domingo, 30 de janeiro de 2011

Pão



Olhei instintivamente para o lado. Percebi que era um mendigo daqueles que carregam sacos e provavelmente não tomava banho há muito tempo. Ele estava ali, olhando para a mesma situação, para os pássaros. Nos olhamos brevemente. Houve um bem-estar de aceitação de um com a presença do outro. Naquela época da minha vida, não havia nenhuma discriminação entre aquelas pombas, aquele homem ou qualquer condição social. Simplesmente olhava para aquela pessoa. Tudo era um momento único,acontecendo sob atenção plena.

De repente, aconteceu algo inesperado. Várias pombas foram bicar o mesmo pedaço de pão e quando uma tocou, e mais duas tocaram, antes de puxarem o pão ao mesmo tempo, elas largaram. Largaram com tanta intensidade - acreditando que as outras iam pegar, imagino eu - que elas deram as costas e deixaram aquele enorme pedaço de pão.

Olhei para o lado e o nosso amigo mendigo abriu um sorriso que depois se transformou numa gargalhada. Aquele pedaço de pão estava ali parado. Nenhuma das pombas chegou mais perto dele. Olhei com surpresa, o mendigo levantou se, agarrou aquele pedaço de pão -o maior deles- sorriu, olhou para mim e falou:

- Acho que elas me deram. é servido?
- Não, muito obrigado... Respondi.

Fiquei a olhar a cena, a enorme felicidade daquele homem comendo aquele pão seco do chão que era, na verdade, o resto das pombas. Ele era muito feliz, com a mão suja, encardida, os dentes partidos que dava pra ver de longe, e um forte odor de falta de limpeza. Ele sentou se com a satisfação de uma pessoa que se senta num restaurante para comer o melhor prato. Olhava pra mim, sorria e falava:

- Obrigado! Obrigado! Obrigado.

Talvez ele não comece naquele dia, mas a humildade dele era tão grande -porque se ele fosse uma pessoa movida pela fome ele teria simplesmente espantado as pombas e recolhido os pães- que ele esperou para ver se sobrava.A gratidão dele era imensa, como se tivesse ganhado a loteria ou conseguido fechar o negócio da sua vida. E era só um pedaço de pão velho, esquecido. Esquecido até pelos animais...

5 comentários:

  1. Caráter e boa índole realmente estão na natureza da pessoa (ou até mesmo dos animais). Dependem muito pouco, ou quase nada, das circustancias...

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  2. O deixar porque se pensa que o outro já o conseguiu. É dificil embelezar esta situação mas para ti parece sempre tão fácil... e nunca é "só um pedaço de pão velho, esquecido." :)

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  3. Gostei muito do ponto de vista do narrador. As suas palavras não fazem julgamentos sociais e não expõem a dor que a cena lhe terá causado.... e no entanto quem lê o texto sente-os plenamente.

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  4. A analogia entre um pedaço de pão esquecido e um mendigo...Triste mas real

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