quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Nem sempre



NOTA: Texto da autoria partilhada de Rui Barroso e Inês Isabel





A pequena folha presa ao ramo da árvore abanava com a brisa. Não era um vento forte, ela é que já fora mais jovem. Quando era verdinha e carnuda suportava desde brisas destas até ventos dos que viram os guarda-chuva ao contrário. Agora estava amarelecida. A seiva já não circulava nela com fluidez e os raios de sol tinham deixado de ter aquele efeito revitalizante que durante tantas manhãs lhe tinham provocado sensações deliciosas.
Nessa altura entendeu que a separação estaria prestes a acontecer. Soube que a quebra do atilho que a unia à mãe poderia dar-se a qualquer momento. Iria ter saudades daquela vida preguiçosa e confortável? Não tinha dúvidas que sim. Afinal de contas em grande parte dos seres vivos o rompimento dos laços com os progenitores é marcante. Ainda por cima não dependia de si mas sim da força do vento, aleatória como sempre. Ou do vento ou do homem que podava as árvores mas como era tão raro este aparecer...
Virou-se para dentro, para dentro de si mesma. Estaria preparada? Sabia que estando ou não, aquilo iria acontecer mas queria saber-se, ter um mínimo de certezas. Até onde foi capaz de chegar na sua auto análise, achou-se dividida. Por um lado, o conforto. Por outro, o...
Não conseguiu acabar o raciocínio. Uma brusca ventania agitou toda a árvore. Ouviram-se vários plics. Percebeu que os raminhos de muitas irmãs se haviam partido.
Depois ouviu um plic muito próximo de si. Demasiado próximo! Percebeu-o. Fora o ramo dela que se tinha soltado.
Ao contrário do que os humanos pensam, a vida duma folha não acaba quando se solta da árvore. Ou melhor, termina essa etapa de vida mas começa outra. A da aventura!
Sentiu-se às voltas pelo ar. Aquele rebolar soube-lhe tão bem...

Aquela brisa soube-lhe tão bem na cara. Hoje ela pisou uma folha, aliás, pisou um vasto tapete de folhas secas mas, uma delas sofreu uma crepitação diferente das outras. Em vez do som normal, seco e oco, ouviu o som de um cristal. Sentiu o quente do corte na planta dos pés. Reparou que ficaram marcas vermelhas no chão, mas principalmente tomou consciência do erro que cometeu.

(Tomei consciência do erro que ela cometeu. E reparei que ela, a pisadora, também teve essa percepção. No chão, todas sabemos do corredor da desmembração; umas conseguem ser levadas pelo vento, as preferidas, mas a maioria cai direitinha no chão e daí o berço é alto. Não tenho pena dela, nem da planta dos pés dela… Ironia… Nós, parte de plantas somos pisadas por outras plantas.)

Voltou para casa com restos da folha dentro do bolso. Não sabe como a meteu lá dentro, sem sabe como a vai tirar de lá. Tem um cristal no pé esquerdo e um cadáver dentro do bolso, entre os dedos da mão direita. Começou a sentir o quente do corte na palma da mão. Rubor. Definitivamente começou hoje outra etapa.

