terça-feira, 30 de março de 2010

Sono Profundo.





Sem caminho de volta. É a ultima estação neste país onde és intruso. Não inimigo, não adversário, não desagradável. Apenas intruso, forasteiro, falante de outro idioma. O ruído da locomotiva embala-o num sono profundo do qual não consegue despertar. Despertar é maçada. Talvez lá mais para a frente quando o céu flamejante que espreita no limiar do horizonte impuser uma cor tórrida, insuportável, e o obrigue a erguer-se e a ler a enorme placa anunciando o Finisterra.
Mas por agora, dorme, desmaia, hiberna, prossegue um quase-coma físico e espiritual enquanto num pestanejar tudo vai decorrendo, desvanecendo, amarelecendo, desaparecendo.
Morde o lábio, e sente o sangue que vai apodrecendo nas veias. Por esta unção...

(repescado de O Passageiro da Chuva)

domingo, 28 de março de 2010

Sonhei Verde




Ela acordou e, com o braço mole, passou a palma da mão aberta pelo peito dele com os olhos ainda fechados sorridente ,e disse qualquer coisa...

Sonhei verde

Ele não pergunta o que ela faz o dia inteiro certo - as lições de inglês,certo... não sabia das horas dela,sentia que ela fugia. ( estas doida )?

Sim, verde.

As árvores grandes a volta da casa,o campo cheio de relva que o meu pai corta ao fim de semana,o terraço caiado de branco a sua mesa de madeira comprida e a sua toalha de algodão verde onde se almoça ao domingo,e o lago com os seus nenúfares...

Sim sonhei verde

Ele sentiu uma coisa indesejada uma coisa que não era desejada.
Pensou...ela vai voltar para la para os seus.
Ela tinha estado a sorrir para si mesma,apenas meio acorda,com a ideia de ter sonhado erradamente em verde, uma linha cruzada do velho armazém subconsciente de paisagens,quando na verdade tinha adormecido transportando-se para o brilho imenso do verde onde entrara naquela tarde para alem do tempo e do crescimento.

Numa manhã ,ele também acordou de um sonho.Não conseguiu recordar-se do que fora, atrás de olhos fechados,também ele estendeu uma mão. Estava o espaço frio e vazio. De repente aquele era o sonho,tinha acontecido,ela tinha-se ido embora.


Gostava de ti miúda verde.

Vida não eussocial



Era uma vez, um contador de histórias cujo historial era composto por histórias historicamente historiada por um historiador.

O historiador, de nome Conto, vivia na terceira casa a contar do Largo das Contagens e conta a lenda que o largo foi contabilizado em mil contos de réis porque ao contarem as contas do colar da mulher do contador de histórias, foram contadas mil. O contador de histórias foi quem inaugurou o largo e este viria a ser o ponto de encontro de toda a população. Um largo largamente amplo, com margens largas, árvores de tronco larguinho, não muito porque ainda eram novas e digo isto com uma larga margem de certeza, porque as vejo todos os dias quando vou para lá alargar os meus horizontes através da leitura alargada.

O Conto não sabia escrever, por isso usava a memória como folha e o pensamento como caneta. Depois as histórias eram passadas ao contador de histórias e este publicava-as em livros. O último livro chamava-se “o laço” e o seu lançamento, tal como de todos os outros era sempre realizado no largo. Nesse dia, era ver as pessoas a jogarem-se de forma jogada, com unhas e dentes a fazerem jogos e a serem jogadoras, umas contra as outras para conseguirem ganhar o jogo do lançamento d` “o laço” lançado.

Quem sofria um sofredor sofrimento, era a mulher do contador de histórias que tinha uma paixão apaixonadamente apaixonada pelo historiador e pelas suas histórias. Era uma injustiça que o seu marido, vazio de pensamentos, de sentimentos e de palavras fosse visto como o autor de tão belas histórias. Por outro lado, nunca tinha visto o historiador, mas tinha a certeza que tal existência existencial tinha de existir. Nunca ninguém o tinha visto fora da sua suposta casa, a terceira a contar do largo. Ninguém, à excepção do contador de histórias.

A casa tinha uma única divisão, uma única porta, uma única janela e um único ser lá dentro, o Conto. A troca processava-se da seguinte forma, o historiador entregava as suas histórias em código morse através de silenciosos toques no vidro da janela, como forma de pagamento, o contador de histórias entregava, sem nunca entrar em casa, pequenos torrões de açúcar ao historiador.

Sempre assim foi e sempre assim seria se a paixão da mulher do contador de histórias pelo historiador não fosse alterar esta rotina para sempre.
Certa noite, percorreu de forma percorrida o percurso que se tinha de percorrer desde a sua casa até à casa do Conto, forçou forçosamente e com toda a sua força a abertura da porta e não viu nada. Um grande vazio. Com um grande desgosto de amor, voltou para casa. Afinal, quem escreve as histórias? Ao mesmo tempo que fazia esta pergunta, apareceu um sorriso a sorrir muito sorridente na sua cara. O seu marido… afinal era ele próprio que escrevia e que bem!
Ao mesmo tempo que fazia esta pergunta, o seu marido não podia sequer sonhar que neste momento jazia esmagada no chão, o Conto, formiga solitária e solidária.

Naquela noite por culpa de uma curiosidade curiosamente curiosa morreu um historiador, uma história, um amor…

Naquela noite por culpa de um segredo secretamente segredado ao vidro de uma janela morreu um contador de histórias, um largo, um laço…

São as pequenas coisas que nos conseguem agitar mais fortemente, aquelas que por estarmos centrados em nós próprios são esmagadas inconscientemente e com isso provocamos danos irreparáveis.

sábado, 27 de março de 2010

O Transeunte




O ar pesado infiltrava-se entre as preces devotas que zumbiam baixinho. Era chegada a hora…

É o momento final, dentro em breve, tudo estará envolto na bênção da paz, ele irá partir e resta-nos a nós, que atracados à costa como barcos sem vela, vê-lo-emos vogar pelo mar alto. Juntem-se agora irmãos e irmãs, acompanhemos este nosso irmão na hora da despedida.

À sua volta, um véu de angústia, de apreensão. Tinha sido uma longa jornada até chegarmos aqui, à beira do desconhecido, prestes a trespassar a arcada velada que guarda o portal sagrado. Para lá dela, o Outro Mundo….

Nós, que ficamos para trás. Nós, os néscios e pueris. Nós, que amamos sem saber, sabemos que haverá menos um de nós, entre nós. Mas para lá destes nós que nos enlaçam premente, entre estes atilhos que amarram nossas almas umas às outras, do entrelaçar de vozes que sobem ao ouvido do Criador, Te rogamos. Leva o nosso irmão pela mão, Senhor. Firme, paternal, jovial. Segredai-lhe que nada há a temer, para além da espiral de Luz que de Vós ilumina, eu nada temo. Não o deixeis correr atreito a perigos, fascínios e desejos. Rogai por esta alma que transita Senhor, ele é um dos nossos, parte de Vós.

Os mais novos oferecem-lhe penas. Os anciães, de mansinho, pousam um a um a mão sobre a sua testa, esboçam um frágil sorriso de confiança por entre os olhos marejados de saudade. Mas a tristeza não rasga a fé que os une, o lamento é pela separação, não pela partida. A dor é de tanto amar um dos seus, o amor é por tanto e tudo o que dói quando chegado o momento. O momento é de despedida, um ‘até breve’ sonhado reencontro desejado. Um aceno ao passageiro que atravessa o rio. Um rio que nos aparta mas nunca nos separa, em suas águas a proximidade do eterno, teias de suspiros cobrem a face do transeunte. Um véu assenta sobre sua existência.

Cessa. Apaga-se a minúscula chama. O portal foi transposto. Rumo ao Outro Mundo.

Em aquiescência, vergados sobre si mesmo, a família e companheiros prestam uma última homenagem antes do início do novo ciclo da Alma Eterna. Rumo ao seu destino, envolto na voz sublime de seus pares, o Ser desvela os segredos da Criação.

Em silêncio e no divino privilégio que só é permitido aos favoritos de Deus, observam e registam o paradeiro do seu irmão escolhido.

No fim dessa mesma madrugada, nascia feliz e saudável a criança. Com o primeiro choro sossegou seus pais e alegrou seus pares.

Os anjos cantavam aleluia. Estava cumprido o desígnio Maior. Um dos seus mais amados irmãos voltava à Terra. O Escolhido de Eloim tinha partido de sua casa e transposto o Portal.

No mundo dos Homens surgia uma luz por entre a escuridão dos dias tenebrosos que se viviam. Era o nascimento do novo Profeta.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Felizes juntos


(Die Form - Inhuman)



Ela é como ácido, corrói-me por dentro. Revira-me as entranhas com garras de ferro e vidro. É implacável comigo, odeia-me, despreza-me, esmaga-me com violência contra a parede. E faz amor comigo.


Eu sou um mero espectador, vejo-me a mim mesmo, só e abandonado à minha sorte. Vejo. Observo. Gesticulo no ar com arpégios suaves, como se o seu corpo fosse um piano inalcançável, que eu quero tocar. Tocar. Mas não me é permitido. Não até ela dizer que sim. E fazer amor comigo.


Ela é doce, cândida, amável, paciente e delicada. Obediente. Ciente do que a espera. Ciente da besta que há em mim. Fomenta a besta que há em mim. Alimenta-a. Adorna-a com os pedaços rasgados de roupa que ainda a cobrem. Despe-se. Oferece-se. Submete-se. E faz amor comigo.


Eu sou cruel. Não amo, só desejo. Não temo o que ela tem para oferecer. Finjo ser cruel, mas sou um cobarde, vivo no terror dela. Vivo na agonia que ela me deixe. Nos deixe. Nos abandone. E não façamos mais amor. Juntos.


Ela. Ela. O espelho e o seu reflexo. A Diva e a Serva. A Cerva e a floresta que a rodeia, as árvores onde me escondo, com medo e desejo. A ninfa do lago onde me banho, na água que fica conspurcada pela minha insensatez. A mulher perfeita. A mulher delirante. Eu olho. Toco. E fazemos amor.


Eu sou louco, inquieto, ansioso e metódico. Meço as horas que me faltam até chegar a casa. Meço as palavras para que não me oiçam. Meço a distância dos meus passos, para saber onde estão os outros, aqueles que nos invejam, aqueles que nos desejam mas que dizem nos odiar. Que somos uma vergonha, um nojo, uma desgraça. Que não vivemos numa casa, mas sim num antro demoníaco, num covil de sevícia. De delícia. Dizemos nós. Olhamos para eles. Desprezamo-los. Enquanto fazemos amor.


O princípio da feminilidade, da verdade absoluta, da divindade manifestada, da imaterialidade do ser, do perfume inebriante, da maldade dos teus olhos, da vontade do teu corpo, da beleza do teu rosto, do brilho dos teus olhos, da marca dos teus dentes na minha pele, da marca dos meus dedos nas tuas costas, do aroma do teu cabelo, do sabor da tua boca, do frenesi que fazemos, quando fazemos amor.


