domingo, 10 de outubro de 2010
(Im)Pura
Lava-te. Não te quero assim impura. Nem te reconheço, quase... não pareces tu. Quero que a água te dissolva a mágoa e o cansaço, as olheiras e o sal seco das lágrimas, as palavras e as marcas do mundo lá fora.
Quero que venhas lavada e nua até mim. Quero-te em jejum de sentimentos e nutrientes. Quero-te pele e osso, vazia por dentro, como um tambor onde as minhas mãos possam ressoar. Quero o teu silencio de neve a cair. Branca e imaculada. O teu silencio de sempre, vazia como sempre.
Nem pareces tu...
Gosto que não adormeças nos meus braços e fiques toda a noite de olhos abertos no escuro, os teus olhos rasgados sem nada dentro. Gosto de olhar para eles e não saber se mora lá alguém.
Estou cansado de gente que chega com bagagens e passado e invade todas as divisões da minha casa com escovas de dentes, livros, fotografias, roupa, recordações de infância, animais de estimação que me odeiam e que eu odeio, opiniões, jarras de flores, dedadas no vidro, migalhas no chão, promessas de amor eterno, palavras e mais palavras e mais palavras que, às tantas, parece que nunca vão parar e se transformam numa massa sonora disforme ao fim dos 30 primeiros segundos. Estou cansado de pessoas que dizem que me amam e que me abandonam ao fim de uns meses, com indicadores espetados e acusações de que não me abro. O que há para abrir? Não gosto que me abram nem gavetas nem armários nem a porta dos pensamentos.
É por isso que te amo, sabes? Quando rodo devagar a fechadura para te abrir, tu não estás lá dentro. Só há uma divisão branca e vazia, de janelas abertas e cortinados a voar ao vento, o sol da manhã a entrar por elas e o teu cheiro. Quando rodo a fechadura para te abrir, fecho os olhos e inspiro o teu perfume de fantasma. Não preciso de mais nada. Depois sim, posso finalmente entrar em ti. E apesar de não estares, sei que estou em casa e tudo se passa em câmara lenta, o tempo suspenso.
Mas hoje nem pareces tu... Vens com lágrimas. Cheiras a incêndio. Rodo a fechadura devagar e de repente estás lá dentro, parada no meio da sala a olhar para mim com um olhar de ressentimento. Não te reconheço, aí a tremer. Há palavras a sair da tua boca como nuvens de vapor mas sabes bem que não consigo condensa-las e entende-las.
Porque choras? Lava-te primeiro e depois deita-te ao meu lado. Há demasiada informação em ti hoje. Estás impura. Quero entrar em ti e não te encontrar, só ao teu cheiro a manhãs de neve. Fria e imaculada.
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Bicho d'Ouvido, os teus textos mexem sempre com algo muito interior, profundo... Depois de ler, levo as tuas palavras e fico a pensar nelas, a ver mentalmente a estória a acontecer. Inquietante, muito. Bom, muitíssimo!
ResponderEliminarHá um certo ambiente cultural japonês neste teu texto, imagino-o a decorrer entre quartos com portas de correr com papel de arroz
ResponderEliminarFiquei com vontade de acompanhar mais os teus personagens, isso acontece-me com frequência nos teus textos. Para quando um LP?
se escondemos partes nossas que trazem Dons, que trazem a força da nossa natureza... da nossa essência, estamos interrompendo o fluxo... e impedindo a manifestação plena da abundância...escreve Bichinho d´Ouvido!!:)
ResponderEliminarMergulho na tua escrita e respiro. Melhor do que fora d'água.
ResponderEliminarÉ um envolvimento em que me sinto personagem e narrador. Entro, actuo e (não) saio.
Entras e...permanece(s).
Adoro ler-te.
Muito preciso, como sempre.... sem redundâncias, sem lirismos desnecessários. Com muito espaço em branco na página para destacar apenas o que interessa. E o que interessa é belo. Excelente
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