segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O Contrato Social (Parte II de III)

Parte II: João 8:32



Cena I: Daltonismo
A vida é a cores. Uns vêm verde e suspiram por mudança, outros preferem o amarelo e enfardam gorduras saturadas ao som de rádios popularuchas. Muitos preferem o azul, pois tem miríades de tons, brilhos, nuances, preenche os dias e salpica-nos a imaginação com sonhos e ilusões. Dizem que é a cor preferida dos mágicos e místicos, pois esconde muito mais do que revela. Há também os que preferem que tudo seja cinzento, assim não terão que tomar nenhuma decisão, ao contrário dos que vivem no branco, eternamente ansiosos por preencherem o vazio com mil milhões de pequenas e absurdas tarefas, o quotidiano preenche-os e garante-lhes que o vazio permanece, verdadeiramente, vazio. Negro, tantos há que nada vêem porque tudo o que tocam, sentem ou perspectivam é negro. Não saberão que o negro não existe? É simplesmente a ausência de luz, de algo que não brilha, que não emite energia, de algo vazio, só e inquietante. Escolhem o negro por isso mesmo, é mais fácil ser-se vazio do que preencher a vida com experiências e sentimentos dolorosos. É melhor estar só do que partilhar o que somos, pois quando o que somos não é nada, nada haverá a partilhar se nada tivermos para oferecer. E isso inquieta-os, deixa-os à beira do colapso e exorcizam toda a cor que deveriam usar para comunicar com os demais, perdidos entre o colapso do branco e o devaneio do vermelho. Mas ainda não vos falei do vermelho, é a cor da violência, do descontrolo, do frémito impaciente que trepa pela espinha e gera um pensamento absurdo, que nos leva a cometer crimes e a ser sôfregos pela carne, sôfregos pelo dinheiro, sôfregos por tudo o que não temos mas certamente merecemos. Vermelho, sangue, fogo, luxúria.
Um erro clássico, contudo, pois tudo depende do olhar de quem contempla… As cores não são mais do que referenciais, ícones de aquiescência consensual, redigidas por maioria qualificada e intransigente. Entre o branco e o negro não haverá grande discussão, mas se para mim não for assim? Se para mim for o vermelho que me enche de esperança e me faz sonhar com um admirável mundo novo? Que tipo de homem serei eu?

Onde está a verdade então?



Cena II: Eva
E Deus disse: “blah, blah, blah…”. De facto, não disse nada, ou se disse não interessa, porque não estava lá ninguém para O ouvir. Mas algo aconteceu. A génese não é um mito, ou onde estaríamos nós sem Deus, Criador, Universo, gerador de tudo, o bom e o mau, o eterno e o dissolvente, o saber e o mortal. Do Homem, Deus criou o Homem, imagine-se para quê, até porque é sabido que o Senhor do Infinito tem os seus caprichos, aniquila a sua criação de quando em vês e reinicia o jogo, com novas peças e regras, novos cenários. Para isso, basta-Lhe criar um acidente, uma causalidade, um “ups…" cósmico e lá vamos nós, mais um click-click-click-click na roleta russa e, de olhos bem fechados, rezamos para que não se oiça um grande grande BANG!

De todos os Nobres que regem o Universo Infinito, aquele que governa a parte do espaço que nos diz respeito, a quem damos o nome de Deus, seja em que idioma for, é considerado como um dos mais competentes, criativos e interventivos. Os outros Nobres, que nós desconhecemos inteiramente por vivermos na profunda ignorância que o Mundo não vai para além do que os nossos miseráveis sentidos e pueril mente conseguem projectar, variam bastante em forma e feitio, alguns são fortemente interventivos e jogam com a Criação como se fossem peças de xadrez. Outros são simplesmente ausentes, foram comprar cigarros a uma qualquer tabacaria cósmica e deixaram os filhos à espera de um retorno que tarde ou nunca acontecerá. Os seus Mundos giram descontrolados e fora de compasso, colidindo entre si e gerando o caos que dará forma à nova matéria, que se transformará em novos mundos, com nova Criação e assim por diante. Mas o nosso Senhor é de outra estirpe, mais do que o Criador, é um Criativo. Gosta de intervir, criar cenários e situações estranhas e observar como se comportam as criaturas. Mas, lá está, aqui é imbatível, não gosta que O detectem, está e não está, é com uma onda de calor, todos a sentem mas ninguém a consegue agarrar, tocar, guardar junto de si. Mas inunda as criaturas, deixa-as presas à crença de que o Pai as salvará mas, se não o fizer, era porque seria então essa a Sua vontade. Cheque e Mate, não há como perder este jogo.

De vez em quando, Deus franze a testa, rói a unha do polegar esquerdo enquanto reposiciona as peças e tenta deste modo relembra as criaturas de que ele está ali, o Imanifestado Omnipresente, ora absorto ora obcecado.