Eu sou um pedinte, um poeta falido, um cão desobediente, um homem de extremos.
Ela é vedeta, estrela de cinema, primadonna, dona, imperatriz, meretriz, actriz, cicatriz.

Ela é mel que escorre, palavra que morre, água em que me afogo, fôlego em que sufoco.

Assim somos.
Felizes juntos.

Os três.


(repescado do extinto grupo 'Desafio 500')

terça-feira, 23 de março de 2010

O silvo


Bruto impulso o que lhe bate.
Ergue-se e decide o dia.
Será hoje.

A noite havia sido de plumas. Os sonhos rendidos ao cansaço deixaram-se sonhar, em leve peso, e definiram passos por dar. A noite conselheira impôs-se e conquistaram-se as certezas. Trazidas na aurora, as decisões abriram o armário, vestiram o casaco e sairam, não sem antes se fortalecerem num pequeno-almoço.Os favos de mel no leite adoçaram a voz e pôde, então, calar a rispidez deturpadora da razão.

Há feridas que não se podem lamber.
A carne viva não sara.
Será hoje.

Saiu num disparo decidido. O Manta 1600 interrompeu o silvo da pressa que trazia e cumpriu a missão, mostrando o destino. Não era esperado, tampouco desejado. Os olhos encontraram-se na cruz do fogo e disseram a verdade. Sentiu-se de novo o silvo, mas já não era o seu. Não era fruto da pressa. A louca decisão dos sonhos de pluma em noite conselheira.

Foi hoje.

Destino



Ela estava parada, olhando para a estrada que se abria à sua frente.
O nascer do sol estava a despontar por detrás do monte.
Aquela manhã que estava raiando parecia uma pintura. E que bela pintura! Uma cena completa com cores, sons, cheiros... Cores diversas, que se entrelaçavam sons de vozes, crianças gritando, algazarra, conversas, alegria... Cheiro de café fresquinho, e também o perfume do jasmim que vinha do jardim... Ela respirou fundo, inspirou aquele que era um instante mágico. Se fosse possível congelar aquele momento, ela poderia ser feliz para sempre, dentro daquela paisagem. De repente, ela acorda de seu devaneio, percebe que esteve a sonhar acordada, esboça um sorriso, ouve o som de buzinas, percebe que o sinal está aberto e segue em frente.
Porém, a cena pode ser diferente... Ela estava parada, olhando a pilha de trabalho que a esperava. Seu chefe cobrando prazos, aquele cliente chato acabara de chegar, e ela ainda tinha que sair para levar sua mãe ao médico hoje... Ela repassa cada momento ruim que provavelmente vai acontecer no seu dia.
Depressa, depressa! Não vai dar tempo, estas atrasada, estão a tua espera e ainda mais o trânsito, a chuva... Que horror tudo isso! E ela pensa: é assim que vivemos. É assim que muitas pessoas vivem!
A chuva cai lá fora e parece envolver a cidade numa dormência total, como se as pessoas, as árvores, as casas tudo estivesse húmido e envolvido numa sonolência que traz consigo, não a serenidade da alma, mas o desassossego geral.
Os dias parecem arrastar-se penosamente.e a palavra destino...soa-lhe forte, bate.
Destino.. é uma palavra. Tudo é destino. Pelo caminho da direita ou da esquerda, a escolha que fizermos será o destino. Não há que falhar. É uma ideia confortável e fácil.
Acreditar no destino é uma fraqueza humana. Das mais primárias e arcaicas. O nosso percurso resulta do nosso destino. Com certeza, porque não? Mas se é "nosso" então podemos "ajudá-lo"...mete a mudança e arranca com toda a certeza a vida não olha para trás.

Uma semana é tempo mais que suficiente para saber decidir se aceita ou não o seu destino...sai dali com a a ideia que não vai esperar mais pelos ventos que varrem as folhas do chão.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O Sonho



Nas minhas longas noites de não fechar de olhos
o meu corpo forma linhas paralelas com o céu e a terra e
o dióxido de carbono que sai de mim é sempre perpendicular aos dois
Nas minhas curtas noites de fechar de olhos
giro em torno de mim mesma, num eixo imaginário e
marco os lençóis que ajudam a não sentir os pregos da minha cama
O meu não fechar de olhos é apático
faço promessas a mim mesma, dou ânimo ao meu corpo dorido
sempre com a eterna esperança que uma noite venha
montada no seu cavalo branco e mate esta vigília
Nas minhas infernais noites de pálpebras invisíveis
tenho os olhos secos num olhar fixo ao céu
imagino lágrimas que não existem
imagino soro que não tenho e
desespero por Hipnos
Nas minhas negras noites de não suspensão
grito em silêncio a ti
procuro-te no meu olhar
procuro-te no céu e na terra e
procuro um rasto teu nos meus lençóis…
Nas minhas tenebrosas horas
em que o meu corpo está na parte escura do planeta
a razão diz-me que não sabe onde estás
mas o coração diz-me que se escutar o seu bombear
tu virás olhar-me nos olhos
chorar para dentro deles
pregá-los com os pregos da minha cama
dar-me a mão e
paralelo a mim, assistir a todas as fases do meu doce sono quimérico.

sábado, 20 de março de 2010

Dormência


(Anathema - Sentient)

Não posso negar.
Cada vez que oiço a água a correr por entre as pedras, penso em ti
Sempre que os olhos me doem de ver tanta luz, penso em ti
Quando sinto o inverno a chegar à minha janela, penso em ti
E se procurar o pedaço que falta na minha alma, procuro-te a ti…

Por mais que eu tente, por entre nuvens de horas e pó dos anos
Por muito que tente recordar o peso que as palavras tinham em minha boca
Por tanto que passei só para poder esperar eternamente, paciente
Por tudo o que faria só pelo prazer de beijar a tua boca
Por tudo o que há em ti, que eu sinto que falta em mim

Eu caminhei mil vezes em torno de mim mesmo
Procurava a resposta para as questões que nunca te coloquei
Percebi então que perante o universo finito só teria uma solução
Fugir de ti
Negar-te a ti
Perder-me a mim
Dormir… por fim

E enquanto sentia o frio do destino final
Deixei-me ficar aqui, a ver as nuvens de horas a passar, o pó dos anos a assentar
A tristeza, o pesar, a dor, nunca me deixou voar para longe
Longe de mim
Para perto de ti

E assim ficarei,
Para sempre a contemplar o reflexo vazio que refulge por entre as teias do espelho
Para sempre a murmurar a cantilena que me embala neste pranto baixinho
Uma sombra de mim próprio esconde-se na noite selvagem
E à medida que os sentimentos crescem no meu âmago
Saberei de ti
Sentirei por ti
Negar-me-ei de ti
E saberei
Que morrerei aqui
Completamente só
Sem sombra de ti

Para sempre nesta dormência que nos embala
Tu, guardada na minha memória
E eu partirei por fim
Sem que no mundo haja memória de mim

quarta-feira, 17 de março de 2010

Loucura ou Sabedoria...




É, a Velha Sábia me tomou pela mão há muitos anos e me conduziu por todas essas estradas vicinais... De vez em quando, engraçado, quando estou devorada de perplexidade, penso nela. E marcamos um encontro à sombra de uma árvore. Ela sempre está lá, envolvida num xale, cabelos longos presos num coque folgado. Sorriso de quem, embora já tenha visto tudo, ainda é capaz de maravilhar-se. E o melhor colo do mundo...
E diz-me na sua voz suave...

-O que é entendível para alguns é absurdo para outros.
-O que é correcto para mim, é detestável para ti.
-O que é convenção para alguns, é ridículo e inapropriado para outros.
-O que é novo para um, pode ser inaceitável para o outro.
E assim seguimos vivendo. Mas, qual é o ponto correcto em tudo isso?
Simplesmente, aquele que nos satisfaz.

Na vida não há certo ou errado. Há o que nos preenche e nos satisfaz.

Há uma frase célebre que diz:
Quando encontro a resposta, o Universo muda a pergunta!

Ou seja, estamos em constante evolução e precisamos de lucidez para entender o que acontece à nossa volta, sem nos preocuparmos em controlar a vida dos outros via julgamentos e rotulagens de acordo com nossas verdades.

A vida é Causa e Efeito. Isso sim é verdadeiro. Tão verdadeiro como a dor, mas supérfluo como o sofrimento. A dor é inevitável, porém, manter o sofrimento é sempre opção nossa. Aprendemos com a dor. Com o sofrimento estragamos a saúde.

Só e tudo isso.Não existe o ruim, falta o bom. Não existe a vaidade, falta humildade. Não existe a raiva, falta o amor.
Por pensar assim podemos ser apelidados de insanos, loucos mesmo...
Portanto, sempre que alguém está sendo julgado como louco, pode estar apenas vendo mais longe do que os padrões convencionais que aplicamos em nossa vida, Como as pessoas estão ávidas de conhecimento? E vocês perceberam como aumentaram os loucos?
Que tal sermos um deles? As oportunidades estão ao nosso redor. É só agir... Assim, acabamos conhecendo o caminho que nos leva ao saber de ser sábio.

E isto tudo por causa de um post da Cristina Correia:)))

Hora das Estrelas



A hora de dormir para ela era especial, não porque tivesse sono ou já não quisesse mais brincar, mas simplesmente porque era a hora de ver as estrelas. Saltava para a cama e pousava nela como se fosse uma pena, depois, de bruços colocava a cara na almofada de forma a fazer pressão nos olhos. Assim começava a “hora das estrelas”, aquelas que se vêem dentro dos olhos quando estes estão fechados por fora mas abertos por dentro.

Não era muito confortável aquela pressão nos olhos, mas para ela compensava. Estrelas mágicas de várias cores que se movem, que giram, umas mais depressa do que outras, que aparecem e desaparecem, que tilintam ou mantêm o brilho estático… E o melhor é que isto tudo acontecia dentro dela própria.

Respira… respira… respira… os pulmões imploravam para respirar, mas ela ia sempre até ao limite tal era o encanto. Inspira! Expira! Inspira! Sorriso e novo mergulho. Aquelas estrelas nunca se esgotavam, pareciam mesmo que se multiplicavam por cada nova tentativa de vê-las. Eram mesmo muitas, e cada vez mais encantadoras. A menina pensava “quantas pessoas estarão também a ver estas estrelas neste preciso momento?” Para ela era impensável que mais ninguém fizesse isto todas as noites, aliás, o mundo ia ser muito estranho se tal não acontecesse.

Mas o mundo é mesmo muito estranho. Hoje, a menina já não faz isso antes de dormir, mas sim de cada vez que quer fazer uma “pausa”. Não chamo a isto fugir, mas sim olhar para dentro e ver como simples estrelas nos podem ensinar a ver o mundo. Por vezes, precisamos fechar os olhos completamente para voltar a conseguir abri-los com o mesmo brilho que tínhamos no olhar quando éramos da idade da menina.

