quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Clube de debate


  • Sentem-se, por favor. Hoje não vamos ter uma sessão nos moldes habituais. Não vamos procurar paradoxos, validar silogismos, chegar a consensos, ser críticos ou analíticos... Não vamos debater o que quer que seja. Para variar, em vez de nos ouvirmos a nós próprios vamos realmente ouvir os outros. A única pessoa que tem o direito de fazer perguntas sou eu e não há respostas certas, lógicas, inteligentes, interessantes, verdadeiras... Hoje limitamo-nos a aceitar as ideias que quiserem partilhar com o grupo sobre uma pergunta elementar. Estamos de acordo? Então aqui vai ... Viver não é simples. O que fazes para te manteres vivo?
  • Que pergunta estúpida, professor...respiro, como, bebo....
  • Não é só isso... como tu bem sabes. Quem vai começar? Tu?
  • Pode ser. Eu protejo-me antes de embater contra a realidade.
  • Como assim?
  • Sou como a Blimunda do Saramago Todos os dias, antes de levantar as pálpebras, tacteio os livros na estante, retiro um, abro-o e e leio algumas passagens. Os meus olhos de ver ficam guardados entre aquelas páginas e assim posso enfrentar a realidade com os olhos da ficção. São como um filtro que torna a vida menos corrosiva, menos humilhante ou menos monocórdica. A fuga é a minha estratégia de defesa mas olhem que nem sempre corre bem. Hoje, por exemplo, calhou-me um Kafka e está a ser um dia difícil. A vida está a encostar-me à parede.
  • Não há estratégias infalíveis, pois não? E tu?
  • Bem....Resigno-me. Não adianta lutar. Sou como uma manhã de nevoeiro sujo e não sei ser senão indolente e inerte. Não sei fazer outra coisa senão entregar-me de braços caídos e fazer o que me mandam. Tento manter-me assim, na corda, a mover-me lentamente para manter o equilibrio. Não quero cair para qualquer dos lados, nem o da morte, nem o da vida...
  • Mas se nada te tira desse marasmo, o que fazes neste clube?
  • Confirmo a minha tendência para ceder. Cedo as minhas ideias trocando-as pelas dos outros mesmo sabendo que os argumentos são sempre tão inconclusivos quanto os meus.
  • Aceito. Mas não chegar a conclusões não é necessariamente mau. E tu?
  • Para mim a vida é carne contra arame farpado. Tem de rasgar, sangrar, doer e voltar a cicatrizar. Em relação à sua pergunta, a resposta é curta. Simplesmente cerro os punhos e os dentes. Só isso. Não tenho mais nada a declarar.
  • Parece-me suficiente. E tu?
  • Devo parecer estranho mas não me custa nada viver. Sou feliz. A escrita dos meus dias sai-me naturalmente, sem esforço, sem ensaio, sem rascunho e sem emendas. Pensava que era normal mas pelos vistos sofro de um raríssimo optimismo patológico.
  • Professor, desculpe lá, mas não posso deixar de comentar. Ouve lá, tu és mesmo... frívolo. Eu nem consigo materializar o que dizes. Como podes ter a audácia de achar que vês a felicidade se ela está tapada pela muralha dos que nunca sequer ouviram falar dela. És como aquele malta que vai para a Índia atingir o nirvana entre pedintes de mão estendida. A abstracção total. Dizes essas coisas para te invejarem mas eu não te invejo, condeno-te...
  • Pára! Tinhamos estabelecido que hoje não haveria réplicas. Ouvir e aceitar. Mas diz-me... Achas que as pessoas condenam-te por seres feliz?
  • Condenam-me, sem dúvida. Eu próprio condeno-me às vezes.
  • E isso não macula esse teu optimismo à prova de bala?
  • Estranhamente, acho que não. Para ser feliz não posso dar crédito total à minha própria consciência. Sinto-me inteiro. Só tenho pena de, por vezes, pensar que tudo isto é apenas uma sensação. E a verdade é que eu não tenho a certeza se uma sensação pode ser chamada de vida.
  • Pois.... E tu?
  • Para me manter viva eu vejo isto tudo como um palco, como dizia o inglês. Esteja eufórica ou a chorar dobrada sobre mim, a ver o mundo do alto do meu orgulho ou com a cara encostada no chão e um pé sobre a nuca, dominante, passiva, predadora, presa ... não interessa. É uma peripécia na minha tragicomédia. É apenas uma cena que pouco vale comparada com o todo. Só tenho medo do epílogo, do julgamento do outro lado da cortina final. Esperem.... minto. Também tenho medo que agora, enquanto estou no palco, as luzes de cena não me permitam ver que a sala na realidade está vazia e ninguém se interessa por mim.
