sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Boca de Cena



(este texto tem personagens reais e outras fictícias. O espaço onde decorre a acção é mesmo o Teatro-Estudio Mário Viegas - traseiras do teatro S.Luis)

A noite estava escura. Seguia pelo Chiado à meia noite, hora estranha, em direcção ao teatro que me viu nascer. Vinte anos depois regressava ao meu berço de actor e reencontraria o "pai" que me viu nascer para o teatro. Aos quinze anos lembro-me eu, com a bela peça de Almada Negreiros, "Antes de Começar". Perdi-me de amores pela actriz que fazia de boneca mas perdi-lhe o rasto.
Ah, divagações, divagações! E nem sequer falo do meu berço! Nasci para o teatro na Companhia Teatral do Chiado, meu "pai" o brilhante actor Simão Rubim. Não sei como está agora, não o sei, não o vejo vai fazer quase dezasseis anos. A saudade é muita.Chego perto do teatro, saúdo a alegre foto do Mário Viegas. [O quão foste inspirador Mário, tu e o teu modo de vida. Pena não te ter conhecido antes de te teres apagado deste mundo, pena.]
Entro no teatro. A porta da sala chia com o mesmo som de sempre. Rio-me satisfeito. Desço dois degraus querendo acender a luz. Mas esta acendeu-se sozinha, o pano estava corrido. Ouvi uma voz, estranhamente familiar.
- Sentem-se, sentem-se. O teatro está prestes a começar. A peça de hoje apresenta-se com o nome de "Loucura".
Aquilo assustou-me um bocado mas pensei que era apenas uma surpresa. Sentei-me a meio da plateia. Três séries de três pancadas furiosas ressoaram na madeira do chão do palco. Eram as pancadas de Moliére. O que quer que fosse ia começar.
O pano abriu-se lentamente. Á boca de cena um holofote furioso desfocava o palco. Um pesado objecto foi arrastado pela madeira do palco. Tinha os contornos de uma cadeira e transportava-a um humano. Com contornos de homem, corpulento.
- Quem está aí?- perguntei, a medo.
- Senhores e.......senhores procederemos aqui à tentativa de desfiar a miséria da mente humana! O sentimento mais vil do Homem: o ódio. Convosco dois actores fantásticos. Quem diria? Directamente de Inglaterra: Gustavo Santos. Maravilhoso actor. - ouvi, incrédulo.
- Quem está aí? - tornei a perguntar - Como sabes o meu nome?
- Ora, ora acalmai-vos querido público! O segundo actor, o louco, o doido varrido, José Albergaria.
Não queria acreditar! O meu companheiro dos primeiros anos de actor! O outro protegido do Simão Rubim.
- José! Que surpresa! Não esperava encontrar-te aqui! - gritei.
- Pois! Nem eu! Porque não voltas para Inglaterra? Não fazes cá falta! Não achas que Lisboa é pequena demais para dois Hamlets?- gritou, furioso e o holofote baixou de intensidade mostrando dois olhos vermelhos de raiva.
- Que se passa? - perguntei.
- Tinhas mesmo de concorrer para o papel que eu queria? Tinhas? - perguntou ele.
Fez-se luz na minha mente. Concorri há duas semanas para o papel de Hamlet na mega-produção nacional e fui escolhido.
- Mas porquê tanto alarido?
- Porra!!!! Não te lembras Gustavo? O único papel que realmente ambicionava! Quatro anos a ser sempre o segundo! Tu foste embora lá para Inglaterra. Eu consruí a minha carreira a pulso! Agora reapareces do nada e dás cabo do meu único sonho! Laertes disseram eles. Que eu ficava com o papel de Laertes!!! Que tinham encontrado um actor revelação que era esplêndido para o papel de Hamlet. Espumo de raiva ao saber que és tu. - a loucura das suas palavras inundava o palco.
- Calma José! Laertes é um excelente papel e tu sabes que és um excelente actor.- tentei acalmá-lo.
- Pois claro, é.Ufa! Parece que se tinha acalmado.- Mas é um papel secundário, Gustavo, se-cun-dá-rio!!!! - gritou ele, a plenos pulmões
O meu coração corria veloz. Não me sentia seguro ali.
- Calma José, por favor. Vamos conversar. De certeza que podemos chegar a um acordo, se falarmos...- tremia-me a voz, os olhos do José eram piores que punhais, trespassavam-me o coração sucessivas vezes.
-Se? Eles disseram-me que não aceitavam mais ninguém para Hamlet! - a respiração dele tornara-se sonora, a raiva estava a transbordar. - Que tu eras uma obra-prima em forma de actor! Nem imaginas o quanto eu quero matar-te! Volta para Inglaterra! Desaparece-me da vista!
- Mas eu não posso! A minha vida agora é cá! - disse.
