domingo, 13 de fevereiro de 2011
Magnificat
Ainda deve ser um exímio dançarino apesar da idade e da doença, não bailarino como dantes era numa conhecida companhia, nota-se na leveza dos passos e nos suaves movimentos do corpo, naquele sentar-se como uma anémona nas rochas costeiras, nos braços fortes ondulando formas, nas mãos delicadas em gestos do quotidiano. Sei que foste um dos melhores, o corpo suado abraçando os aplausos, o nome nos cartazes, o homónimo da beleza, e olho as paredes vazias da tua sala, não, não há fotografias por aqui, nem troféus, nem louvores, minha amiga, fui um homem a gostar do que fazia, voando na música, tenho orgulho, aquele orgulho guardado cá dentro do prazer e da alegria que dei. Ele sorri, sabes que não gosto de exibir grandezas inexistentes, nem glórias efémeras, tudo é esquecido, a grandeza são os afectos, não é isto, ela anda por aí sentada nos bancos dos autocarros e nas ruas de gente comum, nos cafés onde ao teu lado está alguém a beber uma bica ou outra coisa qualquer, a grandeza está ali, repara naquela mulher velha que por aqui passou com a vida nos olhos, subindo escadas cinco vezes por dia pelo menos a tratar do filho, a amá-lo, a pentear-lhe os restos de cabelo, isto é um exemplo.
São esses os heróis, os grandes desconhecidos, os que oferecem o seu amor, os que nasceram sem o estigma da maldade. Não é bem assim, digo-lhe, vou fingir que me esqueço que foste famoso e vejo-te aqui nesta casa isolada onde vives só, com uma reforma miserável, sem os amigos que te abandonaram porque, como tu dizes, “têm a sua vida”, não há tempo, há pouco tempo para olhar o amor, embora tu fales deles com carinho, às vezes telefonas mas é tudo muito rápido, estás melhor, pá? Epá, cá se vai andando, desculpa, pá, tenho umas coisas a tratar, mas já sabes quando quiseres aparece, apareces onde? E sorris, não ligues, estou óptimo, inscrevi-me via internet num curso de Matemática, estudo muito, tenho os meus livros, a música, o computador, há ali ao lado um talho com uns hamburgers bestiais, 50 cêntimos cada um, por vezes faço uma sopinha, só preciso por vezes de conversar, gostava tanto, às vezes ligo-te e à Florbela também, era bom repetirmos aquele encontro na esplanada de Belém de há 4 meses, conversávamos um bocadinho, olha, queres que te leve uns livros de história? Sei que gostas, ficas com eles, tenho aqui tanto livro. Olha, também tenho aqui um telefone absolutamente novo que não uso, eu dou-to, ficas com 2 até pode dar jeito, o teu filho instala-te isso num instante.
Olha, se quiseres podemos ir beber uma imperial na próxima semana, tenho que ir à consulta e ainda demoro, vais ver que estou muito mais magro, pareço um jovem e ri-se, sim vamos, liga-me quando estiveres despachado.
Pousei o auscultador, fiquei sentada imóvel . Nessa noite o sono não veio. Nessa noite estive ocupada a pensar na urgência dos meus afectos.
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Texto com muito para sentir e pensar....
ResponderEliminarDeixa um crescendo de frágil, de intenso, de duro e agri-doce. Aperta o peito num nozinho de melancolia, dessas que escreve, insone.
ResponderEliminar(Muito bonito o texto e tão bem emoldurado/musicado.)
Afectos... ilusão de. aqui descritos pela conversa de algo que foi e imagina-se hoje a mesma presença. Estória bailarina, afectos em pontas...
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