quinta-feira, 3 de junho de 2010

O Tormento de Deus (Parte III e final)



Nas sombras ergue-se discreto um olhar de um vulto. Absorto pela dor que contempla, fixa os seus olhos no cordeiro, enquanto este é arrastado pelos verdugos, segue a procissão do seu calvário com ansiedade. Está entre sombras, o espectador, estático e mudo de pesar. O medo verga-o até ao chão, para lá da linha do horizonte perdido, onde a fé dos homens se desvanece entre o frenesim das hienas e abutres. Fede a morte. Tornou-se morte. Morte de toda a fé dos homens, perdido num horizonte longínquo, a vogar desolado, entre risos de escárnio e vigílias dos oportunistas. Está perdido, o vulto, dentro das sombras que infestam a sua mónada, agrilhoam seu corpo à pesada pedra, que se afunda, afunda no negro abismo, afunda no rio que a todos nos aguarda. E o mundo, envolto em gritos dos condenados, arde em violentas chamas. Tudo isto ele agora pode ver e sentir, dentro de si, para além do seu olhar, perdido no horizonte indefinido.

Passa o cordeiro, espalha o sangue entre as pedras do caminho, aspergidos de sangue e desespero, os espectadores do calvário atónitos, estáticos ou em desespero assistem ao principio do fim dos tempos. A ilusão desenvolve-se nas suas mentes, entre frémitos inquietantes quase orgiásticos, atropelam-se, agridem seu irmão e espezinham sua mãe por um lugar à frente, na prima linha, para sentir o cheiro do sangue, o cheiro do desespero, tocar nas vestes do acossado Messias. O nosso coração está preso por uma linha, essa linha é a correnteza do rio que nos aparta. E o que nos aparta, é a morte. Morte de toda a fé, fé na morte do cordeiro. Fé que a morte do cordeiro nos salve, que Deus seja apaziguado de toda a sua fúria, pois Ele é seu Filho, feito à Sua imagem e semelhança, mas agora caminha para o tormento final, seu e de seu Pai, a desolação que a todos nos une e aproxima, a assembleia de testemunhas prepara-se para o julgamento, decreto da pena, condenação, castigo e eterna absolvição. Pois o cordeiro carrega em si todos os nossos pecados, pois o cordeiro leva em si a marca da pureza, pois no cordeiro depositamos a nossa fé, de que os dias do futuro serão de bonança e abundância, de paz e amor, de liberdade e solidariedade, de união entre os povos, de redenção de todo o mal oferecido pelo Anjo caído.


Mas o vulto, entre sombras sabe que não será assim. O vulto, devorado pelas sombras, conhece a razão do desgosto dos céus, ele é a raiz do tormento que enche os céus de fel e pestilência. Esgueira-se para a frente do espectáculo, assoma o condenado e perfila-se diante dele. Embebido em torpor, tenta em vão dirigir-lhe uma palavra, dar um passo em frente, fazer algo que seja para capturar a sua atenção.


Cordeiro de Deus, porque não suplicas por tua vida?


E enquanto atravessa toda a vila, com a morte ao seu lado, entre gritos animais e desespero, entre a farra da decadência dos que exultam o seu sacrifício, o cordeiro claudica. Definha a linha de tempo que desafia toda a lógica, esquecem-se os homens de sua fé, abandonam o Paraíso, renegam a Mão divina que se estende e condenam as suas almas ao inferno. Assentes na fé cega e temor aos céus, os dias do futuro serão assim, conduzidos pelas bestas de força, entre gritos e chamas, por entre a luxúria e ganância, loucura e sede infinita de poder, homens que irão devorar a terra e tudo que há nela e os fracos jamais irão herdar a Terra do Senhor.

E ao contemplar a cruz, onde ficará entronizado para a eternidade, o cordeiro recorda a decisão que tomou, em consciência, há três noites atrás…

(...)

- Tudo faria por vós, tudo farei por vós. Mesmo que se abata sobre mim a ira do Senhor.
- Judas, perdoa-me, pois este fardo não é teu para carregar, mas eu não consigo nem posso, meu irmão, não está ao meu alcance abraçar os desígnios do Pai dos céus, não serei o ungido que apregoam, pois não acredito em meu coração que deverá ser pelo medo e dominação que o homem chegará à iluminação. Sou um mensageiro, meu irmão, um adornador da realidade, mas não sou o salvador que o mundo quer recordar como a água que lava todos os seus pecados, aquele que será recordado sob a cruz. Mas tu meu irmão, és abençoado, o verdadeiro filho pródigo. Pois em teu poder está a minha libertação e a de todos os homens de fé. Terão o seu Messias e eu serei livre para desaparecer da face do Mundo e da memória dos homens. Quem sabe assim, vestindo outras vestes, mudando de nome, exilado noutras terras ainda poderei trazer ensinamentos aos que vivem sem a palavra de meu Pai. Preciso de ti irmão, preciso desta oportunidade de me transformar, abandonar a pele do cordeiro e ser eu mesmo, livre da Sua mão em meu ombro, só perante o mundo, aluno e mestre, visitar outras paragens e gentes, espalhar a palavra de que o poder não está nos céus mas sim na mente e coração de cada um de nós. Amo meu Pai, mas morrer para ele e por todos quantos me bajulam em nada irá servir. Deus está só, no seu trono, entre música das esferas e adulação dos anjos. Mas em terras estranhas vi povos que muito sabem de outros conhecimentos e nada sabem de meu Pai. Preciso de descobrir a razão, a raiz da sabedoria, banhar-me na filosofia e renascer para o conhecimento, a verdade da matéria e do pensamento. Para além da fé, deverá existir outros mundos. Por isso, preciso de ti, ó Judas, que aceites o supremo sacrifício e lhes dês a fé que pensam precisar. Pois eu tenho que descobrir se outro futuro é possível.