Sabe que horas são?

Auto de Fé



Aos 12 anos o meu pai deu-me o que nessa altura chamávamos “uma valente coça". Não foi a primeira e não seria a última, não é por isso que me lembro tão bem dela ao ponto de esquecer todas as outras.

Há 20 anos usava-se de tudo no que tocava aos cânones educativos dos progenitores: começava a dar-se liberdade a mais mas também os havia pidescos e castradores. Os meus pais não cabiam em nenhuma dessas gavetas. Eram estranhos simplesmente. Socializar resumia-se à insistência nas visitas à ranchada de primos e tios e avós e cunhados que havia espalhados pelos arredores de Lisboa, à ideia de que não existe outro clã que não o da família, guardiã dos segredos e fiadora de patifarias mútuas, ao ponto de eu começar a chamar às nossas reuniões ‘Domingos Corleone’. Acho que nunca perceberam a piada, até ao dia em que o meu pai viu uma reposição do Padrinho na televisão e me olhou de lado, sobrolho franzido e bigode à banda, com aquele ar dele de “ó rapaz… chega aqui que temos de conversar os dois…”

Uma das minhas recordações de infância preferidas é o talento inato que tinha para arranjar confusão, sempre que sentia as coisas demasiado paradas no ar inquinado das tardes na velha escola, quando a voz solene dos professores se transformava em prédicas tão compreensíveis como uma língua eslava. O sol lá fora, no pátio, era sempre mais forte, chamava sempre mais alto do que os discursos directos e indirectos, as fracções e os verbos irregulares.

Havia um professor de desenho que me irritava particularmente, um puto de 20 e tal anos, loiro como um ariano imbecil que, por insegurança ou imaturidade, nos tratava com uma arrogância velada. Não me lembro do nome dele mas recordo que era tudo o que eu não queria ser e de como se tornou a minha vítima preferida naquele 7º ano. Tinha um carro desportivo que estacionava à porta do Liceu, azul eléctrico, brilhante como uma afronta e, ao fim da tarde, uma namorada linda como uma actriz de cinema esperava-o sempre ao portão. Mas também me lembro de como se insinuava para as raparigas mais velhas, nos corredores, dos seus fatos caros, do quase nojo com que nos corrigia junto à mesa, como se tivesse medo de apanhar piolhos com aqueles putos sujos a quem fingia ensinar alguma coisa.

Um dia, do nada e a meio de uma aula, atirei-lhe à cabeça uma borracha daquelas verdes e duras, enquanto ele escrevia no quadro. Seguiu-se um momento de pânico nos olhos dele, já cheios de uma ira humilhada, enfrentando todos os 25 pequenos trastes conspirantes.
- Quem foi que se acuse já! Quem foi, que fale agora e evita que toda a turma vá agora mesmo ao Conselho directivo comigo. Fica tudo suspenso, ouviram?!

Poucos me viram naquela fracção de segundos em que o projéctil cruzou, numa curva perfeita, o ar da sala de aula, direito à cabeça angélica. Mas, desses dois ou três bravos, ninguém abriu o bico.
- Estão a ouvir?! – gritou de novo, cortando o silencio sepulcral – Quem fez isto que se acuse ou as consequências serão gerais!

Não sei se por camaradagem, espírito que, até então, me era completamente desconhecido, se por estar farto de manter anónimo o meu crime perfeito e querer brilhar como um rebelde sem causa (inclino-me mais para esta hipótese), confessei num grave, para que a ridícula voz em mudança não me traísse:
- Fui eu, s’tor.
No Conselho Directivo decretaram-me três dias de suspensão e, à hora do jantar, o telefone tocou em minha casa mesmo a tempo da sopa. O meu pai atendeu o director com uma voz solene e consternada, enquanto me olhava de frente com o seu melhor Clint Eastwood.
Foi direito à pilha de livros de quadradinhos que tinha escondida debaixo da cama, dezenas de Homens Aranha comprados no quiosque do Sr. Eduardo a custo de muito choradinho e poupança, e levou-os com ele. Abriu a porta da rua e encaminhou-se com raiva para as traseiras de casa. Eu, numa fúria assustada, a correr atrás dele: - Que é que estás a fazer?

O meu pai seguia em passos lagos e decididos pela alameda de tílias alcatifada de folhas. Junto ao muro do cemitério parou e atirou os livros para o chão. Sacou o isqueiro do bolso, pegou fogo a um dos comics e depois atirou-o com desprezo para a pilha a seus pés. Por esta altura eu tentava salvar o maior número de exemplares que pudesse, debatia-me no meu pânico e deixava cair metade. O meu pai só abriu a boca para dizer: - Pára quieto ou levas a maior sova da tua vida.
Não precisei de muito mais argumentos. Bastou a mão de ferro no meu ombro e o olhar glacial. Fiquei ali, parado ao lado dele, a contemplar a hecatombe dos meus superheróis de papel.


Estive perto de dois meses sem dirigir a palavra ao meu pai. Isso só aconteceu no dia em que ele entrou pelo meu quarto dentro a dizer para eu me arranjar porque ele tinha bilhetes para a bola.
- Não vou contigo a porra de bola nenhuma.
E, ao contrario do que eu estava à espera, a mão dele não voou em direcção à minha cara. Olhou-me apático, virou costas e saiu.
Passados dois minutos encontrei-o na cozinha, inclinado sobre o lava-loiças. Lá dentro ardia a preciosa colecção de selos que ele andava a fazer há quase 20 anos.
Virou-se para mim e atirou:
- Quites?

Nessa tarde fomos à bola.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O lado



A esquerda era um lado, igual ao outro lado, tal como a direita era um lado, igual ao outro lado. Frente a frente, eram quase o reflexo uma da outra.

Mas a esquerda, que vinha sempre do lado esquerdo, trazia com ela, porque assim tinha de ser, uma etiqueta. “Torcida, torta, desajeitada, desastrada, mal-jeitosa, desagradável.”

Já a direita, que vinha sempre do lado direito, trazia com ela, porque assim tinha de ser, uma etiqueta. “Sagaz, astuta, esperta, desenvolta, entendida, ágil.”

A esquerda, sempre possuída pelo diabo, porque assim manda a tradição, foi levada para a praça pública. Ia ser queimada viva. A direita, menina bonita, oferecia o fogo e era aplaudida por isso.

A esquerda possuída, ia ser decapitada. A direita bonita, oferecia o machado.

A esquerda possuída, ia ser enforcada. A direita bonita, oferecia a corda.

A esquerda possuída, ia ser afogada. A direita bonita, oferecia a água.

A esquerda possuída, ia ser apedrejada. A direita bonita, oferecia as pedras.

A esquerda possuída, ia ser electrocutada. A direita bonita, oferecia a descarga eléctrica.

A direita bonita, que tanto gostava de presentear, jazia morta ao lado da esquerda possuída. O corpo é um bom condutor de electricidade. Todos os outros aplaudiram em silêncio, com a única mão que lhes restava e foram para casa pelo lado esquerdo da estrada.

domingo, 14 de março de 2010

A Ti...



A verdade é que às vezes parece que as coisas vão manter-se inalteráveis. Olhamos para trás, espreitamos para a frente e tudo permanece igual. Somos invadidos por toda a fraqueza que existe e perdemos a força até, para nos levantar. Às vezes descarregamos nos outros, na parede, no caderno. Muitas vezes. Demasiadas vezes descarregamos em nós, toda a fraqueza de que é composto o Mundo. Não alcançámos. Não chegámos. Não fomos suficientemente qualquer coisa que queríamos muito. Caímos derrotados – no chão. Não! Não estou a usar metáforas, estou a falar daqueles que caem literalmente no chão. Que esbarram o nariz contra o chão e derramam as suas lágrimas e os seus restos e que a dado momento se confundem com a própria sujidade que pisam.

A dada altura não há música que acalme, não há almofada que aconchegue, não há lembrança que nos faça sorrir. A verdade é que a única verdade que existe nesses momentos é que as coisas vão manter-se inalteráveis.

Passam horas, passam meses, passam estações e vejo-me ali sentada entre a terra, o céu e o infinito. Não sei em que penso, mas talvez não pense em nada. Pensar em nada é uma coisa boa, asseguro-vos que sim. Sabem aquela sensação de abrir os braços e de se deixarem cair sobre o Mundo?

As coisas nunca se mantêm inalteráveis. Não. Não. Não!

Existe em cada hora, em cada mês, em cada estação a possibilidade de abrirmos os braços e de nos deixarmos cair, sem ânsias, sem pensamentos, sem medos.

Existe e neste momento, eu abri os braços e caí sobre um pano de tecido de mundo com dois laços de cetim.

...Querida Catarina!

Escrevi estas linhas a pensar em ti apos a nossa tagarelice hoje, no teu dia.

Força!!ja falta pouco,o chocolate e os morangos estão a tua espera.

sábado, 13 de março de 2010

Ela



Ela
Ela é a companheira que não acompanha
Ela é uma senhora fria e nublenta.
Ela é tão lógica quanto eu,
E é tão segura de si...
Ela tem as proporções que eu quis
E as que às vezes não queria.
Ela é linda,
E é fria;
Ela é luz,
Mas é noite...
Ela costuma estar a sós comigo,
Mas encontra-se muito na multidão.
Quando está faz-se notar;
Nota-se nos meus olhos.
Ela é perigosa mas sábia,
Ela é descanso mas errónea,
Ela é vida e ela é morte...
Ela nota-se nos meus olhos.
Ela é silêncio.
Ela é música em pensamento,
Mas é filha da ausência de som.
Ela lembra-me sempre um passado.
Ela é banco de jardim nocturno,
Ela é acre.
Ela é mãe do desespero
Ou madrasta da descoberta.
A sua chegada é sempre terrivelmente coerente
Pois ela é companheira da razão.
Ela é o caminho da sabedoria
Ou
Ela é estrada sem saída.

Ela é solidão.

Os sapatos na calçada



Toc Toc e os sapatos na calçada, a curiosidade de quem passa e o passar em todas as vidas de quem olha. Incorporamos milhares de momentos em milhares de vidas. Fazemos parte. Integramos. Uma mulher de vermelho que passa - sorri. Um velho encostado ao poste – estanque. A criança no chão parada – que chora.
Ser visível é simplesmente estar ao nível dos olhos. É chegar a casa, é sentar na esplanada,abres o livro ao acaso e reencontras palavras certeiras.
Tudo faz sentido, mesmo que não o reconheças, mesmo que agora não consigas ver. Lembras-te daquela tarde? Daqueles saltos altos e daquele poder? Lembras-te? É isso mesmo, pequena. Sorri. Sorri apenas se ainda não te apetece rir muito. Mas sorri porque daqui a pouco soltarás aquele sorriso – aquele sorriso enorme e conquistador de todo um mundo de sonhos.
Do teu mundo é fechar os olhos e recordar a mulher de vermelho, o velho e o poste, a criança e o choro. A nossa memória é feita não só dos que nos compõem, no seu sentido mais próximo mas de estranhos, também.
Toc Toc e os sapatos na calçada, o cachecol ao vento e um sorrir cheio de ti.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Boleia

(Nota: texto já publicado n'outra 'encarnação')



De certeza que já vos aconteceu... irem a andar descansados da vossa vida e, subitamente, sentirem um enorme calafrio espinha abaixo. Sabem o que é? Eu também não sabia, ou melhor, julgava que sabia. Seria uma corrente de ar, uma gripezita a pegar, falta de sono, um pressentimento...
Um dia, há já vários anos atrás, descobri tudo, o que queria saber e o que desejava nunca ter conhecido...

