domingo, 27 de fevereiro de 2011

5.1

1.


Dorme, dorme, meu pequeno
Que a noite está a chegar
Fica perto da tua mamã
Para a escuridão não te levar


E se uma luz de madrugada vires
Do outro lado a piscar
Não a queiras seguir, meu querido
Que de onde vem a luz
Não há mamã para te amar

A criança dorme na paz dos anjos, embalada na cantilena de sua mãe, entre versos e murmúrios entra no submundo dos sonhos e perde-se na sua memória por formar. Vai explorando os recantos onde fotogramas do dia-a-dia se confundem com os sons flutuantes que escutava quando ainda submerso no ventre, seguro, longe muito longe do alto da montanha…

Todos os grandes carvalhos nascem de uma pequena bolota. Todos os grandes homens foram antes néscias crianças. Mas nem sempre a luz desses homens vem para nos guiar, inspirar, fazer crescer. Por vezes a luz, de tão forte que nos cega, afasta-nos do caminho e desesperamos por um lugar escuro, a salvo, salvos, esquecidos, sem que a luz nos detecte, nos projecte a sombra e nos assuste com vultos dançantes e que nos segredam: “nós somos o teu espelho, o prolongamento dos teus medos, as tuas falhas, oh mortal, somos o que sobra quando toda a luz é detida, somos a penumbra, a noite da alma”.

O homem-espelho ascende entre os seus iguais, discreto e benévolo, envolto em beneplácito acordo de que ele somos nós e nós sou ele. Ele está entre nós. Ele está dentro de nós. Não conhecemos limites à nossa própria descontinuidade, pois isso seria auto-destrutivo, a contemplação do fim do eu, o abismo para o inominável devir das coisas, um desígnio de morte em vida, os restos pungentes de um cadáver por descobrir, escondido na carne falante e andante que sorri quando está entre pares, que cogita quando só perante a parede, onde nada vê para além da sombra do seu ser, tal é o seu tamanho, enorme como Deus, minúsculo como um grão de nada, um pingo de coisa nenhuma, um suspiro vazio emerso pelo peso indizível dos dias que já nada nos dizem. Iguais. Entre os seus pares. O homem-espelho é vazio, porque está cheio de tudo o que temos dentro de nós para oferecer, que é nada, pois nada queremos oferecer, só sugar, como quando fincávamos as gengivas na teta de nossa mãe, que nos alimentava de sonhos e expectativas. Uma mãe-espelho. Um pai-espelho, que em nós se revê, que em nós projecta as suas memórias de fantasia do que não foi, do que queria ser, da menina que não beijou e que agora nos transforma em cobardes porque não a beijamos, nunca da forma como ele a beijaria. Do poder que não teve e sempre impôs, cruel pai-todo-poderoso que castiga os seus filhos para que eles brilhem sobre o fogo duro da autoridade cega. O pai dono da decisão que não tomou, porque se a tomasse aqui não estaríamos. Somos espelhos da frustração, da acção, das sombras dos nossos pais, projectadas sobre o infinito que agora é a nossa memória para o futuro, onde as sombras são raios de luz que nos assustam e nos cegam. Temos medo, muito medo, muito medo…


O homem-espelho é a criança-espelho que brilha entre seus pares, pois é o zénite de seus desejos, sem nada ser, sem nada ter para oferecer tem contudo dentro de si um universo infinito de pequenos nadas. Nós somos esses pequenos nadas que iluminam o espelho, refulgem sobre a sua superfície prateada, infinita, lisa, perfeita, zero de erro, zero de paralaxe, zero de sujidade, zero. Zero. Perante a criança-espelho somos zero, um enorme zero, porque quando nos vemos ao espelho vemos tudo o que somos, a superfície irregular, mortal, com defeitos inaceitáveis, zero de segurança, zero de confiança. Zero. Anulamo-nos quando comparados com ele, porque de imediato percebemos que ele e eu e tu somos o mesmo, somos reflexos de reflexos de luzes que nascem das trevas, das trevas em que somos concebidos e nos desenvolvemos, quentes e inseguros, no ventre de nossa mãe. Temos medo porque não temos limites, somos seres sociais, projectamo-nos uns nos outros, nos nossos pais, nos nossos filhos, dos nossos desejos, anseios, ansiosos por desejos que nos façam sentir menos nada, menos que nada.


Vivemos no outro lado do espelho, porque é mais confortável, não é real, nada é real e podemos ser o epicentro da nossa própria ascensão e autodestruição. Porque nos esquecemos dos limites e porque temos medo da luz que destrói as sombras elegemos o homem-espelho como ícone, líder, como Príncipe e nosso Salvador.

Por isso adorámos a criança-espelho, a ignorámos quando cresceu e aprendeu a ser homem-próprio. E porque nos falou dos limites e do fim das sombras, porque projectou a luz que nos fez perceber que não estávamos no lado de lá do espelho, porque nos falou de amor, como o oposto de zero. Porque somos zero partimos o espelho e crucificámos o Homem.



Este foi o primeiro dia da nossa gloriosa Civilização, refulgente, sem erros de paralaxe porque para sempre tínhamos um zénite para nos compararmos e para sempre sermos zeros felizes, em profunda miséria e desconfiança, com medo, muito medo, crentes no grande espelho da religião, fieis ao reflexo distorcido de um Messias que nos deixou perdidos no lado de cá do espelho.


Todos os grandes homens foram antes sábias crianças. E, muito raramente, a luz desses Homens vem para nos guiar, inspirar, fazer crescer.



Por vezes a luz é de tão forte que nos cega…

2 comentários:

  1. Muito complexo e nietzschiano, este teu texto, que exige mais do que uma leitura. Gostei do homem-espelho como homem das múltiplas máscaras e difarces, o homem ofuscado, que inventa deuses mas não distingue o essencial do acessório, que se alimenta de vaidade com seu próprio reflexo distorcido.
    Gosto de teres subvertido a ligação luz/bem, sombra/mal. Aqui a sombra é um refúgio, a luz por vezes cega, algo que amplifica as nossas sombras e medos (uma perspectiva muito luciferiana, clever you...). Mas há qualquer coisa que me inquieta na tua criança-espelho. Cenas dos próximos capítulos?...

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  2. A coragem de estilaçar espelhos e...
    (belo, reflexivo...)

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