terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Espera...

(recuperado d'outros tempos, n'outros lugares)



O dia está cortante. Sopra um vento frio que arrepia o mais intrépido viajante, mas eu não me demovo. Sei que ela vai chegar...


Foi num distante Novembro que a vi pela primeira vez, qual anjo a descer dos céus, vi-a a descer do eléctrico no Terreiro do Paço, tinha eu acabado de desembarcar. Depois das atrocidades e paisagens inesquecíveis que vira durante a minha estada em Moçambique, deparo-me com uma visão de doçura imensa e perturbante inquietude.

Lembro-me de vislumbrar por instantes um branco e torneado tornozelo que espreitara por entre a alpergata e a saia negra rodada, que durante aquele efémero pedaço decidiu não a cobrir até aos pés. Ao subir os meus olhos fui devorando avidamente cada centímetro da bela criatura, com a gula de quem jamais vira tão bela donzela e a cobiça infantil pelo brinquedo proibido...



Ah, este cachecol de lã é tão aconchegante. Foi o meu neto Jorge que mo deu, num destes natais já idos. Ele sempre foi o neto que mais me apaparicou.

Oh céus, porque acena aquela senhora para mim?
O que diz ela? Que é hora de almoçar?....



Eu sei que ela vai chegar, espero não estar atrasado!
Porque é que não me deixam estar aqui em paz?!?! Que raiva, dá-me vontade de os esbofetear, como os cabrões dos farruscos quando não queriam dizer onde andava a Renamo. Aqueles filhos da mãe, iam buscar as armas à África do Sul e depois entravam pelo mato adentro, matavam tudo o que viam da Frelimo, ou branco. Nem as impalas e as palancas escapavam, serviam de pasto aos esquadrões de ladrões e assassinos. O Cabo Pimenta é que a sabia bem, era espancar os gajos e queimar-lhes as palhotas, desatavam a palrar feito loucos, pena que não se percebesse quase nada do que os sacanas diziam...



Ela está atrasada, tal como da outra vez...

Iamo-nos casar daqui a uma semana, e ficámos de ir comprar as alianças ali na Rua do Ouro, num ourives amigo do meu pai, cujo filho, o Raimundo, também estivera comigo em Tete. Mas esse desgraçado não voltou. Uma mina arrancou-lhe as pernas, a virilidade e a alma. Tinha a mulher e duas gémeas de 1 ano à espera. Não aguentou o desespero e a angústia. Dois dias depois do acidente enfiou a Mauser na boca e nem se despediu de mim...


Lembro-me de quando a Laurinha nasceu. Claro que lembro! Como me haveria de esquecer desse dia... Vinha eu a correr pela Fontes Pereira de Mello acima em direcção à Maternidade, depois da tia Aurora ter mandado o ajudante de mercearia avisar lá na redacção do jornal “O Século”, onde agora me dedicava à tipografia. Logo eu, um catraio nascido em Montelavar com ambições de ser marinheiro, fui parar ao Exército onde servi 3 anos e andava agora a montar as páginas de um jornal que nunca antes lera...


- A menina está cheia de febre, Augusto! Vai-me ali à botica e pede para falar com o Sr. Gentil. Ele que te dê o chá e que ponha lá na conta. Augusto? Augusto!?!? Estás a ouvir?? –
Não era só a menina. Volta e meia eu tinha um violento ataque de febres, era a malária, uma velha companheira que viajou comigo para além das margens do Limpopo. 3 Semanas de espera desesperante, a ser atacado por mosquitos e ‘turras’. Curioso, foi do inimigo mais pequeno que levei a maior mossa...



Ela ainda deve vir antes das 7. Já era costume atrasar-se, punha-se à conversa com as colegas no portão da fábrica de bolachas da Aliança, ali para os lados de Alcântara. Era matemático, mulheres a dar à língua, eléctrico perdido. E eu a moe-las no Cais do Sodré, a andar d’um lado p’ró outro, saltando até à Ribeira para um pastelito de bacalhau ou um pratinho de jaquinzinhos. Eu chegava sempre às 6 em ponto, tinha tempo para tudo, quase que dava para ir até ao Comércio e meter-me no Cacilheiro, ir até à outra banda e voltar...



Está cada vez mais frio, começo a enregelar.

Ah, valha-me este cachecol de lã quentinho. Foi o Jorge que mo deu, o meu neto Jorge, o filho da Laurinha. Por falar nela, por onde anda?... Nunca mais me veio visitar! Aquela menina, eu que esfarrapei a cuidar dela, a pô-la na escola comercial para ela aprender a ser Secretária. Agora, que é chefe de repartição ali nos Fanqueiros nunca mais teve tempo para o velhote. O que diria a mãe dela se fosse viva! A minha Eugénia, a mulher mais boa e generosa deste mundo,... Nunca me hei-de esquecer de quando a vi a sair do eléctrico, naquela manhã de Novembro, um sorriso de fazer os anjos da Sé roerem-se de inveja, linda que ela era. Chegava sempre atrasada, abençoada. E eu ali a moe-las, a passarinhar de um lado para o outro...


Ela deve estar mesmo ai a chegar, está quase na hora. Depois vamos até ao Rossio comer castanhas e dar um pulo à Ginjinha antes de ir para casa. Como eu gosto do mês de Novembro, mesmo com o frio e a saudade.

Resta-me esperar por ela, aqui encostado ao varão da paragem do eléctrico. Tenho que ser paciente. O Doutor está sempre a recomendar-me paciência, para eu tomar os comprimidos, para eu não estar sempre a fugir para a rua, que eu tenho que fazer um diário, que me ajudava a combater a doença. Ele diz que o meu cérebro está a morrer e que eu vou perder a memória, e por fim a mobilidade, até à morte. Perder a memória, como se eu me fosse esquecer da Laurinha, da Tia Aurora, do Raimundo, de Moçambique, do Jorge, e da Eugénia, da minha querida Eugénia.



Que frio que está aqui fora, mas porque é que o malvado eléctrico nunca mais chega?!?

4 comentários:

  1. Que bom reler este teu texto. É outro para a selecção de mais logo, daqueles que deixam um apertozinho no peito. Love it. :)

    ResponderEliminar
  2. Lembro-me, quando ia ao teu perfil "cuscar" os teus textos... e lembre-me que sempre foi assim excelent... e.e será muito melhor.

    ResponderEliminar
  3. A memória que o tempo esquece.
    Magnífico texto.

    ResponderEliminar

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...