O Senhor dos Tempos olha para uma pequena e bela criatura, formosa e doce e chama-lhe Eva. Ela irá gerar uma nova vaga por entre o mar revolto da Humanidade. Eva trás um presente para todos nós.

O Todo-Poderoso decidiu, o jogo vai começar. Aliás, é um jogo bem curioso, não adivinham qual é? Por mais incrível que pareça, não foi Deus que o inventou mas sim… o Homem. É divertido, arrebatador e gera as reacções mais genuínas nos pequenos seres que fermentam como leveduras por toda a Terra.
O nome do jogo? “Verdade ou Consequência”

 Eva, você é concorrente, venha jogar…



Cena III – O início da Sequência
…actgatcatatcacgataaaaaaagggaggagggagtagatagtatcggtagagtcggtaggcttggacccagtatttaaagggagggacgcacccacggccagtatatgatagtagatgagtcttcgcgtcggatagg…


Ninguém sabia de onde tinha vindo. Um casal de idosos ia a caminho do supermercado e vira-a deitada à beira da estrada, nua mas, aparentemente, intocada. Estava inconsciente e trouxeram-na para o hospital. A equipa de urgências apressou-se a prestar-lhe auxílio e a tentar diagnosticar o que se passava com a jovem, mas, por inacreditável que parecesse, nada detectaram a não ser que estaria… a dormir!

Levaram-na para um quarto de recobro e esperaram que despertasse. Em tom de gozo apelidaram-na de ‘Bela Adormecida’ e houve mesmo um grupo de enfermeiros mais jovens que cometeu a imprudência de a fotografar com os seus telemóveis e colocar fotos dela nas redes sociais, a perguntar se haveria por ai um príncipe que lhe quisesse dar um beijo suficientemente forte para a despertar. Isso só serviu para atrair um bando de imbecis, sociopatas e pedófilos, dado o ar muito jovem e formoso da frágil Bela.

Mas finalmente, ao 7º dia ela acordou, abriu os olhos sorrateiramente, ergueu primeiro a cabeça, depois o torso, com o apoio dos braços e, já na posição de tronco elevado ergueu os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se com demora. Quando olhou à sua volta já era observada por dois enfermeiros, um sénior e um dos rapazolas que a tinha fotografado e ainda um auxiliar que congelara agarrado ao cabo da esfregona, paralisado pelo inesperado despertar. De pronto chamaram a médica de serviço para vir aferir do estado da paciente. “Olá menina, sente-se bem, sabe onde está?”. Mas ela não respondia, sorria e com os olhos verde-mar, enormes e resplandecentes mirava-os a todos, em sereno silêncio, de como quem bebe água para se refrescar. Fitou-os um a um, com um olhar penetrante, que parecia trespassar a carne para melhor ver a alma. Ao mesmo tempo, parecia que procurava algo. Quando chegou a vez de cruzar o olhar com a médica subitamente parou de sorrir. Ficou séria e começou a semicerrar os olhos, que agora pareciam cinzento-pérola. “A menina está bem? Como se sente? Sabe-nos dizer quem é?”. E eis que a ‘Bela Adormecida’ mexeu os seus lábios, meio trémulos e suspirantes e diz:

“Eu trago a verdade e venho para vos libertar”

Repentinamente lança a sua mão sobre o braço da médica que se assusta e deixa cair a ficha em sobressalto.

“Sou Eva, venho das estrelas e trago-vos uma mensagem do Divino”

A sala gelou e encheu-se de luz branca, cada vez mais forte e mais forte, cegando a todos num clarão violento que subitamente coalesceu sobre si próprio num único ponto de luz azul metálico brilhante rodeado de negrume e laivos de vermelho. E… nada. Quando voltou a normalidade a cama estava vazia, perfeitamente arrumada e aparentemente intocada. Em pânico silencioso as quatro testemunhas trocaram olhares, sem conseguirem sequer exalar um sopro.
Ninguém disse uma única palavra durante alguns minutos, até que o auxiliar murmurou algo, que ninguém percebeu. O enfermeiro mais velho moveu finalmente a cabeça na sua direcção e pediu-lhe que repetisse o que dissera.

- Eu…. eu… roubo medicamentos e vendo-os a outros doentes fora do hospital. -
- O que está a dizer? Do que está a falar? -
- Eu não suporto este trabalho, desprezo-vos a todos, por inveja e desespero, roubo os stocks de calmantes e psicotrópicos e vendo-os nas ruas.-
O rapaz mais novo suava em bica e olhava aterrorizado para a médica.
- Calma – Dizia ela. – Temos que tentar perceber o que se passa aqui, certamente que haverá uma explicação científica e lógica para o que vimos, ou melhor, não vimos, quem sabe, estamos todos cansados, terá sido uma alucinação colectiva, ficámos temporariamente ausentes, algo se passou –
- Algo certamente se passou, Doutora – Afirmava com estranha solenidade o enfermeiro mais velho – O que se passou é o que sempre se passa, a mania das grandezas dos médicos, convencidos que só eles sabem explicar as coisas, que são mais que os outros, que são uns iluminados! Sabe a Doutora, que tem menos uns 20 anos que eu, quantas médicas e médicos já aturei na minha vida? Sabe quantas vezes tive que ouvir e aceitar opiniões idiotas e completamente despropositadas só porque estou abaixo de si e daqueles como você? –

