quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Postal de férias II (Os argumentistas não andam de avião)





Olá.
Escrevo-te de um daqueles resorts onde nos espetam uma pulseira no braço para nos entupirem de caipirinhas anémicas à beira da piscina e bufets alarves atapetados de salmonelas, onde vamos por uma semana fazer excursões com velhinhos amorosos e pré-senis e parzinhos em lua de mel que se agarram como sanguessugas ao primeiro casal a rondar a mesma idade que conhecem, por já não se aguentarem um ao outro.

O Rodrigo apanhou uma gastroenterite no dia em que chegámos, por isso tenho vindo à praia sozinha, sento-me sozinha na esplanada, almoço sozinha e depois vou dar uma volta ao bairro dos candongueiros e, a seguir, ao dos pescadores, onde sou perseguida por uma horda de miúdos descalços e ranhosos, a pedirem para ser adoptados por uma estrangeira com dólares na carteira. Está a ser uma lua de mel e peras...

Esqueci-me de trazer uma boa leitura mas arrependi-me depressa de o ter comentado com a minha própria sanguessuga de resort, uma vendedora de seguros boazona que me emprestou o último do Nicholas Sparks. “Vai mudar a tua vida!”, ameaçou.

E enquanto sorvo o quarto wiskey-cola da manhã, com vista para um Mar das Caraíbas muito mais barrento e desbotado do que nos filmes, acredita, só me lembro de ti e tento perceber o que faço neste fim de mundo, porque raio me meti naquele vestido, naquele anel e naquele avião. Era muito mais simples preguiçar na tua cama de solteiro estreita demais, enquanto o dia avança lá fora e os gritos dos putos, à saída da escola, nos lembram que se calhar já era altura de nos levantarmos para comer qualquer coisa. Ou sentarmo-nos no banco do jardim em frente da tua casa, a contar as infracções de trânsito e a gozar com o pessoal que leva três anos para estacionar o carro e, mesmo assim, o deixa de esguelha. Ou a lagartar ao sol de Outono, a fazer a fotossíntese deitada no teu colo, em silêncio durante mais de uma hora e nem um pouco incomodada por isso.

Tens de admitir, éramos mestres na gloriosa arte de atirar à cara dos outros o luxo de não fazer nada.

E o Chico cantava no gira-discos: “Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã...”

Nunca mais faço uma aposta contigo, muito menos de que consigo engatar o primeiro fatinho Boss que sair de um prédio de escritórios. Ganho sempre e depois arrependo-me. E eis onde a última me trouxe.

Desculpa não te ter acordado antes de sair, como prometi, mas... estás a ver aqueles cenas de filme em que a heroína fica à porta do quarto, com as malas na mão, a observar a beleza angélica do amante que dorme? Ele acorda uns minutos depois e começa uma corrida alucinada pelo trânsito até chegar, no último minuto, à porta de embarque de um aeroporto qualquer, onde ela reconsidera e o beija como se não houvesse amanhã. Nunca percebi esses filmes parvos. Os argumentistas não devem andar de avião ou saberiam que, sem cartão de embarque, não passas os gorilas da segurança, depois do check in. E que, na vida real, ninguém corre até ao aeroporto atrás da melhor coisa que lhe aconteceu. Se o fizessem, provavelmente ficavam presos na bicha da 2ª Circular.

(Apesar de tudo) sempre tua;
Ana

3 comentários:

  1. que grande postal, um momento inspiradíssimo!

    ResponderEliminar
  2. Que bem se escreve neste cantinho!!!
    Parabens pelo desconcertante texto!
    Muito bom mesmo!

    ResponderEliminar
  3. Adorei o teu texto. De como numa carta se pode contar uma narrativa inteira :-) E a música... Fantástico.

    ResponderEliminar

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...