O senhor Augusto Antunes era o último de várias gerações de ourives. Não tendo filhos a sua arte morreria com ele. Esse era certamente o maior desgosto da sua vida.
No entanto, naquela manhã, naquele momento, não havia nada no senhor Augusto Antunes, nenhuma sensação, nenhuma dor, nem sequer a da ciática que o atormentava permanentemente, que se conseguisse sobrepor ao fascínio, ao encantamento que aquilo que os seus olhos viam lhe transmitiam. Já tinha quase 70 anos e pela primeira vez na vida olhava algo que apenas sabia existir devido às histórias que a sua avó lhe contara. Mesmo tendo confiança na avó a certa altura deu por ele a desacreditar. Desacreditara ao ponto de reunir os muito antigos livros que ela lhe confiara e pô-los numa mala a um canto do sótão. Afinal, percebia-o agora, estava errado. Tinha à sua frente a prova de que pelo menos uma de várias entidades que ela lhe falara existia realmente.
Tudo isto e muito mais lhe passava pela cabeça num turbilhão que há muito não existia em si. Que fazer? A moça tinha-lhe apenas pedido: – Por favor conserte-a. – e saíra porta fora a coxear deixando-lhe nas mãos um lenço com algo lá dentro. Ao abri-lo deparou-se com a folha partida em vários pedaços. Num deles havia aquilo que lhe pareceu ser sangue. O senhor Augusto Antunes decidiu que a primeira coisa a fazer seria limpar. Tudo a brilhar era o seu lema. Retirou duma prateleira um líquido suave e pegando num pano de linho executou a tarefa. Lentamente, muito lentamente. Depois limpou também os restantes pedaços. Oh! Como brilhava! Sentiu um enorme privilégio pela benesse de poder ver algo assim.
Agora faltava a última parte, aquela que imaginava ser a mais complexa pois não tinha noção nenhuma de como a realizar: juntar as partes. Novamente pensou nos livros da avó, em especial num. Como se chamava? Qualquer coisa como “Os seres de que ninguém fala”. Levantou-se, fechou a porta da loja e subiu até ao sótão. Abriu o baú e, envolto numa nuvem de pó, vasculhou até encontrar o livro.
Trouxe-o para baixo e com a ajuda dum espanador de penas, limpou-o até que se tornasse legível. Tossiu imenso durante o processo. Depois percorreu o índice. Na letra C encontrou um capítulo inteiro dedicado a “como colar seres vivos”. Leu-o e descobriu. Lá estava o que precisava. E era tão simples…
Dormiu mal nessa noite pois sabia que tinha de se levantar antes do sol nascer e tinha receio de deixar passar a hora. Tal não aconteceu. Desceu e saiu para o quintal envolto em mantas. O livro era bem explícito: as primeiras gotas de orvalho matinal. Viu-as formarem-se e com toda a delicadeza fê-las escorrerem para dentro do recipiente que esterilizara na noite anterior.
A seguir, em passo acelerado e largando mantas pelo caminho, voltou para dentro, para junto do seu balcão. Principiou a tarefa. Pegou num pequeno pano de algodão puro, molhou-o nas gotas de orvalho e passou-o nos lados quebrados. Fez isto uma e outra e mais outras vezes. De cada vez que o fazia e juntava os lados, o líquido atraia-os e unia-os sem que ficasse marca.
Estava deslumbrado por aquilo mas nada que se aproximasse do que sentiu quando uniu o último pedaço. Percebeu que contemplava a coisa mais bonita que os seus olhos viram. Ele já tinha visto muitos cristais. Cristais de todas as formas e feitios mas nunca pensou… até porque a determinada altura o catalogara como uma das lendas que a sua avó contava…, nunca pensou ver um cristal daqueles. Em forma de folha de árvore, um Cristal Vivo.
Ficou um tempo indefinível a olhá-lo, como que em estado hipnótico. Em transe. Quando “acordou” uma pergunta martelou-lhe o cérebro: que fazer com ele?

(Por favor, sei perfeitamente o valor que tenho, de cristal, frágil, mas desta vez unificada pelas mãos de um homem que se segue por receitas de livros. Não consigo aceitar que não sou uma folha daquelas que brinca ao vento. Tenho peso, não voo, se cair morro outra vez, se…
Guarda-me! Sim, tu. Guarda-me. Dentro.)

Augusto Antunes estava… sem cor, cristal até, por ouvir aquelas palavras. Sim, pensava guardá-la, mas como? Todos os sítios deste mundo são ridículos para aquela folha. Onde queres ficar?

(Tretas!! Só tretas, custa-te muito teres-me? Simplesmente, sem pensares, sem fazeres raciocínio de gente anti-coração. Sabes, gosto de ti, como dos teus livros, gosto do toque das tuas mãos curativas… Guarda-me aqui! Aqui, lugar, sítio, com tempo e ar, mas que nem todos vêem. É fácil.)

