sábado, 11 de setembro de 2010

Desafio "BRINCA COMIGO", parte I




Fazia aquilo há tantos anos que já tinha perdido a conta aos pequenos saloios corados e anafados como querubins - como ele - que lhe entraram pela porta do quarto dentro, a mando dos pais. Para se fazerem homens...
“Julgava que era para isso que a tropa servia...”, costumava pensar. Mas, geralmente, mandavam-lhos lá uns bons anos antes de irem às sortes.
Mas dele não se iria esquecer nunca. As botas ortopédicas como peças desconchavadas, grandes demais para os pés, as calças demasiado curtas, o cheiro a leite coalhado, a terrores nocturnos e enurese. Sentou-se na borda da cama a olhar para o chão, provavelmente a contar os fios puxados no tapete rosa de bazar chinês aos pés deles. Ela pôs-lhe a mão no joelho, resignada ao constrangimento de quem já sabe como aquilo vai acabar, e perguntou:
- Então, meu lindo... já fizeste isto antes?
Uma queimadura de cigarro, uma mancha de vinho, mais fios puxados, uma boneca sevilhana no aparador em frente, um par de algemas verdadeiras que um policia ali deixara uns anos antes, e ele a balançar-se para trás e para a frente a olhar para aquilo tudo.
Tinha uns 13 ou 14 anos e caracóis. Estranhamente, não parecia debater-se como um peixe fora de água por estar ali, como ela adivinhava nos olhos de outros cordeirinhos que lhe mandavam para desmamar.
- Entrar em quartos de senhoras estranhas? Não. É a primeira vez.
- Sabes por que te trouxeram cá?...
Os olhos dele fixos na sevilhana, sério, ausente como se recordasse alguma coisa. E, ao fim de uma boa pausa, olhou-a de frente:
- Para brincarmos.
- Sim, podemos brincar ao que quiseres. Tu é que mandas.
Olhou-a: o cabelo louro-fogo comprido aos canudos despenteados e a carne do tronco já a desafiar a gravidade, entalada dentro do corpete de renda preta e rosa, transparente no peito caído de maduro. Levantou-se, foi até ao gira discos investigar as raridades com ar de quem está no museu, demorou-se num Carlos Gardel e em dois boleros. Enquanto a veterana punha a agulha a ferir o vinil, ele pediu:
- Brinca comigo.
Aquilo vinha-lhe tão de dentro dos olhos trágicos que a deixou confusa pela primeira vez em muito tempo.
- Brinca comigo... – teve de repetir.
- E vamos brincar a quê?
- Às rainhas.
- Também vais ser uma rainha?...
- Não, que disparate. – riu para voltar logo a pôr o seu ar sério. – És um bocadinho tonta para uma senhora mais velha. Vou ser o teu pagem, claro. Vou pentear-te e vestir-te. Foste convidada para um baile, lembraste?...

2 comentários:

  1. Admiro a tua capacidade de transformar decadência em beleza. Não sei se é a forma como constróis as histórias ou se é a tua escrita (que me transmite uma sensação de elegância) ou ambas. Muito bom. Ansiosa pela segunda parte.

    ResponderEliminar
  2. Miuda gira!! fantastico!! e a segunda parte?? que venha rapido...:))

    ResponderEliminar

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...