- Por ti, Jesus, cometerei a suprema heresia. Agora ajuda-me meu irmão, chegada é a hora da transformação. Adorna-me com tuas vestes e ilumina a minha face. Por Ti, serei o cordeiro!

Naquela noite, Deus perdeu o seu filho. Pois tão grave seria a farsa que para toda a eternidade iria viver em profundo tormento. Deus todo poderoso olhou para baixo e perguntou-Se: Filho, porque me abandonaste?

Nas sombras ergue-se discreto um olhar de um vulto. Absorto pela dor que contempla, fixa os seus olhos no cordeiro, enquanto este é arrastado pelos verdugos, segue a procissão do seu calvário com ansiedade. Jesus, o Cristo, devorado pelas sombras que dissolvem a sua fé, conhece a razão do desgosto dos céus. Esgueira-se para a frente do espectáculo, assoma Judas, o condenado, e perfila-se diante dele. Embebido em torpor, tenta em vão dirigir-lhe uma palavra, dar um passo em frente, fazer algo que seja para capturar a sua atenção. O falso profeta cruza um último olhar com o falso cordeiro, enquanto os seus carrascos o prendem à cruz.

De Profundis Clamo Ad Te, Domine. Das trevas apelo a ti, Pai. Recebe este cordeiro em sacrifício, sem desonra nem vergonha. Condena-me a mim, que tenho dúvidas, condena-me a mim que serei fraco e egoísta, pois esta será o meu legado menor, o fruto das sociedades vindouras, o princípio do final dos tempos. Vaguearei muito para além do Vale da Morte, sem bordão, sem compaixão. Escreverei no pó a tua história Pai, para nunca ser encontrada, lida ou contada. Pois acredito profundamente que haverá outro caminho para os homens, para além da fé e da entrega a algo que só podem sentir, nunca ver ou tocar. Preciso de saber Pai, como vivem e porque vivem aqueles que durante eras passadas, nunca tendo ouvido falar de Ti, são sábios e prósperos. Partirei para Oriente e irei indagar entre homens de lei e de filosofia, sábios, artífices, monges e mestres. Tenho que saber, Pai, o que há para além de Ti, pois eu, nada sei, nada sou e no entanto sei que nada sou perante a grandeza de tudo aquilo que me transcende. A iluminação poderá estar para além da crença, tenho que saber, ou morrer a tentar descobrir.

Atormentado e em desesperante agonia, o Pai revolta-se contra os pecadores, cegos, estúpidos e imerecedores de seu reino. Foram incapazes de ver para além da pele do cordeiro, incapazes de perceber quem era o Seu filho, incapazes de perceber, entender e guardar a mensagem, incapazes de separar a fé da realidade. Mas este era o Plano, um mundo em que o homem se deveria desconhecer a si mesmo e, cego, oferecer-se à palavra imutável e inquestionável do Senhor. Todos aceitavam o Plano, menos o Seu próprio Filho. O céu está em fúria e para sempre, fechado.

A humanidade, dominada pela força da fé e da vontade em crer nas palavras duras de quem nos queira dominar, conhecerá o seu esplendor, subirá ao mais alto patamar de Babel, para depois cair, cair no abismo das trevas, apagar-se de Sua memória, num último extretor, devorada por chamas, o Mundo que assentava a sua ordem na fé, doutrina e jogos de poder terminará em gritos…




Resta-nos a esperança que, algures em suas viagens, o destronado tenha colhido e semeado um admirável mundo novo, que irá brotar das cinzas do caos e destruição para onde caminhamos. Então, em Glória, Igualdade e Fraternidade, fundaremos um novo e harmonioso reino, assim na terra como no céu.

4 comentários:

  1. Todos os pormenores estão primorosos: o Judas que se entrega ao sacrifício e não trai; o Jesus cem por cento filho do homem que procura respostas em vez de dá-las e que enfrenta a ira do pai pelo fogo do conhecimento; o Deus ultrapassado que se revolta com o facto dos homens não verem para lá da fé...
    Subversão total...Adorei, claro.

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  2. excelente!!...de muitas coisas... tantas que nem posso saber onde isto me vai levar, mas com certeza para ainda mais perto de mim e do proximo...adorei.

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  3. "Misericordia tua magna est super me". Foram as primeiras palavras que me surgiram na cabeça.
    Nuno, que força detém o teu baú da cave :)

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  4. ´
    Há fé, a fé incutida por um Deus que faz dos homens os seus escravos. O poder do Pai não pode ser contestado. Há que torturar o cordeiro, fazê-lo sentir a dor pelos pecados cometidos, retomar o Poder sobre os homens. E estes assistem ao espectáculo, como os espectadores das arenas de Nero assistam, com pesar, à morte do homem. Tão falsos como eles e, como eles, tão verdadeiros, porque não sabem da sua manipulação.
    O vulto sabe, suspeita, recua. É o simbolo da verdade. Mas não sabe que Judas tomou o papel do cordeiro, para permitir um mundo melhor.
    Um mundo dominado por um Pai, que tortura o Filho para manter o medo.

    Mas há um vulto, que és tu, eu, outros. Que observa, que tenta intervirir. A fé é uma fraude,um filme, um matrix. É na fé, no pecado, na culpa e na redenção que reside o poder do Pai.

    Mas o Filho vai mais além. Judas é um falso cordeiro, e por isso traiu o seu mentor, em nome da verdade.

    A traição é a traição a uma verdade exclusiva de Deus. Que nos aprisiona. Por isso Judas não é traidor. Só ao Deus supremo e egoista, que impede o homem de trilhar outros caminhos.

    E é isso que o homem, feito Filho, pretende.

    Fernanda Guadalupe

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