Quadro IV – Glória
Enquanto as maças adoçam ao sol do fim do Verão
Os sorrisos das crianças elevam-se por entre nuvens e brisas frescas
O cheiro a terra lavrada enche-nos de esperança e conforto
Algures, para além dos limites da nossa existência, existe algo maior
E lá, não haverá morte
Tu e eu poderemos deambular pelo parque da cidade
Longe do terror dos céus de metal
Para lá do alcance dos gritos de desespero
Para lá das balas, da lama das trincheiras, do meu sangue nas tuas mãos
Para lá do desespero de sobreviver, que nos corrói e mata em vida
Para além do olhar de quem assiste ao nosso último momento
Envolto no riso imortal das crianças que nos rodeiam, felizes
Longe dessa amargura que te irá matar,
Longe do campo de batalha, onde me sobreviveste
Perto do sonho
Eu e tu, meu irmão, todos nós
Seremos um só
Quando a chuva me escorrer pela face e cair a meus pés
Quando o som das minhas palavras for como a seda dos teus beijos
Quando o dia nascer, finalmente limpo e luminoso
Eu serei como me desejaste, minha querida
O prometido
O dono do teu primeiro beijo
O amante que te cobre os pés de flores silvestres
O marido dedicado que te seca as lágrimas
Quando eu redescobrir o que é sonhar
Irei renascer, a teu lado
Permanecer
Envelhecer
E, feliz no embalo dos teus braços,
Morrer
E o sabor das maças será mais doce
E as nuvens mais altas, inalcançáveis
A terra transbordará de vida novamente
Como no mundo imemorial das histórias do meu avô
O espírito dos homens voltará a ser uno com a da Natureza
E seremos filhos de algo maior
E não mais, nunca mais
Deixaremos que esta batalha nos ensombre em esquecimento
Mas o barco partiu e voga por entre a tristeza e a despedida
Eu ficarei, entre ciprestes, de mão dada com os meus irmãos de armas
Certos de que cumprida foi nossa missão
E em profunda exultação, ascenderemos ao Paraíso
Longe deste marisma de morte e horror
Para lá do inferno dos homens, regressaremos
Unidos, como verdadeiros irmãos de sangue
Abandonaremos os corpos destroçados que nos prendem
E assim partiremos, sem dor
Sem temor
Regressaremos ao berço da eternidade
Como heróis
E num último fôlego
Gritaremos
Glória!
Glória!
E eternamente nosso será o reino dos Céus
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Épico. "Nós, que estamos prestes a morrer, vos saudamos." É quase uma coisa de Valhala.
ResponderEliminarExcelente série, na sua riqueza e diversidade de cenários e personagens.
E ao fim de tanto tanto tempo continuas a surpreender-me e os teus textos continuam muito depois da leitura, na memória a remoer. :)
ResponderEliminarMuito inteligente este patchwork, que afinal é uma manta só. Brilhante. :)
"Whether you come from heaven or hell, what does it matter, O Beauty!", said Baudelaire. Incredible work about war, about death, about life.
ResponderEliminarActos. Senti-me uma marioneta que se deixa guiar pelas linhas/cordas dos teus textos. Um diz para caminhar devagar, outro diz para sentar e ouvir, outro diz para correr, outro diz para sorrir. No entanto, fica sempre espaço para o leitor saborear, para ser ele a puxar as cordas do seu pensamento. E isso é muito bom, muito bom mesmo :)
ResponderEliminarjá li este texto 3 vezes, e consegue surpreender me sempre...tanto que cada vez que o leio é como se lhe tivesses mudado ou acrescentado alguma coisa nova...muito bom mesmo!!
ResponderEliminarCerto que é teu o reino dos Céus e toda a gloria conquistada.
ResponderEliminarEnquanto redescobres o sonho, vences cada batalha, impedindo a Guerra e amas ao som das lágrimas que amparas com flores silvestres.
Belas são as palavras com que (con)corres com os deuses.
Gostei tanto, tanto.