quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O Anjo Destruidor (em III actos)

Parte III



Cena I – Este

Quando eu olho em direcção a nascente pela manhã e vejo o Sol erguer-se lentamente em todo o seu esplendor sei que o novo dia existe, que não é um mito nem um conto de fadas. Sinto-o na luz ténue da aurora de Inverno que me retrai as pupilas, assustadas com o negro da noite que parece nunca acabar, ansiosas por saber o que se esconde entre sobras e murmúrios. Oiço-o no chilrear das aves e no restolhar das folhas, animadas pela expectativa de um novo dia. E nada é mais valioso que um novo dia.

A não ser que nos encontremos num canto escondido, esquecido e perdido entre as horas e os dias que não passam. Ai, não existe um novo dia e o Sol… o Sol é apenas uma ilusão.



Cena II – Sul

Ela chegou hoje e a primeira impressão que teve foi de medo. Medo por falhar, medo por não saber e ser apanhada. Medo que lhe façam mal e medo de lhes fazer mal. Mas quando passa pela porta não mostra medo, oh não… Mas também não mostra segurança, hesita. Pensa e repensa cada passo, cada gesto e hesita. Hesita quando lhe pedem o nome e ao que vem.

- Viviane I., sou enfermeira e começo hoje aqui na Instituição. Venho do Hospital de Santa Maria, onde terminei na passada semana o internado de especialidade e…
- Muito bem menina I. siga directa para o 3 piso e procure o gabinete do Dr. Nathaniel N., leve estes papéis e pode dar início ao seu processo aqui na Instituição. Não se esqueça, piso 3, ala de Psiquiatria.


Viviane sorriu, abriu os olhos em sinal de excitação pelo novo futuro que se ia começar a desenhar passo a passo, à medida que subiria aquelas escadas.


Cena III – Norte

Onde está o meu menino? O meu querido menino… ele estava aqui à minha beira, brincava com os seus bonequinhos, sorria para eles, fazia jogos e teatros que eu nunca percebia, mas eu sei que ele gosta de mim, como eu o amo a ele, nunca lhe faria mal. Aliás, que mãe é que pode desejar mal ao seu menino? Só uma mamã muito má, uma mãe horrível, um monstro!

Ele é o meu anjo, Deus que mo deu e ama-me muito, como eu a ele. É por isso que me está sempre a chamar… mamã, mamã, MAMÃ! Não me deixa dormir, nem me permite descansar, porque me ama e me quer perto dele, a velar por ele, a brincar com ele, mesmo que ele chore é porque sente a minha falta. Por isso me chama, mamã, mamã…

Mas onde está o meu menino? Estou desorientada, desnorteada, pensei que ele estivesse sozinho, mas oiço a rir e a falar, espreito pela porta entreaberta e vejo-o, pequenino, a passar as páginas dos seus livrinhos e a murmurar, murmurar… e quando me vê irrita-se, grita, chora, eu incomodo-o, sou má mãe… eu pego nele, como uma mãe deve pegar, com força, muita força… amo tanto o meu menino…


Onde está o meu menino, o anjo que Deus me deu e que me veio destruir…

Porque me sinto tão só?



Cena IV – Oeste

- Enfermeira I., seja bem-vinda à Instituição.

- Obrigado Dr N., como pode ver pelo meu processo e carta de referências, é com muita confiança e vontade de trabalhar que chego a esta equipe, saiba o Dr. que estarei sempre disponível para dar o meu máximo e ajudar como ach…

- Sra. Enfermeira, não vale a pena estar com esse discurso, aqui de nada lhe vai valer estar disponível ou indisponível, a Instituição não quer saber de si em boa verdade, quer vê-la a fazer o que tiver que fazer. Escolheu a ala ocidental, a ala Psiquiátrica, tem noção do que isso significa? Não tem, seguramente, ou então pensa que o seu lugar é aqui pelas piores razões possíveis.

- Dr. N., asseguro-lhe que…

- A menina não me assegura coisa nenhuma. Cheira a medo, tresanda. Consigo ver para além desses seus olhos ansiosos e agora gelados. Menina I., sei que não está preparada, ninguém está, nunca. Tenho mais anos de Instituição do que a menina de vida e continuo a sentir-me desamparado e perdido, não há dois casos iguais, cada paciente é uma história de vida e cada um tem segredos que a Enfermeira poderá não aguentar quando descobrir.

- Dr. N., com o devido respeito, está a subestimar-me. Sei o que sou, quem sou e sei que nada sei, tenho um mundo por descobrir, mas esta é a minha missão: servir os outros, pois só assim serei livre.

- Muito bem, muito bem. Então por onde quer começar a sua primeira ronda: pelo agorafóbico que ficou 16 anos sem sair de casa, pela anoréctica com comportamentos de cutting ou pela mãe catatónica que a única coisa que sabe dizer é que ouve e sente que o filho que ela própria sufocou está por todo o lado mas que nunca sabe onde ele está?

5 comentários:

  1. Há situações difíceis de imaginar... como sendo reacções possíveis de uma pessoa. Inquietante, sem dúvida, ao bom estilo "NO". Muitoo bom, Der Überlende. Afinal, quem é que na realidade nasceu para escrever? :)

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  2. Leio, releio...este blogue é uma lufada de musica fresca.
    E sim, tantos que felizmente são nascidos para escrever e ao escrever me fazem renascer.
    Gracias...;-))

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  3. Cada acto vale por si, isoladamente. Cada acto conta a sua história e os três em conjunto contam outra, diferente.... E ainda há lugar para sermos nós a preencher os espaços em branco (ou em negro...) Muito bom, como sempre.

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  4. Talvez por isso, por dar tanta importância às palavras, muitas vezes prefiro o silêncio. Gosto muito de te ler.
    Muito muito bom!!!

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