domingo, 16 de janeiro de 2011

O Contrato Social (Parte I de III)

Parte I: “Minha Senhora, desejo o livro de reclamações”




Acto I - Prelúdio


“Ring-a-ring-a-roses,
A pocket full of posies;
Atch-chew, atch-chew
We’re all tumbled down”

Oh poeta, visionário,
Crente em nada
Teu era o número,
A Europa caiu aos pés do invasor,
666
A doença, a Peste
Levou-os, entre rosas e cinzas



Acto II – A vida como sempre a conhecemos durará para sempre


Cena I

- Minha Senhora, desejo o livro de reclamações!
Tinha chegado ao seu limite, ela, que até era ponderada, calma. Naquele dia simplesmente não aguentou mais aquela afronta, ser tratada como uma cadela e ter que engolir? Chega, chega de ser delicada, polida, civilizada. Aquela gente do café não merecia, eram rudes com ela, não suportavam a sua face deformada pela paralisia infantil e fingiam que não a viam, tardavam em a atender, como se ela tivesse a peste. Mas nesse dia, ela não aguentou mais e sentiu que não deveria de todo engolir e calar. Há coisas que têm que ser ditas!


Cena II
- Senhor Eng.º pode subir ao escritório do Director? Ele está à sua espera, de imediato se não se importa.
O jovem homem, certo que nada bom o esperava, subia as escadas ao compasso do desassossego que caracteriza a rês que trespassa a porta do matadouro. Estava ali há três meses, era o seu primeiro trabalho, um estágio profissional numa empresa de despachantes. Despachado ia ele ser hoje, disso tinha a certeza, pois a altura é de crise, o terror paira no ar e ele sabe que é descartável, é apenas um miúdo. Um miúdo que sobreviveu nas ruas à sua custa, que trabalhou como servente nas obras, empregado de café, segurança de bar de alterne, tudo para pagar os estudos que os pais, pobres agricultores desamparados das berças nunca poderiam pagar. Ele que viu a irmã cair na teia da prostituição, primeiro por dar-se com quem não se deveria de dar, como era o caso do “amigo” com que trabalhara na segurança do clube de diversão para empresários, era assim que o intitulavam. Ao princípio era tratada como uma menina fina, depois, com os copos e o pó, foi-se deixando abater sobre o solo que lhe fugia dos pés, começou por servir às mesas e pouco depois servia aos quartos. Agora, serve-se quando pode do cocktail de comprimidos para o tratamento da infecção retro-viral…
O jovem homem engolira tanta coisa, humilhações, privações, desilusões… tinha mil anos e cada passo das escadas pesava-lhe uma tonelada, as pernas vergavam sobre a fúria cega de ter que aceitar mais este castigo, estalava o chicote do algoz e a rês permanecia muda, mas o sangue fervia, o fel escorria e a garganta secava de ansiedade, Ele não ia subir ao cadafalso e simplesmente tombar, estava saturado de tanto abuso, de tanto se vergar.
Entrou, sentou-se e ouviu. Ouvia com atenção e subserviência, as mentiras enleadas em fios de seda para parecerem reais, não no sentido de representarem uma realidade, mas sim o tom de realeza, o Senhor agia, gesticulava e seguia num sentido solilóquio enquanto mostrava ao cordeiro que ele iria salvar os pecados da empresa com o seu sacrifício.
Afinal de contas, era demasiado para aceitar. Ele merecia aquele lugar, não era certamente culpa sua que a empresa estivesse a afundar. Muito teria contribuído para isso a vida de despudor feudal do Director, sempre em altas andanças e putaria. Quem sabe se até não andou pelo antigo clube por onde ele trabalhou? Quem sabe não foi um dos vermes que se enrolou na sua irmã? Mas porque ter que aguentar isto tudo? Era como se uma febre louca se apoderasse dele, perdia o controlo e queria ceder ao impulso que urgia satisfazer.
O jovem homem não suportava a ideia de ter que se vergar aquele senhor e tudo o que ele representava e, em boa verdade, não achava que teria realmente que o fazer. Levantou-se e interrompeu a verborreia que já se alongara demasiado. Olhou o director nos olhos, pegou na lâmina de abrir correspondência e disse-lhe, sem hesitar:
- Agora basta. Chegou o momento de alguém lhe mostrar quem você de verdade!


Cena III
Hoje não lhe apetecia fumar um cigarro. Hoje nem lhe apetecia fazer sexo mas lá lhe acedeu. Hoje não se veio nem fez de conta que se vinha. Quando ele saiu de cima dela e se deitou de barriga para o ar ela esperou dois minutos e disse-lhe ao ouvido:
- Eu nunca te amei. Case contigo por dinheiro, por segurança, pelo luxo e vida social.
- Não te percebo… porque me dizes isso agora, dessa forma?
- Não sei, tive que o fazer.


Cena IV
O tribunal emudeceu. O que tinha sucedido era inenarrável, impensável. As pessoas olhavam à sua volta incrédulas, mudas e assustadas. A meio do julgamento de um caso sem qualquer interesse, uma ridícula burla empresarial mal ensaiada, uma entre tantas, o juiz interrompeu e perante todos assumiu que era corrupto e que manipulava os processos conforme lhe fosse mais favorável ou proveitoso. E de seguida dera um tiro na têmpora com uma arma que havia escondido dentro do bolso da batina…


Cena V
A meio do noticiário o pivot congela. A única frase que sai dos seus lábios ao fim de mais de um minuto de silêncio aterrador foi: “É tudo mentira, tudo uma ilusão”.
A emissão caiu, entra no ar um fundo patriótico com a seguinte frase em destaque:
“A emissão segue dentro de momentos”


Cena VI
Lá fora, o mundo estremece e por todo o lado as pessoas começam a dizer tudo o que lhes vem à cabeça, sem qualquer filtro, medo, respeito ou pudor, tudo porque não conseguem mais mentir, esconder ou evitar as palavras. Aqui e ali ouvem-se tiros e sons de destruição. Pelas ruas correm pessoas assustadas e outras estacam catatónicas.



Cena VII
A noite avança e definha. O Sol irrompe no horizonte desfeito.
O dia amanhece vermelho...

4 comentários:

  1. Dizer o que pensamos, sem filtros, sem cortesias, não é? Nesse caso.... Parte II right now!!

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  2. Epah.....
    Epah.......
    Epah.........
    Raios partam o miúdo que escreve como o caraças!!!!! ;)
    EXCELENTE!!!!
    MAIS!

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  3. penso que te posso entregar a caixa...mestre da escrita,quem escreve assim só pode estar de coração cheio:)) excelente!!!

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