Estávamos no primeiro ano da década de 80, num Portugal ignorante e desorientado que não sabia o que fazer com o bebé da democracia que agora lhe berrava aos ouvidos com fome. Eu já tinha experimentado de tudo quanto o PREC tinha para oferecer, desde a aventura fácil com as subalternas da repartição até às novas alternativas para inebriar a mente e confundir os sentidos. Sexo, drogas e rock & roll, yeah, era isso mesmo. Curtir os Stones, Genesis, Floyd, o Zeca e os cantares do Rancho folclórico de Arganil, isso é que era vida. Os russos tinham a sua olimpíada, onde passeavam o fervor soviete pelas pistas e estádios livres de americanos capitalistas. Nesse ano o mundo perderia o Sartre, o Vinícius, o Piaget, o Lennon e o Hitchcock. Nós por cá descobríamos uma nova receita de borrego assado quando o nosso então Primeiro Ministro caia das alturas sobre os céus de Camarate. Também morreria o Caetano, mas não seria a última vez que os Portugueses teriam que aturar um Marcelo com queda para falar na TV. Algures nos mares do sul nascia uma estranha nova nação chamada Vanuatu, e no Brasil nasciam dois monstros do princípio do Séc. XXI: o PT de Lulla da Silva e a Gisele Bündchen. Em Portugal haveria de nascer muita gente da qual eu nunca iria ouvir falar.


Era madrugada de dia 12 de Novembro, e a tenaz da ressaca ainda me recordava uma piela em nome de um general romano que supostamente cortou a capa em dois para abrigar um pedinte. Eram 6 horas da madrugada quando saia da casa de uns amigos lá para os lados de Sesimbra. Esperava-me uma viagem tranquila, umas curvitas para sair da vila e uma longa recta até chegar à ponte rebaptizada que era então a única a atravessar o Tejo dos lisboetas. A cabeça cambaleava e os olhos ameaçavam fechar. Piscava-os numa tentativa vã de comunicar em morse o que a boca já não tinha coragem de proferir: estou morto de sono. Tinha andado poucos quilómetros quando fui surpreendido por uma luz forte que me fez guinar o carro para a berma. Travei a fundo, ao mesmo tempo que o despertar violento da iminência de acidente me lembrava as palavras do filósofo. Eu era de facto mortal.

Recompus-me calmamente. Peguei no volante, dei um toque no acelerador e preparava-me para engatar a marcha quando senti um enorme calafrio e olhei pelo retrovisor. No banco de trás do meu carro, antes deserto, estava agora uma jovem magra e sorridente, tez morena e cabelo liso, que me pedia lume com a maior das tranquilidades.

- Quem é você??!?!? – disse eu num tom apavorado enquanto a garganta secava e me virava apavorado para trás.
- Sou a tua boleia. Deste-me cabo do carro agora levas-me para casa ! Dás-me lume?
- Mas como é que entrou no carro? Não me lembro de ter...-
- ... deixado ninguém entrar? Eu até me espanto que já estejas acordado, tal o bafo a pinga que vai para ai.-
- Mas o que foi que aconteceu afinal? E quem diabo és tu???-
- Sou a tua ‘pendura’, já te disse. Vinhas em contramão e fizeste-me sair da estrada. Bati com o carro num pinheiro e fiquei sem saber o que fazer. Até que reparei que estavas ainda aqui e decidi que me irias levar de volta à casa do meu namorado. Não quero ficar sozinha esta noite depois do que me fizeste.-
- Ok, ok, peço-te imensa desculpa.... mas estás bem? É preciso ir ao hospital ou...-
- Não, não vale a pena irmos para hospital nenhum. Anda lá, e vê lá se te despachas com o bendito lume!-
- Mas não preferes passar para o banco da frente?-
- Não, gosto que sejas o meu chauffer. Tens pinta de ‘marialva’ e não me apetece que te ponhas com tentativas de apalpanços.-
- Mas o que dizes tu? Não sabes nada...-
-... sobre ti? Ah, és tão transparente! Topa-se logo que és do tipo dado a brincadeiras, e por hoje já brincaste o suficiente. Agora guia, e tira-nos daqui.
- Pronto pá, também não é preciso pores-te com tretas e insultos. Mas não queres ir dar uma olhada no carro antes?-
- Não merda, anda lá com isso! E essa porra do isqueiro vem ou não?!?!?
- Calma, ‘tá aqui! Vamos lá então... Como te chamas?
- Maria.
- Simplesmente?
- Isso é alguma das tuas piadinhas? Não, Maria de Jesus.
- Meu Deus – disse com um sorriso idiota e inevitavelmente engatarão – Não sabia que levava aqui a Nossa Senhora! Hehe


Ela inclinou a cabeça para o lado, puxou profundamente por uma passa e libertou o fumo com lânguida lentidão. Olhou para os meus olhos no retrovisor e disse:

- Por acaso vês algum halo?

O mais surpreendente é que vi mesmo uma auréola verde bafienta a cobrir-lhe o alto da cabeça. Mas que bomba, aquela jeropiga....

- Então Maria, também vinhas da festa?
- Se podes chamar festa ao que faço, sim, vinha da festa.
- E o que fazes?
- Sou puta. Mas ‘tás com azar, já acabou a hora de expediente e fechou a loja.
- A sério?!? Isto é, ... desculpa, não queria ser intrometido, mas também não é preciso ‘tares a gozar com a minha cara. Não queres que faça mas conversa eu calo-me, mas respostas dessas dispenso.
- Não acreditas, hein?-
- É pá, deixa lá isso. Levo-te para casa e depois ligas-me amanhã a dizer a que oficina foi parar o teu carro.-
- O tipo não acredita, olha-me só... É uma profissão como qualquer outra. E tu, deves ser menino de escritório, todo ‘boneco’ de gravatinha, a andar a papar dactilógrafas na casa de banho da repartição... És tão puta como eu, só não cobras dinheiro, antes queres fazeres uns favorezitos a promover as tipas do que aceitares uma milena pelos teus serviços de boi de cobertura.-
- Oi, calminha ai com a conversa. Tu não me conheces de lado nenhum!
- Não? Tens a certeza?-
- Que queres dizer com isso???-
- A minha cara não te é familiar?-
- Ah?-
- Olha lá bem! –


Travei a fundo. Aquela brincadeira estava a ir longe de mais! Mas o que vinha a ser aquilo, uma gaja marada enfiou-se à socapa no meu carro enquanto eu recuperava do susto do quase-acidente e agora punha-se com merdas de me conhecer?!?... Virei-me para trás para lhe dizer das boas

- Ouve lá ó cabr...-






Desapareceu!
Sem eu conseguir perceber o que acontecera, ela já não estava lá! Desapertei o cinto e enfiei-me entre os bancos para poder ver melhor. Esfumou-se. Teria sido tudo um sonho? Bem, a pinga estava boa e a noite ia longa. Coisas estranhas acontecem nas nossas cabeças. Volto para o meu posto de condutor e preparo-me para seguir viagem.
Mas está tudo calmo de mais. Não se ouve nada. Nem o barulho do vento a sussurrar na folhagem dos pinheiros. Nada. O meu estômago embrulha-se e a boca encortiça. Os olhos abrem-se desmedidamente e as palmas das mãos suam...

De repente viro-me para a direita, e vejo-a sentada ao meu lado, no ‘lugar do morto’. Esta absolutamente estática. Congelam-me as veias e empalideço de horror. Estendo a mão para lhe tocar no ombro, mas a pele antes morena era agora cinzenta-esverdeada, encarquilhada e coberta de muco. Sem saber o que fazer, toco-lhe no ombro sinto-a fria como pedra. Retrai-o a mão bruscamente e grito. Lentamente, ela vira-se para mim, rodando o pescoço numa sequência de gemidos silenciosos e estalidos secos.

- E agora, já me reconheces? –

Onde antes estavam olhos viam-se cavados buracos que emitiam uma luminosidade verde e demoníaca. Os meus intestinos cederam, e desfiz-me ali mesmo num frémito de pânico e terror.

- O que és?! O que queres de mim!??! –

- Não te preocupaste com isso enquanto me comias na casa de banho. Nem te ralaste quando o meu namorado entrou e me viu de perna aberta a levar contigo. Levantaste as calças e desapareceste como se não fosse nada contigo. Ele levou-me dali calmamente e meteu-me no carro. E ali naquele ponto da estrada onde me apanhaste, levou-me para a mata e espancou-me até à morte.
- Mas o que dizes tu? Isso é mentira, eu... -
- CALA-TE! Hoje é dia de pagares. Hoje é o dia da puta receber o que deve!


Desmaiei. Não sei o que se passou a seguir...




Quando acordei estava sozinho numa cama. Tentei mexer-me mas não consegui. Chamei por ajuda e lá apareceu uma enfermeira.

- Onde estou, onde estou eu?!!?? –
- Ora viva! Que bela surpresa!
- Que surpresa?-
- O Sr. finalmente acordou! Sabe quanto tempo se passou?-
- Tempo? De que fala a Sr.ª... o que é que me está a dizer!??!-
- Há uns 20 anos atrás foi dado como morto num acidente de automóvel. Aparentemente despistou-se sozinho quando vinha de uma festa ou lá o que era –
- Mas isso foi ontem! ‘Tá a gozar com a minha cara!??-
- Não, não estou. Não morreu mas entrou em coma. Infelizmente, sabemos que o acidente o deixou tetraplégico.
- Como assim?? Onde está a minha mulher?-
- O Sr. não tem família conhecida. Aliás, já não há propriamente amigos a aparecerem aos domingos para o ver. Sabe, é o drama dos comas prolongados... é uma tristeza. Agora tenho que sair, mas volto já.-
- Srª enfermeira, não se vá embora, por favor! –
- Tenho que ir avisar os médicos que acordou. Mas se precisar de alguma coisa chame por mim –

- Como se chama? –
- Maria. Simplesmente Maria. –

O Chão



Nos dias de não inspiração, ele atiravas os pincéis pela janela do 3º andar. E pela quantidade de pincéis que existiam no chão, esses dias já tinham sido muitos. Ninguém tinha a coragem de apanhar os pincéis, onde caiam aí ficavam. Só o vento os conseguia mudar de lugar e quando o fazia desenhava no chão um rasto de tinta.

