quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Não, não é um sonho!

(A música é para ouvir APENAS no fim. Obrigado!)

Ele estava a lavar a loiça. Como sempre, uma pilha dela. Tinha por hábito deixar juntar muita loiça.

A certa altura levou com um pingo na cabeça. Pensou tratar-se dum salpico motivado pela impaciência que começava a invadi-lo. Era já demasiado tempo a lavar, a lavar…

Passados instantes, outro pingo sensivelmente no mesmo sítio. Teria de ter mais cuidado caso contrário, a seguir seria ele quem precisaria de um duche.

Alguns momentos se passaram e um terceiro pingo, fotocopia dos anteriores. Mau, agora já era demais. Demasiadas coincidências. Secou a mão direita e esfregou a cabeça no local pingado. Quando viu a mão, nela havia vestígios duma cor próxima do vermelho. Que diabo é isto, pensou? A primeira coisa que lhe veio ao espírito: sangue? Não se lembrava de ter batido em lado algum embora tivesse um sono muito agitado. Aquilo não era dele.

Olhou para o tecto e no preciso momento que o fez, plim!, novo pingo, desta vez em cheio na testa. Pestanejou, limpou e, novamente, mão vermelha. Desviou-se do local alvo e voltou a olhar para cima. Viu então uma mancha no tecto, mancha essa que se concentrava no meio e de lá expelia os malfadados pingos. Raios partam isto, uma infiltração! Era só o que lhe faltava.

Tirou o avental e foi ao andar de cima. Havia que chamar à responsabilidade exactamente quem tivesse a responsabilidade.

A porta das duas brasileiras que moravam por cima dele estava entreaberta. Lá de dentro vinha o som estridente de… pagode, nordestina, forró ou qualquer coisa do género. Não era versado naquele tipo de música e não sabia distinguir. Tentou bater à porta mas o melhor que conseguiu foi que esta se abrisse mais. Chamou, ó de casa!, mas ninguém respondeu. Berrou mais alto e novamente apenas o interprete da canção se fez ouvir. Entrou.

Aquilo com que deparou fez que exclamasse algo que não é de bom tom constar neste texto. Uma palavra começada pela letra Éfe, para logo se seguida ir para outra começada por Cê. Entre uma e outra, ena cum.

O chão estava coberto por aquela substancia líquida, espessa e… vermelha. Inundado seria o termo mais correcto. Se houvesse alguém que ponderasse a possibilidade daquilo ser groselha em vez de sangue, depressa tiraria daí a ideia. A não ser que nas veias das brasileiras corresse a dita groselha.

Uma delas jazia pouco depois da porta, ainda no corredor. Esparramachada no chão, e… bem, conseguia-se perceber quem era mas a moça tinha sido cortada e disposta tal qual como quem tivesse juntado as peças dum puzzle. Ah, com uma excepção: a parte do estômago e intestinos não existia.
Perguntou a si próprio se o autor da façanha era um incompetente que, depois de baralhar, não tivesse novamente sabido juntar aquelas peças mas logo a seguir teve a resposta. De facto quem houvera feito aquilo tinha resolvido dar outro destino ao intestino, passe a rima que não é para aqui chamada. Estava meticulosamente pendurado, preso aqui e ali, dando o efeito de fita decorativa pelas paredes fora. Ora agora percebera também de onde vinha o peculiar cheiro que lhe impregnara as narinas e não só, deste que tinha transposto a porta de entrada.

Por isto e também por se ter apercebido que ao caminhar naquela superfície molhada o chlap-chlap tinha salpicado a sua roupa, amaldiçoou tudo. Teria de tomar banho e mudar de pijama. Que chatice!

Quando passou o cadáver puzzle, espreitou para a porta da sala. Bingo! Dentro desta mais uma enorme quantidade de sangue a fazer a vez de alcatifa. Agora já não importava: mais sujo ou menos sujo, iria ter de ir ao duche, por isso tanto fazia.

Lá estava a segunda moça. Sentada, ou melhor, encostada ao móvel. Em comparação com a outra, estava relativamente inteira. Faltavam-lhe algumas partes mas pelo menos não era o outro exagero. Esta não se tinha tornado num puzzle brasileiro.

É certo que o móvel onde tinha sido encostada estava decorado com “coisas” que lhe pertenciam. Numa apreciação rápida pode constatar que tal-qual árvore de Natal, presos por pioneses, havia dois globos oculares, parte da língua (grande, por sinal), os dois mamilos, dedos (muitos dedos, talvez os 10), uns bocados de pele aqui e ali e tudo isto muito bem disposto com tufos de cabelo. Dois pensamentos lhe ocorreram: por um lado arrepiou-se ao imaginar quanto deveria ter doído o corte de cabelo; por outro lado, pensou que se em vez duma brasileira tivesse sido um brasileiro, haveria outras peças de decoração.

Depois lembou-se: e a miúda? Onde raio pára a miúda?

Andou pela casa até que por fim a encontrou. Estava aninhada a um canto do seu quarto.

Se o olhar dela era aparentemente normal, o mesmo já não se poderia dizer dos olhos do aspirador que estava a seu lado pois estes assumiam uma postura agressiva. Arrepiante, até.

Pensou que o aspirador devia estar de guarda à criança para que nenhum mal lhe acontecesse e teve a certeza disso, pois assim que deu um passo em frente ele ligou-se e começou a aspirar a toda a força. Muito perigoso!

Recuou, olhou em volta e apercebeu-se que numa estante havia uma quantidade significativa de pó. Decididamente eram brasileiras, não japonesas. Pegou num livro e com cuidado, passou o pó da estante para lá. O livro ficou porco.

Então agiu. Enviou o livro e respectivo pó para o pé do aspirador. Este não resistiu e tentou imediatamente aspirá-lo! Nesse instante, avançou e pegou na criança, resgatando-a das ventosas e braço do electrodoméstico.

Saiu do quarto.

Olhou para a catraia. Estava demasiado suja! Que raio de mãe era aquela?! Está bem que muito do sujo era sangue, sangue este derramado post mortem mas mesmo assim as crianças devem ser instruídas pelos pais para situações como aquelas.

Levou-a para a banheira. Havia que dar um bom banho àquela criaturinha.

Abriu a água quente e pôs-se a esfregá-la com uma esponja. Muito trabalho o esperava.

A certa altura caiu-lhe um pingo na cabeça. Desta vez não pensou duas vezes e olhou para o tecto. Ambos olharam e viram a pequena mancha que se principiava a formar. Logo a seguir ouviu a criança dizer:

- Mas como é possível? Nóis ainda não fomos lá cima!


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