Para quem está fechado muito tempo, afinal, não é fácil. Augusto não tem capacidade nem sentido de oportunidade para dar resposta a uma vida de trabalho. Pelo sim, pelo não, pegou no cristal-folha e colocou-o dentro do relógio de parede. Vai ali ficar, até ao badalar das nove da noite…

Nunca passou pela cabeça do Sr. Antunes que mais alguém soubesse do que tinha acontecido na sua loja desde que trouxera as gotas de orvalho. Um par de olhos, do lado de fora da montra e agachado a canto desta, tinha seguido atentamente todos os tudo o que se tinha passado.
André tinha apenas 11 anos mas desde que se lembrava de si sempre tivera um fascínio desmesurado por coisas que brilham. Arranjara alguns problemas aos pais devido a ter muita dificuldade em conter-se, em resistir ao apelo de levar consigo pequenos objectos reflectores de luz. Por experiência própria sabia duas coisas: uma era que, em todo o seu bairro aquela era a loja que mais o cativava. A outra, que, em todo o seu bairro aquela era a loja que lhe estava mais interdita. O pai dissera-lhe uma vez que até podia ser preso se tirasse brilhantes daquela loja pois eram demasiado valiosos.
O André sabia disto e embora passasse assiduamente pela montra da ourivesaria conseguira sempre resistir a “adquirir” algumas das coisas tão bonitas que lá havia.
Aquele dia, no entanto, não estava a ser um dia como os outros e o que ele vira, muito menos. O pai explicara-lhe em tempos o motivo duns objectos brilharem mais do que os outros e dissera-lhe também que sem luz nada brilha a não ser aquilo que tem brilho próprio. Nunca, até então ele tinha visto algo que tivesse essa característica: brilho próprio. Apercebeu-se que tinha estado tanto tempo de boca aberta que já lhe doía o maxilar. Aquilo era lindo. Demasiado lindo!
Viu o Sr. Augusto Antunes arrumar o objecto dentro do relógio antigo e entrar para uma divisão interior. A loja estava aberta mas a sua porta, como sempre, fechada pois as constipações do seu dono eram famosas. André mudou de posição e empoleirou-se no degrau da porta para conseguir continuar a olhar para aquilo que ele chamou de pequena estrela. Não a via directamente mas via o brilho que emanava.
André sentiu-se desgostoso. Tantos pensamentos e todos eles tristes. Nunca iria conseguir ter algo assim para ele e provavelmente o Sr. Augusto Antunes nem sequer o iria deixar chegar-se perto e observar a “pequena estrela”. A fama de André no bairro levava muita gente a tomar precauções. A tristeza aumentou. Os seus olhos encheram-se de água salgada.

(Se prometeres que me tratas bem, que não me partes nem deixas que me partam, digo-te como me podes tirar daqui. Este homem é bondoso mas tem o espírito gasto. A idade devorou-lho. Eu sou nova e quero viver. Tu poderás ser uma boa companhia se me fizeres estas duas promessas.)

Com esta voz na cabeça, André encheu-se do ar adocicado que circulava por ali e, antes de expelir dióxido de carbono agridoce dos seus pulmões, empurrou a porta da ourivesaria, que, ao abrir-se, fez soar o sininho pendurado por cima. Os olhos do Sr. Augusto fixaram-se no rapaz. Nesse mesmo instante desfilaram dentro da sua cabeça muitas palavras.

(Não consigo aceitar que não sou uma folha daquelas que brinca ao vento. Tenho peso, não voo, se cair morro outra vez, se… Dá-me ao rapaz, sim, estende a mão e dá-me. Ele é muito melhor do que tu. És uma desilusão. Detesto-te, ourives! Simplesmente… dá-me! Já!)

André saboreou toda a conversa através do olhar petrificado do Sr. Augusto e antes de estender a mão revirou os cantos dos lábios para cima, em direcção aos seus olhos de cristal.

3 comentários:

  1. texto, cheio de coisas que me inspiram...:)

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  2. ..nem nunca...desfile de palavras cantantes :-)
    Espectacular de forma e conteudo.
    Harmonia de escrita a duas mãos.

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  3. Primeiro veio a surpresa perante a união inesperada entre o estranho mundo mágico dela o banho de realidade que são os textos dele. Depois veio a admiração pela forma como ambos conseguiram deixar-se contaminar pelo outro, cedendo algo daquilo que mais os define. Por fim veio o prazer de fruir este texto, um belo diálogo, uma perfeita intersecção. Muito bom, o vosso cruzar de caminhos.

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