Era engraçado ver as pessoas, que passavam naquela rua, a saltitar de espaço em espaço, para não pisar ou escorregar em algum dos pincéis. As crianças apontavam para as pinceladas secas que já existiam no chão e os adultos respondiam sempre “isso não tem nada para ver”.

Nos dias de não inspiração, ele bebia sumo de limão. Arrumava as tintas por aquela ordem que vem nas caixas de lápis de cor. Lavava a paleta e era ver um rio multicolor a ir pelo cano abaixo. Encostava o cavalete à parede da estante. Bebia mais sumo de limão. Ia à caixa que tinha escondida no armário, tirava de lá novos pincéis e colocava-os dentro do copo vazio do sumo. Tudo pronto e arrumado para um novo dia. Sentava-se na cadeira de baloiço que tinha em frente à janela e ai baloiçava até o corpo não aguentar mais. Adormecia.

Numa manhã seguinte a um desses dias, bebeu sumo de limão. Quando ia arrumar as tintas viu que estas já estavam arrumadas e aí reparou em algo que nunca tinha acontecido: dois dias seguidos de não. De não! "Alguma coisa está mal" pensou. Montou o cavalete, encheu a paleta de tintas, pegou num dos pincéis e… descobriu o que nunca pensou descobrir, não tinha nenhuma tela em branco. Dramático com sempre foi a vida toda e em mais um acto de raiva, foi até à janela e atirou o único pincel que ia usar naquele dia, mais a mão que segurava o pincel, mais o braço que segurava a mão, mais o corpo que era dono do braço e…

Era engraçado ver as pessoas, que passavam naquela rua, a saltitar de espaço em espaço, para não pisar ou escorregar em algum dos pincéis, ou no pintor. As crianças apontavam para as pinceladas secas que já existiam no chão e queriam ir ver o pintor mais de perto, mas os adultos respondiam sempre “isso não tem nada para ver”. O pintor olhava para elas e sorria. Ao fim de tantos anos, a verdadeira obra tinha resultado dos dias de não inspiração. Todo ele feito de vento, mão de vento, braço de vento, corpo de vento, tinha como objectivo terminar, ou talvez não, a obra há muito tempo iniciada. A verdadeira inspiração estava três andares abaixo dele.

Às vezes subimos tanto que esquecemos do que está em terra firme, do que pertence ao nosso chão. Depois, precisamos de uma pequena queda para acordar e voltar a ver todas as cores. Tão simples quanto isto. Alguém quer beber sumo de limão?

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Erro - Desafio enredo




O homem de preto olha o céu carregado. Em três, dois, um segundos, agora. Começará a chover.
Mas não.
Agarrada à gigante pilha de madeira cuidadosamente disposta, como uma figura de proa agarrada ao mastro, um barco insano desafiando a tempestade por chegar, os cabelos como algas negras, a pele e as vestes brancas de fantasma ainda por ser, impoluta, a rapariga aguarda serena. Nada tem a temer. Tem três anjos à espera dela, e riem, estão sentados ali ao fundo, em cima daquele ulmeiro, chamam-na com as mãos liquidas. E ela quase sorri. Porque não conseguem vê-los, pergunta-se. Estiveram sempre ali, ali... Ou ao seu lado, cavalgando em selas de fogo, com braços feitos de gume a decepar as cabeças ímpias dos usurpadores.
Como é que eles nunca os viram em cargas de cavalaria alada, a quebrar o lacre do seu sétimo selo de justiça divina, eles e os seus cabelos de luz a cegar infantarias inimigas, a desviar flechas do peito branco e quente de raiva dela? Como é que eles nunca os ouviram sussurrar, verter-lhe nos ouvidos brandas palavras feitas metal liquido? Como é que eles nunca se aperceberam que não lutava sozinha com aqueles homens de andrajos, de repente senhores de todas as fúrias e vitórias?

A rapariga à espera do fogo tinha olhos de corça moribunda a desafiar lobos, rês de sacrifício que explodirá numa vingança celeste, uma luz à volta dela, a inocência como um insulto aos carrascos.
Ei-los de tochas nas mãos.
Já vinham com elas quando, há três meses a julgaram à revelia. Vieram busca-la, ainda a aurora não raiara, para a levarem ao grande salão. Lá dentro, homens de vermelho e negro sentados em grandes cadeirões. À sua passagem, os criados e pajens sussurravam “... a Bruxa...”. À sua passagem, os cães de caça calavam latidos. A rapariga chegou ao meio da sala ainda na penumbra e olhou-os a todos em silêncio. O homem de veludo vermelho, no centro da mesa, encheu de repente a sala com o eco frio da voz de metal.
- A que senhor servis?
- Falais de vozes que vos vêm dos céus, mas como tendes a certeza que vos chegam de lá?
- Porque vos trajais de soldado e renunciais às vestes de fêmea?
Ela jurara que não falaria com os usurpadores, mas ali suportava cada pergunta como o trespassar das espadas, de olhos fixos no crucifixo acima das cabeças dos senhores de vermelho e negro. Como não conseguiam vê-los, aos três anjos empoleirados no vão da janela com o vitral da Paixão, ou a este, a seu lado, gigante de enormes asas que respondia por si, tomando como seus a voz e o ar no peito dela?
Os hereges ali eram eles. E no fim, depois de todas as acusações se enrolarem em novelos de tempestade sobre o ar pesado da sala, ela falou:
“Sou Jeanne, de Domrémy, a Lorena, e se aqui me vêem foi porque assim o bom Deus o quis, não por obra do vosso engenho. Arrependei-vos pois pecais contra Ele ao condenar uma inocente por Si enviada. Não é vossa terra que pisais e sim do meu bom Senhor Carlos, o Sétimo, legítimo herdeiro por Ele designado. E foi a Sua Mão que me guiou a espada e a Sua Voz que me guiou a fúria contra vós. Só a Ele responderei e à sua Justiça. Retirai-vos do solo que não vos pertence e escapai ao fogo eterno.”
Há dois dias, o homem de veludo vermelho entrou inesperadamente na sua cela guardada por cinco homens. “Encomendai a Deus a vossa alma pois ireis morrer em dois dias.”, disse simplesmente. Jeanne mandou vir dois padres para a Confissão nessa mesma manhã.

O homem de negro ouvira-a por duas horas.
A rapariga soltou a vida toda em memórias, como um peso que se tira de cima, como se os seus dezanove fossem centos de anos e almas mandadas direito para o Purgatório. E enquanto as palavras iam caindo à sua volta como lastro, quase que irradiava dela uma luz que aquecia por dentro. Não havia ali ponta de culpa.
A rapariga era louca. Uma louca de Deus e, por isso, talvez uma santa.
Hoje, o homem de negro olha para o céu carregado. Em três... dois... um segundo, agora vai começar a chover, pensa.
Mas não.
E lembra as últimas palavras da Lorena, na cela da prisão onde aguardou o fim como uma benção. “Se foi Deus que mo ditou ao ouvido, já não sei. Tive a certeza que era Sua a voz doce que ouvia quando os ruídos da batalha desapareciam, quando à noite pousava a cabeça no braço. Mas agora duvido que tenha sido Ele a ordenar-me que lutasse para coroar um cobarde que me vendeu ao inimigo, como um pedaço de terra num acordo de paz. Não deve ter sido Deus... Deus não se engana assim...”

“Realmente”, pensou enquanto se afastava devagar, deixando para trás a enorme pira e a donzela ainda por arder, a mão a arrancar do pescoço o fio com o crucifixo e arremessando-o. “Deus não se engana assim...”
Um circulo de penas brancas ficou para atrás, debaixo do Ulmeiro da velha praça do Mercado.

Amor Maior - resposta ao Desafio 'Enredo'


(Dark Sanctuary- L´Arrogance)


Amor Maior

Senhor, ouve agora este teu servo
Eis chegado o momento da expiação
No Teu colo encontrei conforto e amparo
Ao afastar-me de Ti só conheci a desolação…
E é agora a presença do Desolado
Que faz de mim um condenado
Ao rugir das flamas do submundo
Prestes a entrar no sono profundo
Lembro-me dela, Senhor
Recordo-me de todo o seu Amor
Um Amor Maior

A cobardia, Senhor, sabeis bem
É das mais odiosas características do pecador
É daquelas que nos fazem temer, Senhor
Por tudo aquilo que virá no além
Para aquém do medo e do terror
Pecador serei eu por ter acolhido
Tanta cobardia em meu coração perdido
Por temer o amor, o amor reneguei
Mas o que é o amor de um homem sem coração
Um pobre homem fugido de vossa Lei
Um vulto atormentado em oração
Uma sombra que se perdeu no vale do esquecimento
Uma sombra envolta em dor e tormento
Uma sobra perante vós, Ó meu Senhor
Perante o assombro de um sonho d’Amor Maior

Foi pela noite calada que encontrei a donzela
Foi a noite de minh’alma que me escudou de Vossa Luz
Foi na noite que nem a Lua se aproximou da janela
Foi na profunda e negra noite que tudo seduz
Na noite cerrada que a nós nos cega
Pecadores incautos sem ordem nem regra
Pecadores que somos quando não sabemos Senhor
Reconhecer perante nós um Amor Maior

Era branca sua face, refulgindo tímido luar
Era branca sua Alma, era branco o seu olhar
Era a brancura cândida de seu fôlego cadente
Era a loucura enjaulada em meu corpo ardente
Era o som, o perfume, a pose, o caminhar
Era tudo isto que se movia por entre o tímido luar
Era por isto que eu mais temia Senhor
Pelos anos de cativeiro deste desejo e ardor
Por saber que um dia na onda me iria afogar
Do dilúvio do desejo mandado em mim aprisionar
E saber que um homem é apenas um joguete
Nas mãos do que aos fracos tudo promete
E fraco que somos, enfim aceitamos
E num acto menor concretizamos
Tudo aquilo em que não acreditamos
Mas na loucura e horror do desejo avançamos
E fui eu, Ó Senhor, que fui o causador
Da morte daquela que nos cedeu Amor Maior


Movia-se suave por entre as sombras e sussurros
Dos agrestes ventos que açoitavam
Mas a ela Senhor, pareciam que poupavam
Mas a mim soavam como ferozes urros
Que me puxavam do conforto de Vosso abraço
Para o pescoço encaixar no mortal laço


Cego era eu que deixei de ver
Que medo e luxúria estavam a crescer
Pela cega donzela que entre sombras se movia
Quieta em sua prece e melancolia
Partilhando de Vós a maior alegria
Aquela que de mim a cada hora fugia


Cego era eu, pois não quis ver
Que minha congregação em mim acreditava
Que era eu o pastor da palavra indubitável
Que meu rebanho para a mim pertencer
Teria que abraçar a coragem notável
De perante mim seus desejos prender
Pois de mim fluía Tua palavra, Palavra do Senhor
Pois diante de mim viviam teu Amor Maior

