brinca Comigo", II parte



Não, ela não se lembrava. Nem sequer sabia histórias onde aparecessem rainhas, nunca lhas tinham contado. Nunca ninguém a sentara ao toucador para lhe escovar o cabelo como se amansasse um cavalo, um puro sangue depois da corrida. Ia jurar que o espelho lhe devolvia reflexos de prata...
E ele foi buscar o melhor vestido dela, aquele que usava só em funerais e missas, e abriu-lhe o guarda jóias onde só restavam pó e souvenires baratos que os marinheiros lhe traziam de outros portos. Encaixou com cuidado, nos delicados buraquinhos das orelhas, os brincos mais decentes que lá encontrou, como se já soubesse que eram herança da madrinha, e abriu-lhe a bolsa de veludo onde guardava a maquilhagem para lhe tingir os lábios de vermelho, com toques leves mas precisos, como um pontilhado de tapeçaria.

Ele voltou sempre nos 10 anos que se seguiram, para o mesmo ritual. A princípio, de longe a longe, sempre que podia, depois regularmente, na última terça-feira do mês. Sentava-a ao toucador, ia buscar o vestido preto de rendas, compunha os sapatos pretos de salto junto aos pés cada vez mais pequeninos e delicados. Comprou-lhe uma gargantilha falsa e perfume francês verdadeiro - não as imitações de drogaria, a cheirar a um misto de insecticida e incenso grosseiro que ela comprava. Entrançava-lhe o cabelo em ninhos complicados e serpentes de Medusa. Cobria-lhe o papiro da pele de pó-de-arroz e rouge, para a fazer parecer viva.
Ela deixava-se servir. Entregava-se nas mãos dele e sentia-as flutuar, abelhinhas atarefadas à sua volta, no abandono de um sonho em câmara lenta em que via o seu rosto mudar para o de uma outra com ar de dona de dez milhões de destinos. E quando ele acabava, dançavam.
À terceira visita ainda tentou mostrar-lhe a ciência da carne que o pai dele lhe pagara para desvendar ao infante, mas ele segurou-lhe as mãos com força, lembrando-a:
- Disseste que íamos brincar ao que eu quisesse...
Nunca mais tentou mudar-lhe os planos. Nunca mais lhe tentou ensinar nada. Deixava-se servir, deixava que ele a tirasse dali, lhe desse banho e lhe lambesse as feridas, o seu anjo.

Na última terça-feira, pela primeira vez em 10 anos, saiu do sonho a câmara lenta no reflexo do espelho e comunicou ao homem que mal reconheceu a seu lado:
- Chegou a altura de outra subir ao trono, bebé...
Ele parou com a escova na mão, que agora tinha mesmo um cabo prateado – presente de há dois aniversários atrás.
- O que queres dizer com isso?
- Quero dizer que está na altura de abdicar, meu doce. A tua rainha vai depor a coroa. Já estou muito velha para isto. Já só vens cá tu e dois velhos amigos que já nem conseguem dar conta do recado. Estou cansada, quero sossego. Tenho umas economias... tenho uma casa junta ao mar, na aldeia onde nasci. É pequena mas dá à conta para mim. Pensa nisso como um exílio. É isso... um exílio.
- Eu sigo-te para o exílio.
- Não estás a perceber, rapaz. – levantou-se e olhou-o com tristeza, também pela primeira vez. – Isto... assim... não é saudável para ti. Está na altura de teres uma rainha só tua, da tua idade, linda.
- Eu não quero outra rainha, quero-te a ti. És minha.
“Minha...” Não pode deixar de rir com a ironia das palavras dele.
- Quem te vai arranjar para o baile?
- Hoje foi o último, rapaz. Já não consigo valsar mais.
A febre e a raiva nas lágrimas dele iam gelando aos poucos até o olhar lhe cristalizar.
- O último? Então tem de ser especial...
Pôs a tocar o ‘Volver’ do Gardel e arrastou-a pelo ar, sem peso, sem atrito, nas voltas do tango. Quando o disco acabou tirou-lhe a roupa, escovou-lhe o cabelo como se amansa um cavalo, vestiu-lhe a combinação mais bonita e deitou-a na cama.
- Vou ficar aqui até adormeceres.
Ela afagava-lhe o rosto. O seu anjo.
- Querido, não precisas. É melhor ires agora...
- Não. Vou ficar aqui até adormeceres e contar-te a história do sonho branco – deitou-se ao lado dela, cabeça sobre o peito murcho, ouvido junto ao coração. – Já te contaram a história do sonho branco da rainha?...

Quando acabou, ela estava quieta, em sossego, como queria; um ar de espanto nos olhos e na boca vermelha semi-aberta, que deixara a sua impressão na fronha da almofada. Ia leva-la consigo, uma relíquia régia. Ela não se iria importar e, além disso, deixava-lhe os brincos da madrinha já postos nas orelhas. Afinal, mesmo no exílio as rainhas precisam de manter a dignidade.

4 comentários:

  1. excelente miuda gira!! aptece me dizer:..."O castelo da cultura humana começa do berço...e vai até à pátria divina, onde mora a sabedoria dos anjos" parabéns!!

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  2. Bicho d'Ouvido, a espera pelos teus textos valem sempre a pena... ler com cuidado para não estragar, uma relíquia. Nunca mais voltes a desvalorizar os teus textos, estás proibida! :)

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  3. Fantástico texto, rico e delicioso, como só tu sabes fazer. Tens um jeitinho especial para estas coisas...

    DU

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