- Eu copiei nos exames. – Disse o jovem enfermeiro, no meio do clima de tensão crescente.
- Mas o que é que isso interessa agora? Estão loucos, o que vos deu? – Gritou a médica, no meio de um ataque de pânico que lhe fazia desabotoar a bata com nervosismo. – Eu quero sair daqui, eu tenho que sair daqui e já! –

Em menos de 10 minutos todo o hospital estava sob enorme agitação, havia gente a correr, gente a gritar coisas estranhíssimas, desconexas, sem sentido. Um paciente agarrado a um suporte com soro gritava a plenos pulmões “Eu trai a minha mulher, eu trai a minha mulher que tudo me deu, tantas vezes, oh meu Deus, o que fiz eu?”. Uma jovem enfermeira chorava acocorada a um canto e soluçava: “Quero sair daqui, quero sair deste hospital, desta terra, quero ir-me embora, tirem-me daqui!”. Ao fundo do corredor um polícia disparou dois tiros para o tecto, o que fez com que todos parassem assustados e gritou: “ Exijo que parem já! Todos quietos! Se alguém se mexer leva um tiro, garanto-vos que leva um tiro! Não seria a primeira vez que mataria alguém só porque me sentia ameaçado e inseguro, portanto calem-se, fiquem quietos e não se mexam!”

Um quarto de hora depois, quando finalmente chegou o auxílio dos bombeiros bem como um esquadrão da polícia de intervenção para tentar controlar a situação e perceber o que se passava, já o cenário era dantesco. Havia gente a matar-se uns aos outros com as próprias mãos, enfermeiros a chorar e a asfixiar doentes terminais com almofadas ou a dar-lhes sobredosagem de morfina, outros gritavam insultos e ameaças aos médicos que se escondiam atrás dos equipamentos e móveis, havia quem se suicidasse com objectos cortantes ou se atirasse da janela em gritos de desespero, havia até gente que fornicava em grupo, entre consensos e óbvias violações, ninguém se parecia importar, não havia limites. De imediato, as forças da segurança tentaram fechar o perímetro e conter a situação infernal que ali se desenrolava, em menos de 10 minutos o hospital estava fechado e sob controlo. Felizmente era um pequeno hospital de província e afastado da povoação, com sorte, com muita sorte, a situação seria gerida de modo a não espalhar o pânico e logo se haveria de ver como lidar com os media que não tardariam a chegar.


Cena IV - "Limpeza ao corredor das frutas e vegetais, temos um incidente"
A meio do corredor das frutas e vegetais, o velho homem vira-se para a sua mulher e diz:

- Se tu não estivesses comigo tinha-a montado. –
- Que dizes homem? Que disparate é esse, de que falas? –
- Não percebes o quê? Sou um homem ou não sou? Há muitos anos que não me interessas, percebes, para me satisfazer. Mas o desejo está cá. Quando vi aquela rapariga, nua e inconsciente, se estivesse só tinha encostado o carro, pegado nela e leva-la um pouco mais para dentro da mata e, ah por certo, tirar prazer daquele corpo de anjo. Eu não iria aguentar, preciso de sexo, com uma mulher a sério, não com uma pobre velhota como tu. Quero satisfazer os meus desejos, preciso dos meus desejos satisfeitos!
- Cala-te já, mas que dizes tu, enlouqueceste? Mas que te deu?

De imediato formou-se um círculo de pessoas em volta do casal de idosos que discutia com crescente inflamação. Era hora de almoço e o supermercado estava cheio. Entre os assistentes havia um jovem rapaz que olhava para o relógio com ar de quem tem que voltar rapidamente para o emprego mas que não consegue evitar a curiosidade. Ao seu lado, uma mulher pequena e de cara deformada perguntava-lhe “Menino, diga-me o que se passa, eu não me consigo endireitar para ver”. “Minha senhora, é só escabeche entre um casal de velhos, coisas de gente casada e sem paciência para se aturarem”, dizia uma mulher muito bem vestida, excessivamente bem vestida para aquela hora do dia e para estar num supermercado. “Ainda aparecem lá no meu tribunal”, falava um homem alto, seco e severo, com ar de autoridade. “É melhor ligar para a central, cá para mim isto ainda vai dar notícia para o jornal das 6”, dizia entre dentes um homem visivelmente excitado com os acontecimentos.

1 comentário:

  1. Ensaio sobre a verdade!
    DELICIOSO!!!!!
    adoro, adoro, adoro!
    Das tuas melhores composições por aqui!
    Venha o III!

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