E ela era a estranha, a rapariga perdida
De mãe desconhecida e defunta nascida
Entregue às Madres fora em seu cesto de vime
Como o cordeiro que em Vós seus pecados redime
Mas a triste infanta uma triste marca trazia
E seu branco olhar nada mais havia
Cega perante o mundo que agora a acolhia
Não haveria de distinguir entre a noite e o dia
Mas sua fé a todos haveria de tocar
Pois em Vós Senhor, ela queria acreditar
Que um destino maior Lhe haveríeis de reservar
Para a todos do Inferno nos poder salvar
Mas a mim, Senhor, ao Inferno me iria condenar


Cego era eu que deixei de ver
Que medo e luxúria estavam a crescer
Pela cega donzela que entre sombras se movia
Quieta em sua prece e melancolia
Partilhando de Vós a maior alegria
Aquela que de mim a cada hora fugia


E na escura noite de minh’alma a tomei
Ao roubar seu fôlego a fiz desmaiar
E em meus braços tombar
Para a abraçar
Amar
E ao acordar
De nada se poderia lembrar
Pois na tenebrosa noite que então terminava
Em seu ventre o filho do medo e luxúria se formava


E viu o povo que se sentava na missa
Que a alva donzela cega antes submissa
Levantava a voz pela primeira vez
Para anunciar a boa nova que Deus lhe fez
Pois em seu ventre crescia o fruto do Senhor
Pois nunca jamais conhecera outro amor
Anunciava Cecília, anunciava aos pecadores
Que em seu corpo despertava o novo ungido
Anunciava Cecília, por entre os clamores
Do povo que se erguia estarrecido
Gritava Cecília por apoio do Céu
Chorava Cecília levantando o véu
De donzela pura escolhida por Gabriel
Para gerar o Salvador deste mundo cruel

Pediste a mim, Cecília, abrigo e orientação
Neguei-te Cecília, a salvação
Gritei “Atentos irmãos! Não vos deixei enganar
Pelo leão que por cordeiro se quer passar
E a todos os fiéis irá condenar
Renegai esta criatura que nas trevas se encontra
E às trevas nos condena com suas mentiras
Clamai meus fiéis pela presença do Senhor
Abri-de vossos corações para o seu Amor
E jogai Cecília para a escura cela
Para que a mim o Senhor diga o que fazer dela
Sossegai rebanho acreditai em vosso pastor
Jamais vos deixaria cair em pecado maior”

Em três dias Cecília foi condenada
Por blasfémia e pecado mortal
De se querer dar a acreditar
Com a mãe do que um dia irá chegar
Para a todos os pecadores salvar
Iria então Cecília o povo condenar
A na vergonhosa forca lentamente baloiçar

Mas na noite branca que às sombras me lançou
Chorou baixinho Cecília, por entre uma oração
Chorou Cristo na cruz, chorou meu coração
Que no silêncio da noite branca nunca perdoou
Ao que chora agora por redenção


(Dark sanctuary - L'autre Monde)



Nos momentos antes de ao cadafalso subir
Quis Cecília uma última palavra dirigir
A todo os que desejavam vê-la cair
E o povo olhava temente o altar
Onde o cordeiro iria em breve expiar
Os pecados de quem o deveria salvar


Disse Cecília a quem a ouvia
“Atentai agora no que vos digo
Por entre vós incautos circula o perigo
Vós sim, estais cegos mas porque quereis
Duro é vosso coração e negro como carvão
Jamais tereis de mim condolências ou perdão
Decidisteis aceitar a voz do engano
Escolhesteis seguir o caminho profano
Condenasteis à morte uma Mãe por ser
Destinasteis a pior sorte a quem haveria de nascer
Das profundezas Te clamo, a Ti meu Senhor
Destinai-me por fim um Amor Maior”




No dia seguinte, ao passar pelo terreiro de pó
Dei por mim a chamar, sussurrar, murmurar
Cecília a cega, aqui condenada por suprema heresia
Marcado a negro ficou em mim este dia
Para sempre saber, para a eternidade recordar
Que perante Deus me assumiria um homem só


Tal a vergonha, a ignomínia, a agonia
Decidi que até ao final desse mesmo dia
A minha função de sacerdote resignaria
Abandonado que estava o caminho do Paraíso
Mais perto chegava do Final Juízo
Faria agora tudo o que era preciso
Não conseguiria jamais de viver com tal segredo
Movido pelo pânico, terror e medo
Ao abandonar a vila em total degredo


Perante Vós, agora um estranho, me confesso
Perto que chego do terreno suspiro final
Passados sessenta anos sobre o terrível processo
De Cecília, a cega, uma herege do mal
Que afirmara em seu ventre ter o Salvador
Quando em verdade seria vítima de cobarde estupor

Perdoa-me meu Pai, porque pequei
Perdoa-me Senhor porque sei quanto errei
À morte vergonhosa meu filho condenei
Assim como a única mulher que jamais desejei


A ti, Cecília, na paz do Senhor
Rezo por ti e por nosso filho concebido
Rezo para que o Céu para sempre te acolha
Rezo para esquecer a minha demente escolha
Mas não há reza que me devolva ao Paraíso Perdido
Nem oração tão poderosa que apague esta dor


Por seis décadas fui pedinte e ladrão
Por entre pedras e espinhos fiz minha dormida
Por milénios penarei até ao Armagedão
Para por fim poder ter a minha saída
Embora deste plano esteja preste a partir
Sinto o tanto que falta para terminar esta dor
Abraço em agonia o tormento que há-de vir
Pagamento por ter condenado um Amor Maior

terça-feira, 9 de março de 2010

Desafio 'Enredo' - extensão por +24 horas

NOTA: a pedido de um participante em aflição :) vamos extenteder o prazo de entrega por mais 24 horas, até às 23:59h de 4ªf. Obrigado pelo vosso interesse :)

Olá a todos.

De modo a agitar um pouco mais este blog, a “administração” decidiu que seria divertido (pelo menos nas nossas cabeças meio loucas assim pareceu) criar desafios aos participantes. Segue então o primeiro de uma série de desafios (a serem anunciados periodicamente) com o tema ‘Enredo’. É muito simples, nós fornecemos um enredo muito básico e cabe a cada um elaborar um conto à volta deste ponto de partida.

E eis o ‘enredo’

- Uma jovem confessa-se publicamente no discurso final a que tem direito antes de ser executada. O padre é o único que sabe que ela não está a contar a verdade toda (por mentira ou omissão). Depois de ela ser executada ele renuncia à sua fé e abandona a igreja.

E é tudo. Tem até às 23:59 de terça-feira 9 de Março para participar. Have fun!

Nuno Oliveira e Cristina Correia
(e sim, nós também iremos criar as nossas versões)

PS: não se esqueçam de associar uma música aos vossos textos!

Mentira absurda



Ela poderia tê-lo morto e teriam estado casados mais de uma semana.

Laura tinha sido encontrada sozinha perdida numa praia...o marido morto no quarto do hotel...foi condenada a morte.

Sou padre na prisão onde esteve presa nunca tinha conhecido ninguem assim...era esvaziada de orgulho e manchada de vergonha.Estava a morrer, a morrer na terrivel convicção que Deus não existia.Parva tinha desperdiçado o seu amor,e o ódio a seguir ao amor numa mentira absurda.

Assisti ao seu julgamento e defesa final.


-Ah, ele tinha sido um belo homem!Era forte e um profundo conhecedor em matéria amorosa.não admirava que eu o tivesse amado desesperadamente.não o matei!

-Gostavamos de martinis secos.

-Deve estar na hora de ires-disse-lhe-tenho martinis feitos.Queres um antes de partir?

-Obrigado-disse ele-vou chamar um táxi enquanto o vais buscar.

-Fui até a cozinha.

-Servi os martinis, deixei cair as azeitonas nos copos,peguei numa caixinha.

Por momentos segurei-a com ambas as mãos sob os seios,naquilo que era quase um gesto de amor,a seguir atirei-a fora com um gesto de violência a tampa voou e o pó espalho-se como uma espuma de neve.

Voltei a sala.

-Estão bem secos -disse-lhe.

-Erguemos os copos

-Brinda-mos aos velhos tempos-disse ele.

-Sim aos velhos tempos.

A buzina do táxi soou acompanhei-o até a porta o táxi aguardava.

-Estou livre pensei.Agora estou livre.

No vazio aterrador da minha liberdade,sem mais nada por viver e nada que valesse a pena morrer, desci até a praia.

Dia 18 de Julho de 1959, 10 horas e 40 minutos,dia e hora que Laura deixou de pertencer a este Mundo.


Sai daquele tribunal com a certeza de que nunca mais seria o mesmo.

Entrei na primeira porta que encontrei aberta...

Sentado á mesa de um bar, os dedos da sua mão esquerda não paravam de fechar-se com força presas de uma sensação de falta de jeito sem o cilindro de tabaco enrolado em papel.O mundo conspirava contra um homem que tentasse deixar de fumar, só via gente a puxar por cigarros.Deu um gole no copo que tinha a frente.
Agora ao olhar para aquela sala e para o seu copo, pensou nada vale a pena fui padre durante 12 anos, abandonei, e agora?!recomeçar do nada...?Tum ,tum ,nada, tum ,tum ,tum, nada,à sexta batida,ficou ali sentado a carregar com a mão no peito... o seu coração andava acelarado - estou a ficar velho pensou, lambeu os lábios ,sentindo mais que nunca a falta do cigarro.
Porque não havia ele de ter-se tornado um magnifico falhado ou um fanático padre ou mesmo um esplêndido trapaceiro?

Olhou para o relógio e pensou o que se passou o que fez aquela mulher comigo? O desvairado e mudo grito que lhe ia no espírito era frio e árido clima de um deserto privado em si,conhecedor da bíblia pensou... e dai Moisés levou 40 anos a sair do deserto...vestiu o casaco e saiu do bar só sem saber para onde ir mas sem aquela sensação de carregar o mundo nas costas, mas com a sensação de que somos tudo o que temos cá dentro.
.

O hélio




Os balões eram um dos encantamentos dela. Daqueles que voam, daqueles que têm dentro pozinhos mágicos em vez de ar. Um dos momentos auge era quando o vendedor de balões enlaçava o balão ao seu pequeno pulso, porque isso significava que ele já era mesmo seu. Escolher a cor era fácil, desde que existissem balões azuis, eram sempre esses os escolhidos, ou pelo menos um com qualquer tom azulado. E tinham de ser ovais, nada de lagartas, nem coelhos, nem outro tipo de formato, ovais, balão dito comum.

Balão preso a ela e ela presa ao balão, a ligeira pressão que o fio lhe fazia no pulso era o suficiente para ela saber que ele lá estava.