- Ah!Ah!Ah! Se não mudas de terra, vais para baixo dela! Ai juro-te que vais! - disse, rindo-se como um louco.
Uma coisa saiu lentamente dos bolsos do José. O holofote baixou de intensidade. O quê? Uma pistola! Apontada a mim!
- Estás com medo agora? O grande Gustavo a tremer de medo. Está carregada sim, se queres saber. Gosto disto agora, pela primeira vez sinto que tenho poder sobre ti. - ele estava fora de si, sentia a sua raiva a controlá-lo.
O meu sangue gelou. Estava com um pé do lado da morte e um pé do lado da vida. Tudo dependia do dedo indicador da mão direita do José, instável sobre o gatilho.
- Não faças isso! José, tu não queres sentir-te culpado por uma morte, José!
Um passo apressado ecoou no chão do palco e caiu em cima do José. Ouviu-se um tiro. Ufa! Acertou num holofote que se estilhaçou.
- Agarra Gustavo. - gritou o homem que me atirou de seguida a pistola.
Agarrei-a imediatamente e apontei-a ao José. O homem largou-o e juntou-se a mim.
- João? João Carracedo? - identifiquei quem tinha aparecido.
- Eu mesmo.
- Como vieste aqui parar? - perguntei
- Quando vi o José aqui entrar espumando de raiva e com o que parecia ser uma pistola senti que algo estava mal.
João Carracedo pode ser talvez um "tio" para mim no teatro. Amigo do Simão, ajudou-me a começar. Estava bastante mais velho e grisalho mas contente. Reparei que mantinha a mesma energia de sempre. Sorri. Estava safo. Por agora.
- Mas tu passaste-te? - gritou o João ao José.
- Tu devolve-me a pistola Carracedo. Já não mandas em mim. - sentia-lhe a voz mais fraca, mas José ainda não tinha despido a máscara de mau. Mas os olhos denunciavam-lhe a fraqueza que via neles crescer. Ele ainda temia o João.
- Agora sim, mando. Estás obviamente louco. O que é que te deu? Passaste-te de vez! - disse o João.
José tentou explicar-lhe mas a raiva entorpecia-lhe o discurso. A raiva torna-nos loucos, sabiam? Expliquei eu então a história, devagar.
- Mas tu passaste-te mesmo José. Um papel numa peça não vale uma vida. - desabafou João quando percebeu a estória.
- Ai isso é que vale! Então e o meu orgulho? - ripostou José.
- E querias ser acusado de homicídio? E a imprensa? disse eu.
- Ora bem. Aí é que tinha tudo preparado para que parecesse um acidente. O grande Gustavo, não suportando a intromissão dos media, suicida-se. E no teatro onde nasceu! Que grande manchete, einh? - disparatava, tudo o que dizia fazia sentido mas era horrível de se ouvir. - E depois o testemunho do José Albergaria o grande amigo que sente muito a sua falta. Que comovente.
- Estás louco José. Louco- dissemos em uníssono, eu e o João.
- Pois. Louco de amores pelo papel que me roubaste! Dá-mo, filho da mãe! Ele é meu! - gritava José.
Num ímpeto, não temendo a pistola que eu segurava atira-se de caras para mim e para o João Carracedo. Tropeça na beira do palco, cai. Ainda tenta perseguir-nos. O João Carracedo empurra-me para a saída do teatro. Fecha a porta. O José grita:
- Abram a porta! Cobardes! Lutem comigo!
- Olha que manchete. "Famoso actor passa a noite fechado no teatro." É para aprenderes a ser humilde. - disse o João Carracedo, no meio de risos, trancando a porta do teatro. - Vai ser o teu momento de boca de cena! Aproveita! Anda Gustavo, temos uma imprensa para informar.


Segui-o pelo Chiado. Acabou por dizer:
- Vamos. Amanhã é outro dia. Outra peça de teatro a representar em que não sabemos o nosso papel nem as nossas falas. A vida é um teatro. Há-que saber improvisar.

4 comentários:

  1. O Simão Rubim está aqui: www.nos-mesmos.com

    Feliz 2011!

    Abraço.

    Simão Rubim

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  2. muito honrada pela resposta :) o texto já tem anos, 5 para ser exacta, e espero que as personagens "roubadas" da vida para a ficção gostem dele :)

    Feliz 2011

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  3. "Vamos. Amanhã é outro dia. Outra peça de teatro a representar em que não sabemos o nosso papel nem as nossas falas. A vida é um teatro. Há-que saber improvisar." Gostei, Baguera :)

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  4. O teatro da vida. Em cena, sempre que respiramos.

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