Interessante como aquele contacto com a têmpora é tão confortante. Quase que lhe deu vontade de se encostar mais à pistola como se ela pudesse tornar aquele momento menos doloroso ao mesmo tempo que acaba com ele.
A mão direita segura a pistola, firme, sem tremer. Está mais do que decidido e é só uma questão de alguns segundos. Em cima da mesa redonda da sala está a carta que explica a incompreensível decisão à família ausente. Ausente mas mesmo assim merecedora de saber o porquê, nem que seja para não ir inventar justificações aos estranhos quando estes lhes perguntarem “porque fez ela aquilo?”.
Ela tem tudo para ser feliz, tudo. Mas… apetece-lhe apressar as coisas e esta é a altura certa. Decidiu-se pelo tiro porque lhe parece o método mais rápido e por isso mais suave. Decidiu-se por hoje porque hoje é um dia melhor do que ontem e melhor do que amanhã e, como é véspera de fim-de-semana sempre facilita a vida aos familiares se o funeral for antes de segunda-feira, pelo menos assim não têm desculpa para depois dizerem que calhou num dia de semana e tiveram de faltar ao trabalho.
A casa fica arrumada, pronta a vender ou arrendar se for esse o caso. Espera não sujar muito a sala, é sempre difícil tirar nódoas de sangue da carpete, mas tinha de ser ali. Decidiu-se por casa porque é o único sítio onde se sente realmente bem e confortável e para ela não fazia sentido nenhum ir para um lugar público lavar a roupa suja.
Por falar em roupa, vestiu-se com um vestido largo para ser mais fácil despirem-na. Espera ficar com o corpo numa boa posição para que depois de arrefecida não terem de lhe partir muitos ossos. Imaginar aquele som oco sempre lhe fez muita impressão.
Todas as contas estão pagas, não há dívidas pendentes. O carro fica guardado na garagem. Água e gás fechados. As portas que dão acesso à casa ficam destrancadas, pois não vale a pena andarem a arrombá-las. O gato foi oferecido a uma amiga de confiança.
Aparentemente está tudo em ordem. O resto das explicações e últimas vontades estão na carta. Junto a esta fica um cheque com dinheiro mais do que suficiente para pagar o funeral. O resto do dinheiro da sua conta já teve outro destino mais solidário.
“Pronto, olhos fechados e é só premir o gatilho… Sim, pode ser agora. Obrigada.”
Ela jaz no chão da sua sala, tal como desejou. Ele, ainda com a arma na mão respira fundo e segreda a si mesmo “está feito”. É sempre um momento complicado, mas os anos já se encarregaram de o banalizar. Ter esta profissão nunca foi fácil. Não a escolheu, foi obra do acaso. Ser Auxiliar de Suicídios é algo que exige muito, mas ao mesmo tempo faz com que ele se sinta estranhamente útil.
Nunca gostou muito deste tipo de escolha, a arma, o tiro… faz muito barulho e o resultado final é sempre muito “expansivo” em termos de projecção. Mas o slogan diz “Morra à sua vontade, nós ajudamos”.
Olha para a sua agenda, faltam mais dois clientes para terminar o dia, um tiro e um enforcamento. Entra no carro e verifica a próxima morada. Longo vai o dia. Não vê a hora de chegar a casa e poder descansar… em paz.
sábado, 19 de junho de 2010
As escolhas
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Só o meu texto preferido deste blog, até à data...
ResponderEliminarCorroboro!
ResponderEliminarExraordinário!
Simplesmente genial, Inês.
ResponderEliminarAuxiliar de suicídios é muito bom... :) Final com chave de ouro, irrepreensível; excelente ritmo, irónico e tragicómico... como a própria vida. Parabéns a uma escritora de mão cheia. :)
Tira da cabeça todo o pesar
ResponderEliminarDesde que chegaste ao mundo
Uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses... é o que me ocorre ao ler te,excelente Inês!!!
Perturbador.... therefore, muito bom. As personagens são frias, metódicas, limpas... e estranhamente sãs. Não há drama, há precisão. Não há interferências morais, há escolhas. E no entanto.... ainda assim.... o texto consegue exprimir que morte não é banal (apesar de o ser). E o que eu gosto deste teu lado mais negro...
ResponderEliminarA leveza de uma morte calculada... formidável, Inês!
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