À noite, para que a separação não fosse muito dolorosa, o balão era amarrado à cama e assim ela podia adormecer a olhar para ele. No dia seguinte, pela manhã, voltavam a ser atados um do outro. Quem assistia a isto perguntava a si próprio como é que um balão podia ser alvo de tamanha adoração.

Ao fim de dois dias, a menina pediu a alguém que lhe desenhasse uns olhos, um nariz e uma boca no balão. Agora tinha necessidade de conversar com ele e também que ele a visse, iam ser amigos para sempre! Já tinha perdido muitos, mas este era especial, ia existir eternamente.

- Desenha uns olhos bonitos! E um nariz redondinho, e uma boca a sorr…

A caneta… não acredito que a caneta tenha feito de propósito, mas… a menina, para além do susto que o barulho lhe provocou, não conseguiu compreender como é que o fio que prendia o balão a ela estava agora direccionado para o chão. Quer dizer, ela entendia porquê, só não compreendia o motivo para que o balão, dela para sempre, estava agora, dela para nunca.

Não chorou. Dela para nunca, não! Ia ser para sempre, ela tinha a certeza, para sempre no ar, a voar, com pozinhos mágicos lá dentro e preso ao pulso dela.

Procurou a árvore mais próxima, e pediu que a outra ponta do fio fosse atada a um dos ramos. Agora o balão estava outra vez a voar porque o fio estava esticado na vertical, e ela nem precisava de olhar para saber que ele lá estava, bastava senti-lo.

Ilusão agradável. Hoje a árvore ainda existe, o fio também, a menina não.

Não creio que tenha abandonado o balão, penso que agora já não precise de sentir fisicamente que ele será dela para sempre.

domingo, 7 de março de 2010

Hoje é dia...



Há dias que acordam assim - cinzentos. Vestem-se de neblinas e combinam-se em tons degradé da cabeça aos pés. Há dias em que o céu é um edredon branco e a paisagem um enorme lençol incolor, que não convida a deitar, a sentar, a permanecer – um pouco. Há dias em que a chuva nos afasta das ruas e nos manda recolher aos nossos lugares, aos nossos recantos, aos nossos lençóis coloridos. Há dias em que só nos apetece ser gota e escorregar por caminhos novos, sem rumo definido. Outros em que nos apetece ser edredon branco em Mundo colorido. Mas há dias, há dias em que nos apetece vestir de neblina e ser paisagem incolor. Passar pelos lugares sem sermos vistos. Falar bem alto sem que nos oiçam. Chorar e rir sem que os outros sintam. Há dias em que parece que somos só nós e o mundo, a paisagem, a neblina e as gotas, na certeza porém, de que é apenas um dia da nossa vida, um dia – no meio – de tantos dias.
Hoje é dia de…
Inspira e sente o cheiro da terra molhada. Fecha os olhos e ouve o cair da chuva no chapéu. Afasta-te do Mundo e comunga do que te está próximo – o cheiro, o som, o pisar que te devolve de novo a tudo o que te envolve. Aprecias as gotas nas folhas molhadas. Páras e pisas infantilmente as poças. Inesperadamente, estás a sorrir. Sozinha - naquele bosque – onde comungas com a natureza e inspiras o mesmo ar de todos aqueles que ouvem os teus pensamentos. O mesmo ar daqueles que te dão músicas de silêncios ritmados e inesperadas sensações. O frio corta as palavras, é como um galho na garganta, é como um tufão nos teus cabelos. Por momentos a tua cabeça pára, não pensa e consegues, finalmente, descansar. Dormir entre as folhas, de olhos bem abertos e sentir tudo de todas as maneiras, ali - naquele bosque.
Hoje foi dia...


[Este é um texto meu antigo. Apeteceu-me pô-lo aqui. É leve e por vezes faz-nos falta a leveza. A mim, faz.]



Atendi:
– Está, sim?
Uma voz feminina pergunta-me:
– Boa tarde. É o Sr. … … …?
Respondo:
– Sim, eu mesmo.
Pergunta ela:
– Pode dispensar-me uns minutos do seu tempo? Prometo ser rápida.
“A uma voz como a tua eu dispenso todos os minutos que tiver.” Não lho disse mas pensei. Em vez, respondo-lhe deixando passar o meu agrado na resposta:
– Sim, diga lá o que me quer vender…
Deu uma pequena risada, recompôs-se e começou a debitar alguma coisa previamente decorada.
Fiquei a ouvi-la sem a ouvir mas ao mesmo tempo tentando ouvir para além do que ela dizia.
A tonalidade era agradabilíssima. Quente sem ser mole, sem se arrastar, mas ao mesmo tempo, com um tempo de arrasto suficiente para revelar uma sensualidade serena. Firme, sem que nessa firmeza houvesse prepotência. Segura e insegura ao mesmo tempo; não era nenhuma criança e certamente já teria passado alguns momentos menos bons. Tenho para comigo que, infelizmente, muitas vezes são esses indesejados acontecimentos que nos dão traquejo e estaleca mas, também por os termos vivido, sabemos o quão vulneráveis podemos ser. Daí a segurança e insegurança.
A não hesitação quando utilizou palavras menos fáceis e comuns, mesmo descontando o estar numa função profissional, deixou-me convicto de ser alguém para quem o uso da palavra não era problema equacionável e, embora não sendo eu pessoa que dê um desmesurado valor cultural ao verbalismo, apraz-me sempre ouvir quem sabe falar.
Seria ela mãe? Não me era possível saber mas, se o fosse, tenho a certeza que a ternura existente naquela voz se faria passar por completo para os rebentos. Muito, muito afecto!
A gargalhada que dera à minha resposta sobre a compra, de tão rápida que fora, revelara sentido de humor - sim, sem dúvida - mas mais do que isso: na rapidez se vê a inteligência e ela fora instantânea.

Continuava a ouvi-la e a navegar nos meus pensamentos: até que ponto se pode conhecer alguém apenas pela voz? Realmente não era importante… ou melhor, não era fundamental que eu tivesse acertado em tudo o que pensava porque eu sabia que a maior parte, e talvez o mais importante, estava certo. Certezas que nascem em nós sem que possamos, pelo menos no imediato, racionalizar.
E havia outra certeza: eu queria conhecer a dona daquela voz.

– Sr. … …? – ela interrompeu-me as divagações. – Ainda está aí?
– Estou pois! – como não haveria de estar?
– E então, a sua resposta é…?
– Hum? Ah sim, eu compro. Claro que compro!

Rádio


(Ulver - We are the Dead)


Ruídos, sons longínquos que se aproximam num crepitar sussurrante, que se vêem aninhar junto do fogo eléctrico do diálogo silencioso de transístores, resistências e condensadores.

Ondas fantasmagóricas invadem o éter, impelindo a dança rodopiante da energia com a matéria a assentar arraiais numa placa de sílica, plástico e desenhos de solda, ora plúmbea, ora acobreada. Uma fatia de sol codificada, um rasgão na quietude do turbilhão subatómico do velo invisível que nos rodeia, um convite ao desassossego, uma sedutora teia de nada que em tudo se enrola, que atravessa carne e osso, mente e alma, colide na pedra e reflecte no vidro e no metal, propaga-se, desdobra-se em harmónicos precisos, traz informação no seu ventre, qual cadeia de ADN prenhe de vozes, música... e ruído, um infindável ruído miudinho, sibilante como a serpente de Eva, que assobia como as areias do deserto a girarem no vento quente, áspero e seco da fúria do Saara ou do Sael.


Xavier escutava. Carregava gentilmente no botão, sentido o prazer íntimo do pequeno clique que activava a passagem de corrente pela bobine do transformador, iniciando a cascata de electrões gorgolejante de impulsos alternados. Girava gentilmente o potenciómetro, ajustando o volume até este ser o adequado para os seus frágeis ouvidos de ouvinte esfomeado. Baixo. Gostava do som baixo, em que a emissão se confundia com a estática e o burburinho das frequências sobrepostas. Sintonizando lentamente ao longo de toda a largura de banda, cortando e modelando as ondas electromagnéticas que vertiam pela antena de cobre e alumínio do pequeno receptor de secretária, Xavier vogava e conhecia mundos, descobria maravilhas e calamidades, escutava sábios diligentes e gente execrável e patética a guinchar por atenção, deliciava-se com melodias divinas, canções embaladoras e poemas poderosos como as palavras dos deuses no Olimpo e os tormentos das almas no Hades. Contorcia-se com esgares de repulsão perante a banalidade e mediocridade popularucha dos temas que emitiam nas rádios comerciais, ficava chocado quando escutava “a música da sua preferência”, ou pior, “para escutar com alguma insistência”. Xavier tinha que ir a correr vomitar o asco e desprezo daqueles aqueles ataques de vulgaridade mercantilista, que iriam não só passar impunes, mas ainda ser apaparicados pelos media, numa orgia de interesses e jogos de poder centrados no volume comercial das vendas de discos. Que se danasse o livre gosto de quem estivesse do outro lado, teriam que ser desbastados e educados a escutar “a musica da sua preferência”.

Mas Xavier não desistia, a rádio era a sua companhia de eleição, a única no mundo que existia para ele, e ele escutava, percorria a escala de megahertz em onda média e frequência modelada, sempre em busca da companhia ideal para mais uma hora de solidão.

Xavier estava só. Tinha apenas por companhia os outros fantasmas que se passeavam pelas ondas da rádio e o seu cadáver putrefacto que jazia sobre o chão da sala há mais de três anos, para o qual ele olhava de tempos a tempos com um olhar desinteressado...

sábado, 6 de março de 2010

A Maldição



Não vou chorar. Exorcizo todas as gotas cadentes que abrem caminho na minha cara e morrem num lugar que ninguém conhece. Sou fraca se chorar.
Digo: inspira-as, absorve-as, consome-as, devora-as, recolhe-as, e se for preciso bebe-as antes de saírem. Em frente ao espelho, devolvo o olhar aos meus olhos para ter a certeza que nada vai brotar.
Penso: para onde vão as lágrimas que se escondem? Ora, vão para o lugar de onde nunca deviam ter saído! Pergunta estúpida! Tal como eu serei se chorar.
Sinto: dor. Maldito, que se sente por eu estar a reter estas gotas importunas. Sou capaz de te arrancar à machadada só por estares a viciar o peso da minha consciência. Ela não vai ceder a ti! Vou amaldiçoar-te! Sim, és maldito, mil vezes maldito! Que o sal das minhas lágrimas não nascidas cristalize nas tuas coronárias, que o oxigénio se extinga, que fiques necrosado. Não me importo. Não vou chorar.

