"Desculpem.... Podia pedir um minuto da vossa atenção?
Eu sei que não me conhecem bem. Sou apenas aquela criatura alienada que vos olha fixamente quando saem de casa de manhã e seguem apressados a caminho da vossa vida normal, muito aprumados e bem cheirosos, a gritar aos miúdos para se despacharem, a rosnar ao semáforo que não abre...
Já percebi que vocês não gostam do meu olhar. Desviam o rosto porque já sabem que eu não pestanejo. Custa muito não permitir que as pálpebras se fechem. É uma teimosia que aperfeiçoei com força de vontade e à custa de muitas lágrimas mas agora domino-a na perfeição. Não cerro os olhos nem mesmo para dormir... o que é bom. Assim os sonhos não me surpreendem. Vejo-os chegar, cumprimento-os educadamente e se não gosto deles mando-os embora com elegância. Se são bons, convido-os para dormir comigo. Nunca tenho pesadelos, excepto quando dizem que estão sozinhos e não têm mais ninguém com quem partilhar a noite. Aí cedo e aceito-os na condição de saírem logo de manhã e nunca mais voltarem.
De tarde, quando regressam da vossa vida normal, com um ar mais esboicelado e triste, eu evito olhar para vocês porque não quero ser contaminada. A normalidade pega-se e à tarde parecem ainda mais iguais uns aos outros do que de manhã. Não tenho nada contra a normalidade mas não tenho jeito para ela. Prefiro ser uma louca de primeira do que uma pessoa normal de terceira categoria, entendem?
Já tenho tentado conversar, explicar-vos que deve haver algo que vos oprime a vontade, mas vocês não querem escutar-me. Escorraçam-me e chamam-me demente. Tudo bem... eu sei o que sou. Mas vocês dizem esta palavra, tão bonita por sinal, assim....como se fosse um insulto. Quando fazem isso vou-me embora. Não por me sentir agredida, mas porque não percebo a máquina que trabalha nas vossas cabeças.
Mas....mas vamos directos ao assunto. A razão de estar a tentar falar convosco é simples: não estou bem e preciso de ajuda. Nada físico. É mental. Por favor não façam essa cara de gozo. Isto é difícil para mim... nunca estive tão próxima do chão. O meu problema é que perdi parte da minha loucura e não me lembro onde foi que a deixei. Já procurei por todo o lado e nada. E dói-me viver sem ela.
Começo a achar ridículas uma série de coisas que fazia por serem lógicas e inquestionáveis aos meus olhos. Coisas que têm que ser feitas como, por exemplo, dar boas noites à lua. Coitada. Vem visitar-nos pontualmente todas as noites. Vem suave, luminosa, disponível, toda bonita para nos agradar.... E nós, mal educados, não a cumprimentamos. E é preciso que alguém o faça, bolas! Ultimamente andávamos a ter longas conversas, a ganhar intimidade.... queria descobrir para onde é que ela vai quando desaparece. Mas ela é tão bela quanto misteriosa. É preciso ir muito devagar e agora que perdi parte da minha demência já nem consigo dizer "olá" sem corar de embaraço. Vocês costumam dizer que as pessoas insanas estão com a lua, não é? Pois eu já não consigo estar com ela e assim não sou feliz.
Outra coisa que já não me apetece fazer é beber a chuva. Sinto-me estranha assim parada no meio da rua, de boca aberta para o céu. Mas antes fazia sentido porque, caso não saibam, a água da chuva é constituída por uma miríade de partículas de nuvens negras que se reagrupam quando são bebidas. E estou convencida que para nos sentirmos gente todos nós temos de ter um pedaço de nuvem negra no nosso peito. E de vez em quando temos de deixar que ela chova e nos lave por dentro. Não sei... é o que eu acho. Ou achava, porque ultimamente ando confusa...
Mas agora falemos de negócios. Sou louca mas até eu sei que tudo tem um preço. Assim, comunico formalmente que dou alvíssaras a quem encontrar o bocadinho de demência que perdi. Ofereço, mas nunca percebi muito bem o que é isso das “alvíssaras”. Tive de pensar muito sobre esta palavra e concluí que se refere a uma parte do nosso corpo ou da nossa alma... porque são as únicas coisas que são realmente nossas e que podemos dar, não é verdade? Mas se tiver que dar alvíssaras a alguém, preferia que não fosse um bocado da alma porque gostava muito de levá-la inteira quando partir. Espero, por isso, que se contentem com os meus cabelos ou parte do meu sangue....
E pronto, era só isto. Não vos incomodo mais. Vocês não são bons ouvintes e eu não tenho muita prática de falar. Não tenho com quem... excepto a lua, claro. Talvez seja por isso que estou a sentir esta sensação estranha na garganta.... como algo que a aperta de dentro. Agora vão.... sigam com as vossas vidas. Acho que a minha nuvem vai chover e eu não quero que vocês vejam.”
"E estou convencida que para nos sentirmos gente todos nós temos de ter um pedaço de nuvem negra no nosso peito. E de vez em em quando temos de deixar que ela chova e nos lave por dentro."
ResponderEliminarDas melhores passagens que já li por aqui e, convém dizer, que o nível anda bem alto!
Muuuuito inspirador, adorei!
"Loucura" perfeita. Muito bom, Helena! Adoro a personagem que é "apenas aquela criatura alienada :)
ResponderEliminarExcelente texto, muito bem conduzido: do "minuto da vossa atenção à ideia de perder a loucura e ser mais infeliz por isso, até à soberba frase final. E frases geniais como "A normalidade pega-se e à tarde parecem ainda mais iguais uns aos outros do que de manhã" ou a que o Nuno citou, a minha preferida tb. Uma bela personagem, que nos aproxima do nosso lado louco e lembra que o que há de mais humano em nós, ás vezes, vem de lá. Parabéns sinceros. Gostei muito.
ResponderEliminarExcelente!! gostei muito!
ResponderEliminarJá tive oportunidade de dizer a algumas pessoas o quanto gosto deste texto... até disse a uma menina o porquê... ultrapassei largamente a altura certa de te dizer a ti (se bem que já ignorei algumas vezes o leite derramado fora de prazo e não me surpreendem os prémios póstumos).
ResponderEliminarNa verdade somos todos formigas, contaminados por uma normalidade instituída (ou loucos escondidos para que não nos olhem com o mesmo desdém que olhamos os assumidos).
Apesar de ter “…um pedaço de nuvem negra no (..) peito…” invejo a tua personagem, por ser tão real que todos os dias lhe vejo a carne e porque… “… Não cerro os olhos nem mesmo para dormir... o que é bom. Assim os sonhos não me surpreendem. Vejo-os chegar, cumprimento-os educadamente e se não gosto deles mando-os embora com elegância.”