sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Vermelhoescurobrilhante



Geralmente, acontecia-lhe naquelas alturas em que começava a empurrar o carrinho de compras aos ésses lentos pelos corredores do supermercado, de olhos postos num tempo longe. Aparecia-lhe a imagem antiga de dois pares de peúgas às cores, apoiados na mesa de centro da sala de estar, que a mãe dela lhes dizia para "tiraremdaímediatamente".

Quando ele chegava aos sábados de manhã, por volta das dez, ela já lá estava sentada em frente ao televisor sintonizado num programa qualquer de vida selvagem, olhos ensonados, a mesma lentidão e mau humor matinais que lhe haviam de ser comuns para o resto da vida. Ele sentava-se em silêncio ao lado dela com uma enorme tigela de cereais a que acrescentava quatro insuportáveis colheres de açúcar e mastigava ruidosamente. Ficavam ali, a pastelar ao sol puro das manhãs perfeitas, até a mãe dele vir tocar à porta a chamá-lo para o almoço.

Nesse tempo ele não acreditava em portas ou obstáculos arquitectónicos de qualquer espécie e entrava-lhe em casa, saltando da varanda dele para a dela.

Depois vinha a memória de brincarem no elevador com os outros putos do prédio, de carregarem em todos os botões luminosos do painel, sairem em todos os andares, tocarem às campainhas e fugirem, pararem entre o 5º e o 6º piso, dispararem o alarme. Perceberam que as coisas tinham mudado entre eles quando ficaram fechados lá dentro durante um apagão: olharam-se constrangidos, ele sorriu aquele sorriso perfeito de sacaninha envergonhado e, pela primeira vez na vida, não souberam o que dizer um ao outro, pelo menos até a porteira os tirar de lá, meia hora mais tarde.

Ela cresceu depressa demais, de um mês para o outro, lábios-peito-coxas e outras arquitecturas feitas de suavidade, os ossos finos da clavícula e o seu côncavo, electricidade por lhes tocar, electricidade nas pontas dos dedos dele. "Estásolharpraonde, paspalho?" Tinham passado 15 anos desde então - tanto tempo?...

Às vezes, aos ésses por corredores de supermercado ou em marcha lenta pela faixa direita da auto-estrada, a caminho de casa, pergunta-se quando é que ela terá perdido aquela vontade férrea e silenciosa que lhe blindava o olhar e a impedia de se desmoronar, quando todos esperavam que o fizesse (os punhos cerrados e o sangue vermelhoescurobrilhante, as lágrimas a correrem-lhe, duas a duas pela cara, ele a limpar-lhe o joelho ainda cheio de areia e pedrinhas - "Doi muito?")

Desde que estava fora, ia sempre visitá-la quando vinha a casa, nas férias. Há três verões, saltou pela varanda dele para a dela, como dantes; ela reconheceu o estrondo adolescente da aterragem a pés juntos na tijoleira. Ficaram ali, a rir um para outro como reflexos.
O mês passado, ela contou-lhe num longo e-mail como se tinha separado recentemente - os punhos cerrados e o sangue vermelhoescurobrilhante, as lágrimas a correrem-lhe, duas a duas pela cara, ele a limpar-lhe o coração ainda cheio de areia e pedrinhas: "Dói muito?"


Ontem, às 2.30h da manhã, o telemóvel deu sinal de mensagem na cozinha. "Estás acordada?" Mas ela tinha acabado de se deitar.
E hoje, enquanto a lê, decide com pena que já é tarde demais para responder.
A dois mil quilómetros e 10 horas mais tarde, ele repete: "Estás acordada?" E murmura, só para si: "Abre os olhos. Estou mesmo à tua frente..."

5 comentários:

  1. (Já estava com saudades)
    Os "vizinhos"... mais do que. Muito mais do que. Tão anti-hipoglicemia. "Abre os olhos", és escritora :)

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  2. textoemocionantetechnicolour

    tavaverqnuncamaiscreviascoisasnovas!

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  3. Muito bom como sempre.... Sugerido, nunca explicado, mas com aquela ilusão de simplicidade que defendia o João Aguiar. Subscrevo as palavras da Inês.

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