  • O velho medo da solidão... E tu?
  • Quando era mais novo era fácil estar bem com a vida. Estava apaixonado por ela de uma forma obsessiva, achava que não tinha defeitos e prostrava-me ante a sua infinita beleza como se de uma obra de arte se tratasse. Agora é diferente. À primeira vista o mundo continua a parecer-me esculpido ou pintado por ser perfeito demais para ser obra do acaso, entendem? Mas já não sou ingénuo e percebo que os belos pigmentos ocre na realidade são urina de vaca e os lindos tons sanguíneos são ferrugem. Não deixa de haver beleza mas passa a ter uma escala humana. Por isso, para manter-me vivo, já não entro em combustão. Sei que mais tarde ou mais cedo o bolor vai aparecer...
  • A ataraxia costuma vir mais tarde na vida. E tu?
  • Também não tenho muito para dizer. Para sobreviver aceito que estou aqui para fracassar. E não tento mudar porque sei que se o fizesse não teria sucesso, percebem? Falho sempre, mas sempre de acordo com o esperado e, neste aspecto, a vida torna-se suportável.
  • E se alguma vez fores bem sucedido?
  • Não há hipótese porque nem sequer tento.
  • Mas acabaste de ser bem sucedido ao explicar-nos essa tua postura. Todos compreenderam.
  • Pelos vistos falhei... senão o professor não teria feito essa última afirmação.
  • Touché. E tu?
  • É simples. Penso que sou um ser único e que todo o mundo foi criado com o único objectivo de servir de cenário para que eu possa viver a minha vida em pleno. As minhas escolhas, os desígnios do meu arbítrio, são a única referência para todos os restantes seres do universo. Tudo parte de mim e tudo termina em mim.
  • És um deus?
  • Não. Deus é inseguro e precisa que o confirmem, que o venerem.... Eu não. Eu sou a verdadeira plenitude. Sou o centro de todas as coisas mesmo que não as tenha criado e que a sua existência me seja indiferente.
  • Estou a ver que para ti a vida é fácil. Não sofres, portanto?
  • Sofro sim. E vejo os outros sofrer. Mas unicamente para que a ideia de sofrimento se materialize na minha consciência. Para mim é um acto vazio.
  • Porra! Que egocêntrico....
  • Não comentem! E tu?
  • Não sei explicar tão bem como eles mas acho que estou viva porque pertenço a alguém e, algures no mundo, há alguém que me pertence.
  • O príncipe encantado, a alma gémea?
  • Não, não é uma questão amorosa e nem sequer acho que seja só uma pessoa. Tenho apenas a convicção de que em algum momento a minha vida será determinada por alguém e vice-versa. Não posso falhar tal como espero que não me falhem.
  • Mais claro impossível. E tu?
  • Não gosto de falar sobre mim professor mas manter-me vivo é uma certeza, não é algo em que pense. A vida é tão rara. A probabilidade de ter existido enquanto ser inanimado é esmagadora mas.... eu estou vivo. Não posso, nem quero, recusar esta dádiva.
  • Sim senhor. Isto promete. Vamos continuar. E tu?

4 comentários:

  1. Não consigo alterar os bullets...Se alguém souber como, diga... Info-excluída, eu sei...

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  2. Eu? Bem... pensativa, sorridente, espantada, inquieta, calma... tudo isto num só texto. Real, ou não, este "clube de debate" é muitoo bomm. E tu? :)

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  3. Eu...? Olhe professor, eu por vezes duvido que esteja vivo, penso... num universo infinito, num tempo que se estende pela eternidade, será este breve piscar de olhos realmente a vida? Parece-me mais um sonho, embrulhado por eras de transito entre estrelas...

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  4. pois eu Amo!!!sou lúcida na minha loucura, permanente na minha inconstância, inquieta na minha comodidade. pinto a realidade com alguns sonhos, e transformo alguns sonhos em cenas reais. choro lágrimas de rir e quando choro pra valer, não derramo uma lágrima, amo mais do que posso e, às vezes, menos do que sou capaz,quando me entrego, atiro-me e quando recuo não volto mais...e amei!!!

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