terça-feira, 3 de agosto de 2010

A Grande Devoradora: A Morte da Inocência em 4 actos (Acto III)

Acto III: Sangue




Sentados numa laje de granito, a contemplar o rio selvagem a correr adestrado entre meandros, lá em baixo, por entre o vale encaixado entre vertentes íngremes, memórias verticais de uma Terra ancestral, de dias distantes, algures nas memórias varridas pelo tempo, eras antes de Adão ter perdido a sua divindade e de Eva ter aprendido a domar a serpente com o seu corpo de êxtase…


Sentados, encaixados entre braços e pernas, ele protege-a dos monstros deste mundo e dos outros que se escondem para lá das sombras, cobre-a com o seu corpo e envolve-a entre sonhos e murmúrios. Ela responde, inspira profundamente e deixa-se cair pura e inocente no enleio onírico de quem se apaixona e se deixa adormecer. O dia segue manso, entre brisas tépidas que agitam as cerejeiras bravas e os pinheiros, cheira a campo, aquele campo frutuoso, prenhe de vida, cor e zumbidos, aquele campo imenso e silvestre que se estende por entre fragas e pequenos prados floridos e veredas de riachos sibilantes. A Primavera beija-os e eles beijam-se entre si, enamorados pela Primavera das suas vidas, hipnotizados pelos corpos adolescentes que tocam com alguma insegurança, mas decididos a explorar cada pedaço de pele febril de antecipação, com o cuidado de quem toca em algo precioso, tocam na boca um do outro e trocam olhares meigos por entre suspiros descuidados, incautos, sem pensar no dia de amanhã ou no que os seus pais poderiam pensar. Ela olha à sua volta e sente-se profundamente descontraída e desinibida, sente-se a desabrochar, tal como as papoilas e as camomilas, ela irá abrir as suas pétalas e dará de oferta o seu âmago doce e intocado. Esta tarde seria sua. Tal como o seu corpo feminino, delicado, frágil e pulsante seria dele.


Era assim que ela o recordava. Terno, paciente, cavalheiro, um cavaleiro que a salvava da aldeia suja e atrasada onde se sentia presa e asfixiava, desejosa de ar, ar para respirar, ar para voar. Era preferível que assim fosse, era a sua fantasia, o seu desejo de cavalgar o vento, domar as fragas com um beijo e tolher as flores do campo só para as atirar aos ares limpos e perfumados e deixá-las cair sobre o seu colo de menina que o deixara de ser.


Desde que o sangue chegou que ela se procurava a si mesma, partia em busca do seu eu, em busca da meninice e dos dias de inocência pueril. Mas o sangue é um veneno e um licor de vida, uma benesse disfarçada, uma maldição encantadora. Desde que ela sangrara que a tratavam de maneira diferente, a mãe tirara-lhe as bonecas e o pai obrigava-a a ficar em casa, fechada e rosnava quando os mancebos imberbes passavam por sua porta a atirar miradas de soslaio à janela. As saias tornaram-se mais compridas e pesadas, o peito era apertado para disfarçar o intumescimento dos seus pequenos seios e os lábios eram controlados pelas velhas que a seguiam sempre com olhar reprovador, com olhos semicerrados quase cobertos por lenços negros e bocas engelhadas pelo vazio dos anos de pesar de lutos sucessivos pela avó, mãe, pai, marido, tio, pois esta era a sina das mulheres da aldeia, tornarem-se adultas, perderem a liberdade, casarem, servirem o amo, chorarem o primeiro luto e ficarem para sempre tingidas de negrume, como ex-votos feitos de carvão que se acumulam entre um canto sombrio da capela da aldeia. O negro das vestes, o negro das faces das mulheres no sábado de manhã depois do serão dos homens na taberna para festejar o final da semana de trabalho, o negro das unhas de seu pai, o negro dos cantos da cozinha onde sua mãe a prendia amiúde, o negro do fogão onde se queimava para se sentir viva, o negro das horas que passava a brincar na eira, com as outras meninas e meninos, livres, inocentes, entre os ventos tépidos da Primavera, agora fechadas dentro do veludo negro da sua mente.


As sombras são traiçoeiras, criam ilusões, falsas esperanças e excitação desmesurada por algo que ao parecer fascinante se revelará bruto, vazio e banal. Nas sombras crescem desejos, fazem-se pactos com o demónio e promessas impossíveis a santos e anjos. Nas sombras, os anjos parecem deuses e os deuses podem ser fatais, são coléricos e dados a enfados, são incapazes de ver para além da sua pseudo-divindade, tal como Adão, pseudo-filhos de deus revelam as suas cores na escuridão das sombras, onde a inocência é cega. Nas sombras aparecem pretendentes que sussurram versos aos ouvidos das meninas incautas e sonhadoras. Nas sombras fazem-se promessas que não se podem confessar à mãe, marcam-se encontros de amor prometido, casam-se os noivos que hão-de ser, entregam as donzelas seu coração aos cavaleiros destemidos que lhes prometam cânticos e panos de cetim branco. Por entre as sombras ela escolheu o seu cavaleiro, estava segura do seu amor, da sua resposta afável a seus caprichos, da sua paciente forma de estar e a ouvir, dos seus olhos encantadores, dos seus convites para explorar outros mundos e sair das sombras e respirar debaixo do Sol. Com a chegada da hora mágica viria o troféu, a eleição e todo um reinado de pureza e beatitude. Com o avançar da noite, ela mergulhava entre doces promessas e convites, iria com seu cavaleiro até ao fim do mundo, descobrir-se a si enquanto se descobriria em seus braços. Nos sonhos, todos podem ser felizes, felizes para sempre…


A noite dança sob a esfera que rodopia eterna em volta da grande luz. Cobre-se de negro o mundo dos Homens, mas ilumina-se o coração de uma donzela afogada em suspiros. Quando o negro dos dias dava lugar à luz dos seus sonhos, ele chegava, o seu cavaleiro, elegante, amável e sensível, viria salvá-la da boçalidade e pequenez das gentes rurais, levá-la para o palácio e cobri-la de rendas e perfumes exóticos...


Era muito melhor assim, uma princesa-noiva, sempre bela e livre. Era melhor assim, pois assim não se recordava do sangue. Do sangue que mudou duas vezes a sua vida. Do sangue que dissolveu a menina que havia em si. Do sangue que escorreu por entre as suas pernas quando naquela tarde de Primavera ele a levou para o monte, a seduziu, a enrolou em seus braços e, sem qualquer elegância, amabilidade ou sensibilidade lhe rasgou a última memória de inocência, deixando-a marcada a negro em seu coração, desolada, aprisionada para sempre à fantasia de como tudo deveria ter sido, algures entre as fragas a contemplar o rio, que para ela iria para sempre correr vermelho.

2 comentários:

  1. "As sombras são traiçoeiras, criam ilusões, falsas esperanças e excitação desmesurada por algo que ao parecer fascinante se revelará bruto, vazio e banal. Nas sombras crescem desejos, fazem-se pactos com o demónio e promessas impossíveis a santos e anjos."

    O sonho, a ilusão...a vida que há em nós!

    Gosto de te ler...

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