Quadro III – O Valor dos Homens
O dia ainda se espreguiçava no horizonte gelado, as ervas vergadas sob o peso da orvalhada serviam de testemunha à noite fria dos dias antes da lua nova. Estava na altura de partir em missão.
Os dois batedores avançavam por entre o matagal espinhoso, em busca dos ambicionados troféus, a prova de que são guerreiros de valor, os mais bravos entre seus pares. À medida que se embrenham entre a vegetação cada vez mais densa e o Sol aquece sob os seus ombros sabem que é hora de entrar na floresta escura, onde existem menos probabilidades de serem vistos pelo homem-branco. Esta vil e traiçoeira criatura, tão parecida com os seus irmãos de tribo e, no entanto, tão diferente. Ele não é como o Lobo que caça para a sua tribo quando precisa, ou como a cobra que se defende com presas venenosas quando acossada. Ele é mais como a chuva violenta do princípio da Primavera. Se a aldeia estiver no seu caminho quando esta surge a correr pelos desfiladeiros é engolida sem piedade, para nada mais restar, pessoa, casa ou memória.
Ouve-se um ronco baixo e profundo para além das árvores. Estamos no território do puma, o feroz leão-da-montanha… Aqui não é terra para principiantes, olhos, nariz e ouvidos não chegam para sobreviver, as mãos não são tão lestas a disparar a flecha e os pés trocam os passos por entre a folhada e os rochedos que afloram escondidos entre as moitas floridas e prenhes de néctar. Esta é a vida do batedor, a vida na fronteira e para além dela, da fronteira da terra, da fronteira do medo e da alma. Para lá da encosta há terra nova, quem sabe boa para milho e inhame, com água fresca a correr, boa para caça pequena que encha o pote ou até uma via de passagem das grandes manadas de bisontes. Mas para já, tem que lidar com o ronco, o medo e a expectativa…
O prémio para quem levar a pele da besta é a pena maior da ponta das asas da águia, um símbolo de virilidade e estatuto que qualquer homem deseja. Assim, os dois batedores desenham o plano e decidem agir. Agora, não haverá lugar para passos em falso, para pingos de suor que sublinhe o odor dos dois homens. Concentração máxima. Atenção aos detalhes. Rigor, disciplina e coração a bater como um tambor de guerra. O mais experiente retesa o arco e aponta a flecha para a orla da floresta. O ajudante rasteja em total silêncio em torno da fraga onde o portentoso animal descansa, a fim de o surpreender e assim assustar o senhor da montanha.
O momento adensa-se e o tempo pára. Num segundo serão heróis ou presas… Falta só mais um esforço… um metro para rastejar e um tiro certeiro… 3… 2… 1…
(…)
Nessa noite, dois irmãos de 8 e 6 anos regressam a casa, de sorriso largo e expressão de quem venceu a maior batalha da sua vida. Como heróis, entram em casa e beijam o avô, um antigo chefe Pikuni, conhecidos pelo homem-branco como tribo dos Pés-Negros. Inspirados pelas histórias de batidas e caçadas dos idos tempos de glória, as crianças contam como foi hoje caçar o grande puma, enquanto erguem em mãos o seu gatinho de estimação, que hoje foi a estrela no filme que decorreu ali mesmo atrás, a poucos metros do seu quintal. Juntos riem-se felizes e pedem ao avô para contar mais memórias de um mundo entretanto extinto…
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Um texto muito rico, cheio de cheiros e sons e imagens fortes. como uma curta-metragem que o leitor vai fazendo na sua cabeça. Gostei do final. Adorei a banda sonora. Parabéns.
ResponderEliminarOs actos destas "memórias" estão a sair muito distintos. No primeiro há uma tristeza, que no segundo se transforma em amargura e no terceiro em doçura. Em comum a tua escrita carregada de imagens e as tuas fantásticas personagens. À espera da quarta parte...
ResponderEliminarDeliciada, enrosco-me na manta polar e ..espero por mais... :-))
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