A gotinha de areia que trago no meu bolso foi-me oferecida por aquele que não recordo o nome, mas sei que desde então, sempre que me sinto sozinha, aperto-a com a minha mão e tudo parece tomar contornos mais suaves. Não menos importante é a pétala de vapor que guardo atrás da orelha e que me foi oferecida por aquele cujo nome ainda cá mora, mas que já não produz qualquer som quando dito. Sempre que me sinto triste coloco-a dentro do meu ouvido e ela canta-me notas harmoniosas.
Todas as noites, antes de me deitar, guardo a gotinha de areia enrolada na pétala de vapor para que nenhum grão se perca. Todas as manhãs, antes de me levantar, deixo a pétala de vapor respirar fundo e passear-se pelo quarto enquanto a gotinha preguiçosa ainda dorme na palma da minha mão. Das duas, acho que a mais infeliz é a pétala porque não sabe a que flor pertence… só sabe que é pétala. A gotinha não sabe o seu local de origem, mas está sempre tão atarefada em não perder nenhum grão que não pensa muito no assunto.
Há duas semanas que encontro a pétala a chorar para a gotinha todas as tardes. Alguma vez ouviram vapor a chorar? Faz o som de quando o vento passa debaixo de uma porta. A gotinha simplesmente seca o som das lágrimas, absorvendo-as por entre os seus grãos, mas nunca diz um único “ping”, escuta tudo o que a pétala tem para evaporar e adormece enrolada por ela.
Há três dias atrás, sem querer, descobri o porquê da pétala chorar. Está apaixonada por um dos grãos de areia da gotinha. Quem me contou foi a gotinha, porque tem medo de perder uma ínfima parte dela. “Um grão não consegue agregar-se a vapor, vai ser infeliz… uma pétala tem de se apaixonar por outra pétala”.
Não sei o que fazer para resolver este amor…
Ontem de manhã, ao acordar, fui pegar na gotinha para a pétala poder passear e reparei que esta tinha desaparecido. Pela primeira vez na vida ouvi a gotinha a chorar. Alguma vez ouviram areia a chorar? Faz o som que os caleidoscópios fazem enquanto os pequenos objectos que estão dentro deles rodam para formar as imagens. A pétala fugiu com o grão de areia por debaixo da frecha da janela. A gotinha, preguiçosa nem deu por nada.
Não sei o que fazer para resolver esta saudade…
Hoje de tarde, ao apertar a gotinha de areia na mão, ouvi um “ping”, seguido de muitos outros… quando abri a mão tinha areia a escapar por entre os meus dedos. Um suicídio premeditado. Como pude deixar isto acontecer?
Agora tenho um espaço vazio dentro do meu bolso, mais um espaço aberto atrás da minha orelha. Alguma vez ouviram-me a chorar? Faço o som de quando o vento quer passar por debaixo de uma porta e não consegue… ao mesmo tempo que um caleidoscópio quer produzir imagens e não consegue…. Como pude deixar isto acontecer?
…
Era uma vez, um grão de vapor, nascido de um grande amor. Foi-me oferecido por uma brisa de final da tarde. Gosto de o guardar debaixo da minha língua quando estou infeliz, pois ele dissolve-se e o seu sabor a chocolate faz-me sorrir.
Todas as noites, antes de me deitar...
muto interessante o teu texto,princpalmente pela sua originalidade!
ResponderEliminartão terno, tão doce.
ResponderEliminargosto tanto, faz me bem ler te Inês:))
Inês... parabéns!
ResponderEliminarEstá demasiado bom
Adorava ver este texto numa curta de animação, haveria de ser algo fabuloso!
Esse dom da fantasia, essa extraordinária energia poética....
ResponderEliminarEncanta-me a poesia que há na tua prosa. E a sua alquimia em pétalas de vapor e gotas de areia e sons de vento e de caleidoscópios a rodar. A transmutação da matéria.
ResponderEliminarUm texto com uma forma e métrica irrepreensíveis, carregado de todas as imagens ternas e poderosas a formarem-se logo na nossa cabeça, como num filme, encantador e inocente.