Voo HLL 0969

(nota: texto anteriormente publicado no extinto grupo 'Desafio 500'





- Senhores passageiros, bem-vindos a bordo do voo HLL 969 com destino a…-

E por ai fora. É sempre a mesma conversa: “olá, bem-vindos, daqui a ‘xis’ horas aterraremos algures e entretanto mantenha-se sossegado”. Termino de encafuar a mochila no compartimento, não sem antes tirar o leitor de mp3 da bolsa da frente, preciso de companhia para as 6 horas que se seguem. Encolho-me para deixar passar um homenzito carrancudo que olha para mim de soslaio e esgueiro-me para o meu lugar à janela. Não faço questão nenhuma de ir janela, pois embora ache piada a ir vendo a paisagem, irrita-me de sobremaneira ir entalado entre a fuselagem e estranhos.

(…)

Sim, já sei, lá vem o hospedeiro, ou comissário, ou lá como é que eles se chamam agora dizer-me para desligar o telemóvel, nada de contacto com o mundo exterior, vamos levantar voo, faça favor de ficar quieto e permanecer isolado…

(…)

Finalmente. Estava complicado, mas já surgiu o sinal de desapertar o cinto, já posso ligar o mp3 e vogar para onde a playlist me levar. Está uma bela noite para viajar, esquecer o corpo, deixar o sofrimento para trás, olvidar a dor, reforçar a concha em que me aninho e fugir, simplesmente fugir de mim. Primeiro tema da lista: L'Esprit, dos In The Nursery.

(…)

Hum?! Que estranho, nem dei por me levantar, como é que vim parar ao meio do corredor?... onde é o meu lugar? Não o vejo, queres ver que me perdi no meio do avião?!? Mas quem é aquela gente e o que fazem todos ali? Vou lá espreitar… >com licença, COM LICENÇA!<… PORQUE NÃO SE DESVIAM?! Desisto, vou até lá ao fundo, parece que está uma hospedeira, perdão, uma assistente, ou melhor, aeromoça, como dizem os brasileiros, adoro essa expressão, giríssima,… como ela. Está mesmo a acenar-me, querem lá ver? Isto mais parece um sonho, daqueles bons que nos fazem acordar com um sorriso! Bom, vamos lá então, meter conversa e ver o que a sorte nos reserva…

(…)





Sobressaltado, dou um solavanco para a frente e estalo o pescoço. Tenho a boca a saber a ferro, amarga e salgada, como se estivesse a engolir sangue. O mp3 estrilha demasiado alto, rompe-me os ouvidos. Algures no meio do ruído identifico ‘Heresy’ dos Nine Inch Nails. “Your god is dead, and no one cares” grita o Trent Reznor… e se calhar tem razão! Estou nauseado, enjoado, tenho dores horríveis no estômago, sinto a cabeça a andar a roda e a estilhaçar por dentro, parece que alguém me abriu ao meio e me remexe as entranhas, vou vomitar, não aguento, o meu coração parece que vai parar… estou a perder os sentidos, acho que vou desm…


(…)




Estou na casa de banho, com as duas mão sobre o lavatório e frente ao espelho, com o olhar fixo no estranho que se manifesta perante mim.

Pareço eu, mas não sou eu… ou melhor, acho que não. Este tipo está com boa cara, alegre, sorriso desvelado, expressão de quem se sente leve como uma pena, olhos brilhantes, diria mesmo que acredita que tudo de bom lhe vai acontecer, diria mesmo que está com … fé!
Mas quem é ele? Pareço eu, mas nem me reconheço… Pareço eu, mas não o eu que aqui entrou, talvez outro eu, um eu que eu encontrei um dia na rua, disse ‘olá bom dia, como vai o senhor’, virei costas e seguimos caminhos separados. Como eu gostava de ter sido como ele, como eu sonhei um dia, igual a mim mesmo, mas totalmente diferente do que me tornei. Igual a nada. Sinto-me vazio, só comigo mesmo, estamos eu e ele, num cubículo minúsculo a olhar um para o outro. Ele sorri, com fé, alegria e leveza. Eu olho-o aterrorizado, com medo e desconfiança. Final, porque é que eu não sou como … eu?


(…)

Quem é que me está a empurar?! Hum?... Que se passa? Porque estão a olhar para mim com esse ar? Que se passa?!? Digam-me, porque me olham assim, dessa maneira assustada e se movem para trás e para diante, com estranhos objectos reluzentes nas mãos? Que luz forte é esta, porque é que está tanto barulho, oiço máquinas a apitar, campainhas a tocar, gente atabalhoada a mover-se em direcção a mim… e porque não me mexo?! Não me consigo mexer!! Mas o que me estão a fazer? Esperem, ESPEREM, digam-me o que se passa, façam parar este barulho! Porque a miúda do encontro de há bocado está agora de uniforme de enfermeira? Ela está a olhar para mim, mas já não sorri, está aflita, mas concentrada, tem ma seringa na mão e … que sussurra ela? Consigo ler os seus lindos lábios … está a dizer: “vai correr tudo bem, mantenha-se calmo…”. O coração bate mais devagar, a pressão baixa. No olhar de uma estranha encontrei o meu porto de abrigo e nos seus lábios carnudos um aconchego inesperado. No meio do caos, encontrei a sereia que me embalou com o seu canto…

...adormeço.


(…)

Vogo.

Vogo entre as nuvens. Vogo entre o espaço infinito, deslizando por entre o éter. Sou livre como nunca ousei ser. Por medo. Por indecisão. Por excesso de desejo. E por falta dele também. Estou só comigo mesmo, dentro desta barca que é a minha alma, seguem todos os actores com que me apresento ao mundo. Sou o amigo das horas difíceis. O amante desobediente. O pai que ama de forma incondicional. O homem só e nu perante os anjos. Eu. O homem do espelho. Somos o mesmo. Como diamantes, brilhamos, somos eternos e temos dezenas de faces. Todos somos um. Um só passageiro. Uma só alma. Uma só luz perante mim. Devo ir para junto dela?...

(…)




Como um furacão que irrompe pelas águas do Atlântico, um violento fôlego abre-me a traqueia. Estou sentado no meu lugar. Tudo está calmo à minha volta. Os passageiros dormitam ou lêem revistas de ocasião. Alguns ouvem música, como eu. Deve ter passado algum tempo desde que liguei o mp3, pois já vai no 4º andamento. Ah, o coro soa como se os anjos se unissem para nos levar aos céus. A nona de Ludwig Van B., uma das mais perfeitas pérolas do Universo. O apogeu do sábio-louco. Pobre Ludwig. Genial Ludwig! Graças a ti, acredito que um dia possamos todos ser irmãos, algures na eternidade…


(…)

“Senhores passageiros, dentro de momentos iremos aterrar em…”

E por ai fora. Foi o voo mais estranho, inquietante e revelador. Que já alguma vez fiz. Mas, que estranho… não sei onde estou, qual era mesmo o meu destino?






(…)

- A senhora é a esposa? -

- Sou sim. Correu tudo bem doutor? –

- Bem, foram 6 horas complicadas, houve momentos difíceis, mas o nosso homem foi corajoso e no momento certo o seu corpo como que se libertou e o resto da operação foi um sucesso. Ainda pode demorar mais uma meia hora ou mais a recuperar os sentidos, mas estamos em crer que tem o seu marido de volta! –

A mulher respira de alívio, trinca gentilmente os seus lábios carnudos e trémulos e suspira profundamente.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Do alto de um arranha céus



Do lugar de onde eu vejo o Mundo um homem toca trompete no alto de um arranha-céus. A música faz-se ouvir por todo o bairro e eu, da janela – espreito-o. Músicas desconhecidas de um tocador de céus. Há quem permaneça e procure de onde vem o som; mas há também quem passe alheio e desligado.

O que dirá o seu trompete? Uma declaração de amor; uma ode à vida; um grito de desespero; um grito de dor?

Do lugar de onde eu vejo o Mundo um homem toca trompete no alto de um arranha-céus e eu permaneço e vejo e oiço. Na realidade, não passa de uma performance de um jovem que decidiu subir ao prédio mais alto e mais velho da cidade. Movido pelo sonho, pelo amor ou pela tristeza subiu mais de 600 degraus e decidiu falar ao Mundo através, do seu trompete. Daqui a umas horas a polícia vai chegar, ele terá de descer e o bairro ficará novamente calado e vazio.

Do lugar de onde eu vejo o Mundo, milhares de pessoas vêem o Mundo comigo. Através dos seus olhos, das suas vivências, do seu imaginário ou do seu cinismo perante a vida – interpretam as situações.

Do lugar de onde eu vejo o Mundo eu vejo aquilo que quero ver. Ele pode ser um tocador de céus ou um doido varrido.

A Vida é aquilo que queremos ver. Podemos olhá-la profusamente nos olhos e interpretá-la à nossa maneira, ou podemos ir atrás daqueles que nos dão as suas visões, na certeza de que elas têm tanto de individuais como de íntimas, para que algum dia sejam, só nossas.

Eu procuro ser como o tocador de céus e quando solto a voz e me ergo – faço-o para o Mundo.Faço as minhas interpretações e nem sempre são as mais bonitas, mas são mais minhas do que qualquer vale encantado que me possam apresentar. Eu absorvo da Vida mais do que ela me dá e retribuo dando-lhe mais do que aquilo que vejo e esse, esse é o lugar de onde eu olho o Mundo...

Um parêntese



"O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma oportunidade de meditação permanente ao nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba receber." (Artur da Távola)

(Todas as noites deixava a porta do meu quarto entreaberta. Quase com uma certeza matemática, sabia que ias entrar.

Não havia hora marcada, mas estava sempre acordada quando entravas e apesar de não conseguir ouvir os passos das tuas patas, conhecia exactamente o momento em que atravessavas a fronteira entre o corredor e o meu quarto. Conseguia, igualmente, anteceder o instante em que davas o salto e pousavas com a delicadeza própria do teu ser em cima da minha colcha. Como sempre, eu sabia que os teus passos picotados te iam levar até às minhas costas. Depois de deitado confortavelmente, o teu típico ronronar entranhava-se até aos meus pulmões e eu tinha de suster a respiração. Acertava os meus ciclos respiratórios com os teus e durante horas tínhamos a mesma frequência.

Assim era, até que houve uma noite em que não cruzaste a fronteira. Não pensei em perguntar-te porquê. Já tínhamos conversado sobre isso e sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, nunca mais ias passar por aquela porta, ou então, era eu que nunca mais ia dormir naquela cama.

Assim era, assim foi. Nem todos compreendem isto.)


Quando a cidade adormece
e eu acordo sobressaltado com a minha própria respiração,
percebo que partiste e deixaste atrás de ti o perfume da minha humilhação

Percebo que os gatos que pisam periclitantemente o velho telhado
e os grilos que na penumbra cortam o silêncio à navalha,
me fazem querer gritar até as amígdalas implodirem
e a basílica vizinha implodir num repente.

1 Fogo extinto, o seu rescaldo, debandada progressiva, cinzas frias
o alinhamento deste canal televisivo demoníaco
A cortiça que é a minha garganta lasca-se em curtos intervalos
e a luz do candeeiro pendente lá em baixo, presencia este velório

O que faz de nós pedaços de papel amassado caídos ao lado de um cesto de lixo?

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...